Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A INTERPRETAÇÃO DE SONHOS
- Die Traumdeutung -
Sigmund Freud -1900

p/Luiz-Olyntho Telles da Silva
www.tellesdasilva.com

A vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.

(CALDERÓN, A vida é sonho.)



A obra de Freud é, sem dúvida, revolucionária. Revolucionária, no sentido de inovação, da originalidade e da possibilidade de renovar os padrões estabelecidos, como o foram, em seu tempo, a de Copérnico e a de Darwin, ensinando-nos que não somos o centro do universo e que não nascemos exatamente como somos agora, mas sim o resultado de uma longa evolução da espécie animal.  Uma revolução que ofendeu o status quo, e a ofensa de Freud, em particular, é a de ter dito que não somos tão senhores de nós mesmos como supõe nossa consciência.

A interpretação de sonhos foi, de certo modo, o livro que trouxe ao mundo suas ideias.

Antes de entrar em sua leitura propriamente dita, devo dizer-lhes por que a escolhi para comentá-la. Aqueles que tiveram a coragem de se aventurarem por suas cerca de setecentas páginas viram que é um livro difícil. De fato! Embora sua primeira edição, em dez anos, não tenha vendido mais de trezentos exemplares, um episódio, na verdade singelo, levou Freud, ao final desses difíceis dez anos, a acreditar que ainda viria a ser famoso: em sua única viagem à América, em 1909, quando viajava em navio para uma série de conferências na Clark University, de Worcester, no Estado de Massachusetts, viu um marinheiro, no horário de descanso, lendo o seu A interpretação de sonhos. Embora esse único episódio lhe parecesse suficiente para autorizar seu comentário, existem ainda outros que provam seu contínuo interesse.

 Certa vez, já há alguns anos, conversando com o Poeta Décio Pignatari, ouvi-o contar um sonho relatado no livro de Freud; tratava-se de um sonho interpretado, segundo ele, por Aristander. Eu, mais que depressa, apoiado mais em uma lembrança auditiva do que em uma leitura específica, e querendo ser gentil, disse tratar-se, na verdade, de Artemidoro de Daldis e, para minha surpresa, Pignatari bateu pé: ele não tinha dúvida, era Aristander, e continuou a conversa. Mais tarde, ao verificar a história, vi que o Poeta estava certo: Artemidoro de Daldis, autor da Oneirocrítica, no século II de nossa era, citado por Freud, havia sido apenas o relator do tal sonho, na verdade interpretado por Aristander. Aprendi aí que precisava ler com mais atenção! Depois, o nosso conhecido Donaldo Schüler, ao escrever uma introdução à sua tradução de Finnegans Wake, de J. Joyce, valeu-se da leitura de um sonho incluído no sexto capítulo do livro do mestre vienense, mostrando outra vez como o texto de Freud continuava de interesse dos leitores, como antes já interessara ao próprio Joyce, a Italo Svevo, Arthur Schnitzler, Nicholas Mayer, Rubens Fonseca e tantos outros. Mas há ainda outro motivo. Quando não os há? Trata-se de uma leitura desse texto feito por ninguém menos que Otto Maria Carpeaux, um crítico de minha admiração e com quem – tenho de confessar –, tenho aprendido muito na arte de ler. Dedicar-lhe-ei um parágrafo.


A referência é a um texto de março de 1973 – quer dizer, aparecido menos de um ano depois da edição publicada pela Ed. Imago, em novembro de 1972 –, recolhido por Heloísa Seixas em sua coleção As obras-primas que poucos leram.1  O que não posso dizer é se ele leu A interpretação de sonhos aí, na coleção da Imago, ou em alguma tradução anterior, ou ainda se a leu no original, em alemão. O que me parece provável, é que, de fato, todo o texto, por certo, ele não leu!

Antes de continuar, quero dizer que em meus comentários tomarei por base a mencionada edição da Imago,2 comparando-a, quando for o caso, com a recente edição comemorativa dos 100 anos,3 pela mesma editora, e, também, com o texto original, publicado por S. Fischer.4
1.  SEIXAS, Heloisa, As obras-primas que poucos leram. Vol.4, Rio de Janeiro: Record, 2006.
2.  FREUD, S., A interpretação de sonhos. Tradução dirigida por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vv. IV e V, 1972.
3.  FREUD, S., A interpretação dos sonhos. Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001. – Embora o original leve a data de 1900, foi publicado ainda em 1899 (N. do Autor).
4.  FREUD, S. Die Traumdeutung. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, Studienausgabe, Band II, 1972.

