A
FÓRMULA DOS SONHOS
Sobre O Senhor das matemáticas, de Maria Carpi
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Porto Alegre,
27 de outubro de 2012
Os sonhos nos provocam desde sempre. Cinco mil anos antes de nossa era,
Gilgamesh tinha sonhos premonitórios, e cada capítulo encerra-se com um
sonho antecipando o que acontecerá no seguinte. Um recurso, aliás, muito
moderno.
Quando Freud revisa a literatura sobre os sonhos, ele dá um destaque
ao livro de Artemidoro de Daldis, no qual relata uma interpretação de um
sonho de Alexandre: depois de sitiar por vários dias a cidade de Tiro, que
se defendia bravamente, estando a ponto de desistir e bater em retirada, sonha
com um sátiro dançando sobre seu escudo. Aristandro, o onirocrítico de sua
confiança, interpretou assim: Sa Tiro (σα Τυρος)! Tua é Tiro!
Depois, ao longo de suas seiscentas páginas vai analisando uma grande quantidade
de sonhos.
Nesse livro de Maria Carpi, o narrador trata exclusivamente de seus
próprios sonhos, o que não quer dizer fale só dos seus. Não! Ela sabe muito
bem que não se vive sem o outro, e invoca O último suspiro, de Buñuel
(p.21), no qual o cineasta narra um sonho parecido com um dos relatados
por ela.
Invoca também A vida é sonho, de Calderón de la Barca (p.111),
desta vez como contraponto: diferente do sonho narrado pelo escritor espanhol
- muito possivelmente inspirado em A Megera Domada, de Shakespeare
-, para Maria Carpi, os sonhos importantes são aqueles verdadeiramente sonhados.
Ela faz essas citações porque sabe das influências sofridas das leituras,
sabe que um autor pode – como ela diz –, ver com o olho perdido de Camões
e mesmo escrever com a perdida mão de Cervantes (p.78).
Apoiar-se em outro autor, para ela, é como sentar-se no colo, como
um filho faz com sua mãe. Assim, ao visitar uma biblioteca, em sonhos, ela
acha muito engraçado, e começa a rir, vendo os leitores, com tantas cadeiras
disponíveis, preferindo sentar nos lugares já ocupados, como se estivessem
sobre os joelhos de Dante ou Camões (p.17). Poder-se-ia pensar em uma alusão
às cadeiras das academias, cada uma com seu patrono, mas não! Basta lembrar,
usando sua figura, que tanto Dante quanto Camões alguma vez também sentaram
sobre os joelhos de Virgílio. Os joelhos, para essa narradora, são apoio,
tanto para os livros como para os filhos e, em seus sonhos, não raro uns
valem pelos outros.
Uso o termo narrador porque quero diferençá-lo do de autora. A passagem
da narradora pelo colo de Dante não foi em vão. Como fez o vate, Maria Carpi
usa seu próprio nome, ainda que contraído, para batizar a narradora de seu
livro, falando em primeira pessoa. Como Dante, ela também usa sua história,
sua época, e também seus amigos, aos quais por vezes empresta a voz. Quando
recebe a anunciação da poesia, é com o timbre de uma brisa mansa (p.18
e 35), como um dia ouviu a Santa Maria. E Maria Carpi também está aí quando
Joana d’Arc, a camponesa de Domrémy, tem de incendiar a vastidão corporal
do mundo, e mesmo quando Simão de Cirene ajuda o nazareno a carregar
a cruz (p.115). A Florença de Dante Alighieri é a Guaporé de Maria Carpi. E o caminho por
ela percorrido, em sua narrativa psicanalírica, como bem definiu
Ivo Barroso, tem muito a ver com o percurso do poeta florentino. Em um de
seus primeiros sonhos (p.16-7) ela já anuncia esse trajeto. Sonha com a
necessidade de entrar no Prédio da Literatura e, daí, passa logo à
Sala da Poesia. Esse caminho aos penetrais, se repete
a cada tanto, quando vai desde o átrio de sua casa, passando pela sala e
a cozinha, até um pátio interno (p.29), ou até um porão, no subsolo (p.63).
Aí, na dimensão do inconsciente (p.122), entre berços e túmulos (p.83),
passeia o Professor de Matemática, que é também o Professor de Música (p.
94). Por aí deslizam também suas dificuldades.
Maria Zambrano, uma das escritoras mencionadas no livro (p.116), no
seu Notas de um método, cujo tema é o método de conhecimento
no Ocidente, desde seus começos, também aproxima os dois temas: ela lembra
que a música, como poesia cantada, era usada como método de aprendizagem.
