Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista



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Maria Carpi


UM OLHAR SOBRE A CEGUEIRA

Uma leitura sobre
O CEGO E A NATUREZA MORTA
De MARIA CARPI

Luiz-Olyntho Telles da Silva
 13 de novembro/2016
(Esta apresentação não foi feita ao público
 por motivos de ocasião
)


Me abismo en una rara ceguera luminosa,
un astro, casi un alma, me ha velado la Vida.
¿Se ha prendido en mí como brillante mariposa,
o en su disco de luz he quedado prendida?

No sé…
Rara ceguera que me borras el mundo,
estrella, casi alma, con que asciendo o me hundo.  
¡Dame tu luz y vélame eternamente el mundo!  


(DELMIRA AUGUSTINI, Ceguera.)




Senhoras e Senhores

É um prazer voltar a falar desse magnífico livro de poesias, O cego e a natureza morta. Sua autora, Maria Carpi, honrou-me com o convite para prefaciá-lo e, também, para apresentá-lo, justo naquela fatídica noite de 30 de agosto em que toda a cidade teve o desgosto de ver o céu despencar e apagar todas as luzes. Acaso? Nunca as sensibilidades do cego foram tão exigidas como naquela noite escura.

Marcada a data deste novo vernissage, o Editor Alfredo Aquino, sempre atencioso, solicitou-me um texto para esta ocasião que resultou neste pequeno livro que os senhores têm agora em mãos. Quem esteve presente na apresentação de 30 de agosto, verá que o texto que agora lhes apresento não é exatamente o mesmo. Por deformação profissional, quando me repito, como na vida, tem que haver alguma diferença e, depois, a releitura de um bom livro sempre propõe novas abordagens, novos pontos de vista.

Por isso, agora, quero propor outra leitura, começando por uma pergunta:

- Qual é o sentido de ver a vida pela visão de um cego?

Pareceu-me que uma reflexão sobre essa pergunta se impunha para poder acompanhar, mesmo no escuro, o toque, ora suave, ora áspero, do deslizar poético de Maria Carpi.

Pensei no Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, mas achei que seu livro, ao trabalhar a metáfora da epidemia, é muito duro, e não parece responder a minha questão.  E então lembrei um episódio ocorrido no início de minha vida profissional. Uma fábrica chamou-me para auxiliá-la na seleção de um funcionário cego para um trabalho mecânico, repetitivo, em uma máquina. Embora eu não entendesse nada sobre o desempenho dos cegos, aceitei fazê-lo, mais pelo desafio, eu diria agora, do que por meu savoir-faire e, também, tenho de reconhecer, porque eu pensava que deveria saber, embora a universidade nunca tivesse tratado do assunto. Da cegueira eu sabia apenas que ela justificava um homem que pedisse esmolas, em geral, guiado por uma criança, que eu imaginava fosse um filho, ou uma filha. Ainda me lembro de um que vinha bater na porta de meus pais, mais ou menos uma vez por mês, com sua bengala, sua menina e o chapéu na mão, que era seu modo de pedir. Não falava. Fazia um gesto com a cabeça, para agradecer o pouco que lhe dávamos, e se ia. Era bem a imagem de Édipo e Antígona que Maria Carpi usa nas epígrafes de seu livro. Embora afetiva, a recordação era, evidentemente, insuficiente para tornar-me um especialista na avaliação dos cegos. E resolvi visitar o Instituto Santa Luzia. Receberam-me, mostraram-me a casa, mas ninguém falou comigo. A única coisa extraordinária que aconteceu foi quando, ao cruzar por um corredor lateral, vi, no pátio, meninos jogando futebol. E, ao perguntar à freira que me guiava quem eram aquelas crianças, disse-me, com a maior naturalidade, que eram seus alunos. – Cegos? Perguntei, atônito. Isso mesmo. É por isso que estão aqui, respondeu-me e, ato contínuo, levou-me ao pátio para que eu pudesse vê-los de perto. Sete meninos, para cada lado, jogavam com uma bola de futebol, de tamanho normal, com guizos dentro. Driblavam, faziam passes e chutavam em gol. Acho que acertavam mais do que certas partidas do Colorado! E os goleiros pegavam bem. Havia um deles, então, que era muito bom. Lembro-me ainda dele ter voado para pegar um chute certeiro que lhe chegou do canto direito da área. E, para mim, o mais extraordinário é que nada daquilo lhes parecia extraordinário!