Já devem ter reparado que me refiro ao texto de Freud como A interpretação de sonhos. Pois bem, Carpeaux refere-se a ele como A interpretação dos sonhos, aliás, o mesmo título adotado pela mencionada edição comemorativa, o qual anteriormente, possuia como elemento articulador a preposição de. Prefiro dizer Interpretação de sonhos, por ver nessa construção uma maior abertura de sentido: penso que, ao usar a preposição de, ela arrasta consigo, de forma mais clara, a conotação de um método para interpretar qualquer sonho, enquanto que a contração da preposição com o artigo definido plural especifica a particularidade de alguns sonhos. Mais que a valorização de símbolos fixos, o método de Freud requer sempre as associações do sujeito, fato a tornar cada sonho único.

Suponho que Carpeaux não tenha lido todo o texto pelo fato de ele mencionar que Freud, aí, só usava seus próprios sonhos.5  Verdade que Freud usa aí muitos de seus sonhos, mas não só. Enganos!? Estamos sempre nos enganando, o tempo todo. Mas Carpeaux, que já veio moço para o Brasil, contribuindo em muito para nossas letras, foi menino justamente na Viena onde cresceu, onde tomou vulto e foi criticada a obra de Freud. Quando saía à rua para ir ao colégio, não podia deixar de ver as obras de Freud na vitrine da livraria de seu primeiro editor – Deutike –, e, curioso, quando tentou comprar um livro intitulado Um caso de coprofilia de um esperantista (?),6 o vendedor gritou com ele: Fora daqui, menino, para você não servem essas porcarias! Pois a frase desse preconceituoso por certo lhe ficou gravada, como, também, em muita gente boa! Carpeaux engana-se também com o número da casa do Mestre, confundindo o 19 da Rua Bergasse com um imaginário 81. Mas também há, no seu texto, tiradas de humor: quem impede de levar a sério a Psicanálise – diz ele –, são os psicanalistas! Mas não todos, ele se apressa em acrescentar, citando, como honorável exemplo, ao Dr. Hélio Pelegrino. Acredito que alguns ainda se lembrem dele. Primeiro porque foi casado com nossa conterrânea, a ilustre escritora Lya Luft, e, depois (embora antes), por ter sido notícia de vários jornais, quando de sua expulsão da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, filiada à IPA, junto com Eduardo Mascarenhas, em 1980, por denunciarem, dentro do quadro dessa sociedade, a presença do torturador Amílcar Lobo, e, também, dizem, por delatarem que aí não se lia Freud! Depois de provado – para minha surpresa –, que falavam a verdade, foram reintegrados por decreto judicial. Mas Carpeaux ainda não sabia que isso iria acontecer, e acrescenta ao elogio que por certo também existem outros que honrem a profissão, mesmo porque a especialização – continua ele com seu bom humor –, não exige a compra de instrumental caro, basta um divã!  
5.  H. Seixas, op. cit., p.59.
6.  Nunca vi um título parecido a esse incluído entre as obras de Freud.
Pois se meu idolatrado Otto Maria Carpeaux não leu o livro, leiamo-lo nós.

Estruturado através de sete capítulos, ele parte do geral para o particular. O geral é a história do que já se disse sobre os sonhos e sua interpretação e o particular consiste em sua própria teoria desenvolvida a partir de sua pesquisa clínica. Assim, ele começa, no primeiro capítulo, examinando a literatura científica dedicada aos problemas dos sonhos, desde antes de Aristóteles, quando viam nos sonhos uma intervenção divina. Rompendo com o estabelecido, o estagirita já sabia que o sonho é provocado por pequenos estímulos surgidos durante o sono. Ao longo desse capítulo, e, também, dos outros, encontraremos, lado a lado com os autores de sua contemporaneidade, constantes referências aos clássicos, como Homero, Cícero, Lucrécio, Schelling, Gulliver, Wundt, Schopenhauer, Fechner, Rabelais, Alphonse Daudet, Shakespeare e Artemidoro de Daldis, de quem logo veremos o mencionado exemplo, entre tantos outros.

O que logo fica claro no texto é que o interesse de Freud nos sonhos deve-se ao fato de, para ele, esta fresta do espírito, como Machado de Assis batizou o sonho, constituir-se em um modelo do funcionamento do aparelho psíquico. As leis que ele aí descobre têm sempre uma validade geral. Quando fala da memória, por exemplo, diz que o modo como ela se comporta nos sonhos tem a maior relevância para qualquer teoria da memória em geral (p.20).