As meninas de um povoado ignorante de Castela, quando tinham de se enfrentar
com a cartilha que lhes ensinava as sílabas de seu próprio idioma, punham
as mãos na cintura e começavam a cantar. E assim aprendiam também a tábua
de Pitágoras, que é como se chamava a tabela de multiplicação. Aprendiam
cantando, e quando lhes retiravam esse apoio, já não sabiam multiplicar. A
música ajuda a decifrar os enigmas. E é uma coincidência que os primeiros
mestres da antiga Grécia fossem representados com uma lira, o que parece implicar,
antes de tudo, que mestre e aluno falassem da memória, a mãe de todas as
musas. Mnemosine atuava por meio da música e do canto, das palavras e dos
números. A personagem Maria Carpi, essa, desafinava ao cantar a Ave-Maria.
Ao nos contar isso, faz-nos lembrar que a primeira forma de oração medieval
não era a leitura dos Evangelhos, senão seu cantar. Recorria-se ao saltério
que cantava os salmos do rei Davi.
A música, para Maria Carpi, está associada à figura de seu pai, o
violinista que gostava de tocar as composições de Schubert (p.21) e de Schumann
(p.61). Basta-lhe ouvir um pequeno trecho, mesmo pelo rádio (p.76), e sua
memória se acende. Lembra o sonho com o desvalido. Ela o representa sempre
com um rosto encardido pelo tempo e pela miséria, desde o dia em que uma
figura insólita, saída de entre o túmulo e o esgoto, veio lhe pedir água
(p.34)! Lembra O Bicho, de Manuel Bandeira. Com esse desvalido, a
quem beija os pés (p.38), ela aprendeu a dor do patíbulo (p.56), cantada
em seu poema ao Herói desvalido, e, por ver também aí a vida, constrói
uma das mais belas anáforas que já li. Quando o desvalido já está leproso,
ela começa o verso com a mesma frase que termina:
Ainda hoje bebo a água de teu beijo.
Se
na primeira frase lemos inocência, na última já não temos dúvida de que a
ingenuidade há muito perdeu seu lugar.
Assim como não se sabe se o sonho sonhado corresponde ao real vivido
(p.65), também não se sabe se as dificuldades vividas são próprias ou inerentes
a uma circunstância. E a circunstância de Maria tem por pano de fundo as
vilezas de uma revolução. Lembro Flaubert escrevendo A educação sentimental
tendo por trás a Revolução de 1848, e também de Maria Zambrano escrevendo
sob a guerra civil na Espanha. Para Maria Carpi, sua revolução foi a de 1964,
com os grupos dos onze, com as torturas, as humilhações, os aviltamentos,
a negação da dignidade. Não por nada, o único Santo a ser mencionado é Estêvão
(p.78), o primeiro a ser lapidado pela ignorância ensandecida. E tem também
os afogados no oceano, incluídos aí não só os arrastados por alguma baleia
mar adentro.
Suponho que quando ela nos pede para ler com a língua materna
(p.72), quer ser compreendida desde a ótica da maternidade, uma ótica que
sabe da dificuldade de criar filhos, que sabe do valor da memória, mas também
sabe do valor do esquecimento (p.71). E sabe da música! Quando ela diz que
mãe surge de um nascimento contínuo (p.58), e que se estende
além da horta e do pomar, além [até] de si mesma, com a chuva
escorrendo da vidraça dos olhos, posso quase ouvi-la, em dueto com Emilio
Pericoli, cantando, de Mogol e Donida, Al di là del mare piu profondo,
al di là dei limiti del mondo. Para Maria Carpi, os filhos são seu bem
maior; por eles, interrompe qualquer poesia, mesmo com o risco de perder
o mote. Como os filhos, os poemas nascem para ganhar o mundo. Nas suas palavras:
os poetas devem saber que o texto, depois de escrito, não precisa
da presença (p.91). Esse, a propósito, é o sentido mais estrito de poiesis.
Diferente da práxis que, essa sim, requer a presença de seu autor,
o poeta, depois de ter feito um jarro, uma casa, um poema, está dispensado.
A primeira palavra do livro é metáfora. Maria Carpi a usa para
distinguir os transportes do poeta, esteja ele de olhos abertos, ou de olhos
fechados, quando seu método de transporte é o sonho. Lacan também faz referência
a esse tropo. No lugar dos mecanismos de condensação e deslocamento, fundamentais,
para Freud, na elaboração onírica, o mestre francês dirá, respectivamente:
metáfora e metonímia. Necessita-se dessas figuras para compreender a deformação
onírica, pois os sonhos representam sempre outra coisa. Os dicionários de
sonhos, mesmo os mais simplesinhos, sabem disso. A ingenuidade dessses dicionários,
contudo, consiste em pensar que os símbolos estão contidos em um código
universal, sem reconhecer a decisiva importância das experiências particulares
na construção dos símbolos para cada um.