E então me sentei para ouvir o candidato a passar o dia estampando uma peça, em uma forma manual, colocando, com uma mão, uma chapa de metal e, com outra, movimentando uma alavanca. Meia hora depois, quando eu já tinha uma boa ideia de sua experiência e de seu cuidado, pronto para indicá-lo, ele me surpreendeu com uma observação: – O senhor, tão jovem, e já trabalhando em um lugar de tanta responsabilidade! E eu, sem pensar, retruquei-lhe: - Como sabe que sou jovem? – Pela voz,  considerou ele, com toda a naturalidade, acertando em seguida a minha idade. O tempo passou e, logo depois, como a fábrica tinha de admitir uma determinada quota de deficientes visuais, tive de examinar uma moça para a mesma função, e, ao findar a entrevista, quando já me levantava, ela perguntou-me: - O senhor não vai pedir para eu adivinhar sua idade? Tive que rir.

Anos depois, assisti a uma conferência de Eugen Bavcar, esse fotógrafo esloveno, naturalizado francês, que ficou cego ainda na puberdade e começou a fotografar muito cedo o estado da alma dos homens, das mulheres, das crianças... e das pombas. Também vi uma exposição de suas fotografias, no Museu Ado Malagoli. Uma delas era de sua sobrinha. Estavam os dois em um campo e ele pediu que ela corresse e balançasse um sininho para ele saber onde ela estava e, na fotografia do invisível, para ele, aparece, em preto e branco, o campo e, sobre o fundo escuro das árvores, no canto esquerdo da foto, a menina, toda de branco, como que esvoaçando. Muito bonito!

Noutra ocasião, quando visitava o Arco do Triunfo, em Paris, depois de ter subido até o último andar, por um elevador, quis também conhecer o terraço, o qual, para alcançá-lo, era preciso escalar uma escada tosca, de madeira. E eis que, ao subir, tive de dar passagem a um cego que descia, apenas com sua bengala. Mon Dieu! Que teria ido ver? Teria recitado o nome das pontas da estrela formada pelas doze avenidas que partem daí? Teria notado que só uma delas não recebera o nome dos generais de Napoleão? Teria percebido que uma delas é uma homenagem a Victor Hugo, o imortal autor de Os miseráveis, essa obra que acredito tenha causado uma grande impressão em Saramago? Afinal, os miseráveis, como os cegos, somos nós mesmos antes de ver a luz, e quem não sabe que o pior cego é o que não quer ver?

Assim que, por meio dessas experiências, dentre outras, tenho estado muito sensível com relação aos cegos. Em certa época, estava tão impressionado com a condição da cegueira que, quando publiquei meu primeiro livro, Da miséria neurótica à infelicidade comum, ainda em 1989, coloquei na capa um quadro de Bruegel, intitulado A parábola dos cegos, esperando que a ironia fosse evidente: se alguém que quer aprender psicanálise busca aprender com outro que também não sabe, ambos, tais os cegos de São Mateus, cairão no buraco. Acho que já naquele tempo eu estava advertido pelo poema 22 de O cego e a natureza morta, de Maria Carpi:
O cego não é guia de outro
Cego. Um cego tão só é guia
da luz amarelecida, em pouso.
Quer dizer, as experiências e os aprendizados dos cegos, como percebeu Diderot, têm que ser cotejados com as dos videntes, e da leitura de Maria Carpi deduzi que há como que duas cegueiras, uma de primeiro grau e outra de segundo grau, uma com a qual se nasce, e outra que se alcança, algo como a Docta Ignorantia, de Tomas de Cusa. É preciso um esforço a mais para alcançar uma cegueira em nível de doutorado.

Como diz a poeta Maria Carpi, no poema 19:

[...] O trato
com o escuro não decorre
da lâmpada apagada.
É a lâmpada transferida
ao interno da semente. O trato
com o escuro é de enfoque
lento, sussurrante, poeira de astros [...]
Ah! Tivesse Diderot conhecido o cego do Arco do Triunfo, certamente lhe faria algumas perguntas, pois certa vez escreveu uma carta muito interessante, conhecida como Carta sobre os cegos para uso dos que podem ver, dirigida a uma senhora anônima. Fosse hoje, encantado com a poesia de Maria Carpi, ele lhe contaria que esteve visitando um cego de nascença, em Puiseaux, uma pequena cidade próxima da floresta de Fontainebleau, e que, tendo chegado pelas cinco horas da tarde, o encontrou ensinando o filho a ler com caracteres em relevo. Não fazia uma hora que havia se levantado, pois o dia, para o cego, começa quando termina para nós. Enquanto os outros descansam, ele trabalha. Quando ninguém o incomoda, e ele não incomoda ninguém, gosta de pôr as coisas da casa em ordem, cada uma no seu lugar. A dificuldade para encontrar coisas perdidas torna-o amigo da ordem, e as pessoas que convivem com ele, para agradá-lo, acostumam-se a deixar tudo em ordem. E isso termina por fazer bem a todos. E Diderot observa que os grandes serviços são como peças de ouro ou de prata que a gente raramente tem ocasião de empregar; mas as pequenas atenções são como moeda corrente que se tem sempre à mão. É como se Diderot tivesse lido, no poema 17, que
O cego sabe lidar com o escuro.
[...] Sabe do arrepio
e da penugem. Mas pouco
sabe lidar com a claridade.
E, em seguida, no poema 18, a poeta afirma:
O cego adentra nas coisas
mais que o olho sadio. O cego
guia-se no vazio pela palavra
cênica, passo a passo, sem cortinas.
Diderot, que está lendo o poema com atenção, lembrou-se da resposta do cego de Puiseaux, quando lhe perguntaram o que eram, para ele, os olhos: – Um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala sobre minha mão. E, como se não bastasse, o cego continuou: – Isso é tão certo que, quando coloco minha mão entre vossos olhos e um objeto, minha mão vos está presente, porém o objeto vos está ausente. A mesma coisa me acontece quando procuro uma coisa com minha bengala, e encontro outra. E a poeta, com muito tato, talvez lembrando Homero, que também era cego, avança, indo adiante, no poema 18:
O cego acalma a tonalidade
da pigmentação, sem pincéis,
escorrendo as tintas entre
dedos da palavra pictórica.
E enxerga ouvindo o silêncio
deixando que tudo se acerque
e venha beber em sua palma.
E fecha o poema com um verso magistral:
No cego a luz descansa.
Maria Carpi sabe da importância do tato para o cego, e que ele é capaz mesmo de enfiar uma linha em agulhas muito minúsculas. Não podendo ver o buraco, ele o identifica dispondo-o transversalmente na abertura dos lábios, na mesma direção da boca, e depois, com a ajuda da língua, aspira o fio. Para quem vê, pode ser mesmo uma cena muito bonita, mas, para o cego, importa porque é prático.

Diderot não chegou a conhecer Louis Braille, nascido quase cem anos depois dele e que, por ter perdido a visão muito cedo, aperfeiçoou um método táctil de comunicação militar, simplificando-o e transformando-o em método de escrita e leitura para cegos, antes de completar 15 anos. Seus mestres, que não o entendiam, proibiram-no de ensinar aos colegas e isso por alguns anos, antes de reconhecerem sua enorme vantagem. Mas conheceu Nicholas Saunderson que, embora um pouco mais velho, foi seu contemporâneo e, tendo também perdido a visão muito cedo, ainda na infância, tornou-se um grande matemático. Trabalhando com alfinetes com cabeças de diferentes tamanhos, tornou-se um matemático tão bom que foi recomendado, por ninguém menos que Sir Isaac Newton, para ser professor em Cambridge. A história das máquinas de calcular passa por ele. Seus hobbies, contudo, também merecem destaque: gostava de andar a cavalo, praticava a caça e também a poesia que, como Maria Carpi bem sabe, tem muito a ver com a matemática. Contam que em sua última noite, depois de muito sofrimento por causa de uma gangrena, isso em 1739, chamou sua esposa, Abigail, e suas filhas, abençoou-as, desejou-lhes muitas felicidades, recomendou-lhes que vivessem virtuosamente e aprendessem com ele a morrer em silêncio. Depois lhes pediu que deixassem o quarto.

Diderot observou que a metafísica dos videntes não combina com a dos cegos. Quantos princípios existem para eles, que não passam de absurdos para os videntes que não alcançaram o segundo grau! Sua visão é mais profunda, mas, quando chega a revelar algo, como alguém que vislumbra alguma verdade em tempos de trevas, e tem a imprudência de revelar aos contemporâneos cegos, corre o risco de ser perseguido, encarcerado, e morto.

Enfim, a poeta nos avisa, no verso 27, ainda na parte I:
 
A visão do cego é de um
repuxo solar. [...]
Na claridade do dia,
vê não vendo, mas, à noite,
em silêncio de cores
e ícones, adivinha.
[...] Entre acordes
e linhas de luz e sombra
que se cruzam e descruzam.
[...] E a suave harpa, aprisco
de aves, ressoa as catacumbas.
Obrigado!


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