Se as imagens oníricas não são muito claras, ele lembra que na vida desperta as coisas não se passam de modo muito diferente:

Se alguém for a um passeio no campo – exemplifica –, e tiver uma percepção indeterminada de um objeto, poderá a princípio pensar que se trata de um cavalo. Numa visão mais aproximada, poderá ser levado a interpretá-la como uma vaca deitada, e a imagem poderá transformar-se em definitivo num grupo de pessoas sentadas no chão (p.30).
Os estímulos no sono funcionam do mesmo modo, e não está demais lembrar que durante o sono o eu retira os investimentos do mundo exterior (p.37).

Ao final da parte C desse primeiro capítulo, dedicado aos estímulos e fontes dos sonhos, na parte 4, Fontes psíquicas de Estimulação, Freud diz algo muito interessante:

É verdade que a predominância do cérebro sobre o organismo é asseverada com aparente confiança. Não obstante, qualquer coisa que possa indicar que a vida mental é de algum modo independente de mudanças orgânicas demonstráveis [...], alarma o psiquiatra moderno, como se um reconhecimento de tais coisas inevitavelmente nos levasse de volta aos dias da Filosofia da Natureza7 [a referência é aos estudos de Schelling sobre o panteísmo], mostrando assim, na verdade, quão pouca é a confiança na validade da relação causal entre o somático e o mental. Mesmo quando a pesquisa mostra que a causa excitante primária é psíquica, uma investigação mais aprofundada algum dia levará a trilha mais adiante e descobrirá uma base orgânica para o fato mental. Mas [e é preciso destacar esta última frase], se no momento não podemos ver além do mental,8 isto não é motivo para negar-lhe a existência.  
7. Ver nota 2, pp.43-4.
8. Idem n.2, p.44. Onde a tradução diz mental, nesse parágrafo, Freud alterna as palavras Seelich, que melhor se traduz por anímico, e Psychische, que melhor se traduz por psíquico.
Essa observação merece ênfase em um momento que vemos crescer o interesse pelas assim chamadas neurociências, para as quais apenas o cérebro é tudo, como se o cérebro pudesse falar de si mesmo. Uma das coisas que eu suponho tornarem-se evidentes, ao longo da leitura de A interpretação de sonhos, de Sigmund Freud, é que o homem é constituído fundamentalmente de palavras. Esse é seu elemento distintivo na escala animal. O fato de falar torna-o diferente e, até certo ponto, incompreensível.

Quando Freud busca caracterizar as distinções oníricas, em relação à vida desperta, uma primeira observação é a de que a cena de ação dos sonhos é diferente da cena da vida ideacional de vigília (p.50). A referência ele a toma de Gustav Fechner, que destacava a importância da outra cena. Nos sonhos, temos uma alucinação (p.52), quer dizer, vemos o que não está! É o que dá aquela sensação de que as coisas, de fato, aconteceram. Assim operando, nos sonhos, cada um funciona como em uma psicose, e, graças a isso, cada um pode manter, durante a vigília, seu estado normal. Havelock Ellis referia-se ao sonho como um mundo de vastas emoções e pensamentos imperfeitos. É dessa frase, aliás, que Rubens Fonseca retirou o título para um de seus romances.

Outra preocupação de Freud é com o sentido moral dos sonhos. Ele parte de uma expressão comum: Nem sonharia em fazer tal coisa (p.70), e a referenda com Platão quando diz que os melhores homens são aqueles que apenas sonham com o que os outros fazem, antecipando assim o valor da repressão na formação dos sonhos. Quanto ao porquê do sonho, tudo indica que sua função é a de proteger o sono (p.248)9, utilizando-se, na impossibilidade de uma linguagem conceitual, de uma forma pictórica (p.89) que serve de disfarce, com o objetivo de, assim, alcançar a consciência.
9.  O sonho é o guardião do sono.
É quando se ocupa das relações dos sonhos com as doenças mentais que, pela primeira vez, ele irá dizer que a característica comum dos sonhos é a de serem realizações de desejos (p.96), objetivo ao qual Freud dará especial atenção, especificando mesmo que os desejos que se realizam nos sonhos, ainda que de forma alucinatória, são sempre desejos infantis.