Essa preocupação com o sonho, dormindo ou acordado, é comum também
a outros poetas. César Leal, que se autorizou poeta, ainda na adolescência,
desde um sonho, disse, em O Sonâmbulo, da importância de
ter sempre um ar de vivo se dormindo,
de morto sempre um ar quando acordado.
Como
vemos, cada um tem seu jeito de caracterizar esse estado onde se origina um
sonho capaz de metamorfosear-se em poema.
Para Maria Carpi, ele não nasce do vazio (p. 36), mas de um grânulo
no sonhador. É parecido com Freud: ele diz que o sonho, como um cogumelo,
nasce de seu micélio, formado por uma miríade de hifas filamentosas as quais
vão buscar seu alimento tanto na história pregressa do sujeito como nas
suas experiências vividas no cotidiano.
E, então, o sonho com O Senhor das Matemáticas! É um daqueles
classificados por ela como intensos e impressionantes. E vem associado com
uma dificuldade para mastigar, depois transformada em um dente frouxo. Ela
precisa fazer uma prova geral e pergunta aos filhos, ainda pequenos, se,
alcançando a média necessária, pode deixar de lado a prova de matemática.
– Deixemos registrado que a primeira aprovação tem que vir dos filhos, ainda
pequenos.
Ao mesmo tempo em que eles lhe dizem para insistir, alcançam-lhe um
novo Livro de Matemáticas (p.8). Seu autor é O Senhor das Matemáticas.
Maria sabe que o sonho é instantâneo (p.87), atemporal, sendo sua diacronia
apenas um requerimento da narrativa propiciado pela elaboração secundária
(sekundäre Bearbeitung [Freud]) do sonho, a qual lhe dá também certa
ordem lógica. Esse novo livro vem em um só tomo, e contém equações
de fragmentação ao ínfimo e integração ao cubo. Nestas duas últimas metáforas
encontramos condensada uma preocupação que perpassa todo o livro: a sede
de extremos! Seja ela da parte ao todo, como vemos aqui, seja quando não
consegue levar o companheiro para o cimo da escada (p.30); do mesmo modo,
quando, ao ler o Livro do Sol, descer para encontrar alguém é o
mais subido sonho (p.37), e também no uso do retumbante oximoro – altissonante
silêncio (p.71) –, com o qual, como o gauche de Drummond, explica
o seu andar desafinado pela vida. As escadas são para Maria degraus
tanto para descer ao inferno como para subir ao paraíso representado pela
Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, onde foi batizada (p.46). Dante é
sua inspiração! Depois de subir, porém, Maria quer voltar. Parecida com
Matilda, a jardineira do Purgatório dantesco, ela quer trazer para baixo,
para os homens, as flores que em cima colhe (p.54). E o Paraíso, para Dante,
não esqueçamos, é o espaço dos mais maravilhosos versos.
Ao abrir o Livro de Matemática, é como se ela abrisse uma versão
particular de O Livro das Maravilhas, de Marco Polo. Por entre os
números, as palavras movem-se em rios e plantas, pássaros e flores. Ela é,
agora, a flora e a fauna e todo o orbe celeste. O sangue que corre por seu
interior é o mesmo leite galáctico que envolve o universo. E a primeira página
traz como título A Cobiça é o Mal. Arde aí algo que Maria sabe ser
próprio do ser humano: o desejo (p.52). É preciso assumir o desejo
para estar em seu lugar. Como ela diz, claramente:
não se pode deixar
a estrela-guia ofuscada por nuvem nenhuma (p. 86)!
Se
a cupiditas é o mal, será como das Böse, de Goethe,
capaz de criar das Gute, o bom. A fórmula goethiana vem traduzida
na equação central do sonho:
Água boa = V[lúmen]
= infinito
Acredito
que uma leitura possível seja:
A água é boa se o lúmen dá de beber
ao infinito.
E
o teorema poderia ser lido como:
Algo é bom se serve a todos.
A
validade da fórmula é atestada pelas crianças, pequenas. Sua sensibilidade,
ainda oral, é a mais primitiva, no sentido, por certo, de menos contaminada!
E, nesse sentido, o livro de Maria Carpi – e agora falo da autora –, é um
libelo contra as leituras superficiais e preconceituosas, contra as políticas
que não reconhecem no homem, mesmo no crucificado desvalido, tanto o objeto
como seu autor maior.
|