Já no capítulo II, quando trata do método para interpretar um sonho modelo, ele primeiro remonta aos antigos métodos populares de interpretação, dividindo-os em simbólico, quando se trata de interpretar o sonho como um todo, e decifração, quando se trata de examiná-los por parte. É para exemplificar o segundo título que ele traz o sonho relatado por Artemidoro de Daldis. Trata-se de um sonho tido por Alexandre, da Macedônia, quando sitiava a resistente cidade de Tiro. Perturbado com a longa duração do cerco, Alexandre sonha com um sátiro dançando sobre seu escudo. Aristander, o onirocrítico que o acompanhava, divide a palavra grega em duas, formando o trocadilho sa tyros, Tiro é tua, incentivando assim Alexandre a apertar o cerco e dominar a cidade (p.106, n.1).

O que ele chama de sonho modelo, por sua vez, é o conhecido como o sonho da injeção em Irma. Aí começam a aparecer os primeiros problemas notáveis de tradução. O primeiro deles é com a palavra solução que no sonho e em sua análise está corretamente traduzida desde o alemão lösung,10 mas que, anteriormente, ao final da p.107, é traduzida por remoção. Chamo a atenção para isso porque quando Freud usa repetidamente a mesma palavra é para dar-lhe um estatuto conceitual. A edição comemorativa corrigiu essa falha. Sobre o mencionado sonho, do qual podemos dizer inaugural, temos de dizer que foi tão importante para Freud, a ponto de ele imaginar que um dia, na casa onde teve o sonho, em Bellevue, durante suas férias, colocariam uma placa com os dizeres: Nesta casa, em 25 de julho de 1895, o Segredo dos Sonhos foi revelado ao Dr. Sigmund Freud.
10.  Na referida frase - [...] no tocante a essas estruturas (patológicas), o seu deslindamento (Auflösung) coincide com a remoção (Lösung) das mesmas, – os dois termos estão mal traduzidos. Seria preferível usar dissolução para traduzir Auflösung, tanto por acompanhar a construção semântica de solução, como por dizer melhor o que acontece: quando algo se dissolve, tal qual um comprimido dissolvido na água, ele não perde suas propriedades.

O capítulo III é dedicado ao estudo do sonho como realização de um desejo. Para tal, Freud começa examinando as contradições presentes nos sonhos, exemplificando com a história popular do empréstimo de uma caldeira, kessel, cujo vocábulo, no texto, aparece traduzido como chaleira – tradução, aliás, não corrigida em nenhuma das duas traduções mencionadas (pp.128 e 132 respectivamente):
Tendo sido acusado por seu vizinho de ter devolvido danificada a caldeira que tomara emprestada, o acusado defende-se dizendo, em primeiro lugar, que havia devolvido a caldeira em perfeitas condições, em segundo, que a caldeira tinha um buraco quando a tomou emprestado, e, em terceiro, que de modo algum havia tomado emprestado uma caldeira de seu vizinho.
As contradições nos sonhos parecem ter essas mesmas características, quais sejam: as de eximir o sonhador de qualquer responsabilidade pelo sonhado.

O quarto capítulo trata da deformação nos sonhos, da Entstellung, que, me parece, seria melhor traduzida por desfiguração, uma vez que esse é o sentido primeiro do termo alemão - a Entstellung -, e, mais ainda, por tratar-se, nos sonhos, de figuras. Preocupado em validar sua afirmativa de que os sonhos se constituem em realização de desejos, Freud coloca-se a seguinte dificuldade: como podem os sonhos aflitivos e de angústia (estes que provocam o despertar) ser realização de desejos? Para responder, ele começa estabelecendo uma distinção fundamental entre os conteúdos manifestos e os conteúdos latentes dos sonhos (p.144), respectivamente, os que aparecem no relato direto do sonho e aqueles associados a esse relato. E como não é fácil, ele ajunta um segundo problema – usando a mesma lógica, de que é mais fácil quebrar duas nozes juntas do que uma só –, qual seja, a pergunta pela origem da deformação onírica (p.145). A resposta vem exemplificada pelo sonho do Tio José, também conhecido como o sonho da barba amarela: o não reconhecimento da realização de desejo no sonho deve-se a alguma defesa contra o desejo (p.151). Considerando o aspecto infantil sempre presente nos sonhos, ele se lembra de um verso do Fausto, de Goethe:
O melhor do que tu sabes não te atreves
A dizê-lo aos meninos.11
11. Goethe, Fausto, Parte I, cena 4, vs. 1841/2.

E em seguida ele acrescenta que o sonho recebe sua forma mediante a ação de duas forças psíquicas, uma que constrói o desejo e outra que exerce uma censura sobre esse desejo. É a censura que provoca a distorção, para que, sob disfarce, possa penetrar na consciência. E entre os diversos disfarces utilizados pela censura, aparece com destaque o que Freud chama de identificação histérica, através da qual o personagem do sonho aparece como um outro que irá disfarçar o agente do sonho.  

No capítulo V aparecem o material e as fontes do sonho. No mais das vezes, para não dizer sempre, os sonhos têm sua origem em algum incidente do dia anterior, batizado por ele de resto diurno. Como sempre, os argumentos de Freud apoiam-se nos exemplos. Entre sua primeira lista de seis sonhos, o último consiste apenas em um curto fragmento: um homem de pé em um penhasco no meio do mar, à maneira de Böcklin; e, em seguida, suas fontes: Dreyfus na Île du Diable e notícias que recebera de seus parentes na Inglaterra (p.176). Suponho que, dito assim, o sonho fique ainda mais enigmático, pois, em primeiro lugar, já quase não se escuta falar de Böcklin, cuja referência, ao que tudo indica, é a do pintor Arnold Böcklin12 e ao seu famoso quadro A ilha dos mortos, Die Toteninsel (1907), do qual se supõe que Freud tivesse uma cópia em sua casa e que, quando uma das quatro versões do quadro foi posto à venda, durante a Segunda Guerra Mundial, a arrematou Adolf Hitler. O quadro retrata uma minúscula ilha, cercada de rochedos por todos os lados, menos um, cujo centro está ocupado por uma pequena mata de ciprestes e no seu porto atraca um bote com uma pessoa em pé. Estima-se que a figura seja o resultado da contração de uma pequena ilha próxima a Corfu, mais Ítaca e a ilha dos Feáceos, descrita em A Odisseia, e também o cemitério inglês, de Florença, onde o pintor teria enterrado uma filha morta precocemente. Temos de lembrar, depois, que Dreyfus e a Ilha do Diabo estavam em evidência naqueles dias porque os defensores do Capitão haviam conseguido um novo julgamento, em 1898, no qual, contudo, fora mantida a sentença condenatória, de 1894. Foi aí, a propósito, que Émile Zola publicou sua célebre carta Eu acuso, a qual terminou por possibilitar a localização do verdadeiro traidor e a libertação do inocente.13
12.  1827 – 1901.
13.  Não é demais lembrar que a primeira voz que se levantou para defender o Capitão Dreyfus, foi a de nosso patrício, Rui Barbosa, quando de sua estada em Londres.

É também nesse capítulo que aparece o famoso sonho da monografia botânica, cuja análise ocupa diversas páginas e ao qual Freud retorna a cada tanto. É na análise desse sonho que ele se utilizará do termo deslocamento, em alemão Verschiebung, para caracterizar um dos dois principais mecanismos do inconsciente (p.187). Aparece aqui também, pela primeira vez, a expressão trabalho do sonho, Traumarbeit, ao qual dedicará todo o sexto capítulo, o mais longo do livro. É esse trabalho onírico que torna possível o deslocamento de um conteúdo latente, reprimido, para um resto diurno, desprovido de importância aparente, mas carregado de um alto valor psíquico (pp.192 e 326). O segundo dos principais mecanismos do sistema inconsciente, anunciado em uma nota de rodapé (p.190), a condensação, Verdichtung, será trabalhado extensamente no primeiro apartado do próximo capítulo.

Tendo aprendido a escrever com a leitura dos clássicos, Freud sabe que a introdução de um assunto importante não pode ser dada de chofre, e então, depois de toda uma série de sonhos inocentes, ele diz que o motivo de censura dos mesmos é, obviamente, o fator sexual, cujo exame, naquele momento, terá de deixar de lado. So clever! não é verdade?

De seu exame do material infantil como fonte dos sonhos, quero destacar-lhes dois momentos: um em que, para compensar uma fraqueza de seu pai, ele se identifica com Aníbal, cujo genitor, Amílcar Barca, exigiu-lhe que jurasse tirar vingança dos romanos (pp.203-10), e outro, quando relata o sonho com o Conde Thun (p.222). Esta passagem, aliás, serviu de estímulo para Nicholas Mayer escrever o romance The seven-per-cent solution, levado à tela, posteriormente, pelo Diretor Robert Ross, em 1976. Aparece aí o Dr. Watson levando Sherlock Holmes, viciado em cocaína, para ser tratado pelo Dr. Freud, em Viena. No interregno, indo relaxar em um clube, ao passar por um corredor, Freud sofre um encontrão de um tipo grosseiro, quando ambos ficam indignados. Mais ofendido do que Freud, o Conde Thun pergunta: - O Sr. sabe quem eu sou? E Freud responde: - Não! Mas sei o que o Senhor é, e, para mim, isso basta. Cada vez mais ofendido, o Conde, com um gesto, mais de arrogância que de grandeza, deixa a Freud a escolha das armas para um duelo, e o Freud de Robert Ross, sem sofrer, escolhe raquetes de tênis.

Perdoem-me a digressão, mas o aparente conflito entre as fontes do sonho – se estão na infância ou no dia anterior ao sonho –, Freud resolve dizendo que o conteúdo manifesto está ligado às experiências recentes e o conteúdo latente às experiências mais antigas (p.232). Quem assistiu ao filme de Chistopher Nolan, Inception, de 2010, traduzido no Brasil como A Origem, lembrará que o último sonho dentro do sonho representava a cena mais antiga. Pois é assim que Freud termina este apartado sobre as fontes infantis dos sonhos: as camadas mais inferiores são as mais antigas.

Quando Freud examina as fontes somáticas dos sonhos, ele dá um exemplo próprio, cuja fonte estava em um furúnculo, do tamanho de uma maçã, nascido na parte anterior do escroto. No sonho (p.244), ele montava um cavalo cinzento, etc. e tal, e na análise ele conta uma história muito engraçada, porém apropriada. É a história de Itzig, o cavaleiro dominical (p.246). Quando lhe perguntaram para onde ia, Itzig respondeu: - Não pergunte a mim! Pergunte ao cavalo! E foi perguntando ao cavalo que encontrou a interpretação do sonho.

A tradução do último exemplo de um sonho, cuja fonte está no próprio corpo (p.253), requer uma correção em ambas as edições brasileiras. Em português, lemos aí que Freud ocupava em Viena dois pavimentos de uma casa. Pois não é bem assim! Quando escreve, Freud diz zwei Wohnungen, duas habitações, e é verdade, mas ele estava se referindo a dois apartamentos, e eles estavam situados no mesmo primeiro pavimento, ao qual se tinha acesso por uma escada comum a todos os apartamentos do prédio: em uma das habitações estava a residência de sua família e, na outra, seu consultório e biblioteca. Foi apenas no começo deste século XXI que o Museu Freud passou a usar também uma parte do piso térreo dessa mesma casa.

Quando fala dos sonhos típicos, Freud começa a introduzir o conceito de elaboração secundária, o qual irá examinar com detenção no próximo capítulo; esse conceito dará conta da construção ordenada e diacrônica do sonho, o qual, em seu estado real, tende a ser sincrônico (p.334). Faço essa observação porque o título dessa parte pode nos enganar: na verdade, enquanto parece falar de certa tipicidade, que não interessa para nada, ele vai introduzindo dados teóricos da maior relevância, como quando diz que quando um a e um b são escritos sucessivamente, precisam ser lidos como uma única sílaba ab (p.263).14 Ora, é em passagens assim que Lacan se apoia para dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem.
14.  Ver também a p. 335.
É dentre os sonhos típicos, ao falar dos sonhos sobre a morte de pessoas queridas, que Freud menciona, pela primeira vez, em público, suas ideias sobre o Édipo (p.277). Destaco o adjunto em público, pois, anteriormente, comentara o tema apenas epistolarmente com seu amigo Fliess. Para que possam ter uma noção de como essas ideias se desenvolvem lentamente, pari passu, vejam que a expressão complexo de Édipo só foi surgir dez anos mais tarde (em Contribuições à psicologia do amor), e por influência de Gustav Jung. E quando Freud fala em Édipo, ele não pode deixar de falar em Hamlet, tragédia construída sobre o mesmo estofo, porém, com uma diferença significativa: o avanço secular da repressão na vida emocional da espécie humana (p.280).

E então o trabalho do sonho, Die Traumarbeit, o longo capítulo VI, no qual, logo na abertura, ele diz que é dos pensamentos oníricos, vale dizer, do conteúdo latente dos sonhos, e não de seu conteúdo manifesto, que depreendemos sua lösung, sua solução, como lhes antecipei, enunciando que, por coerência, iria traduzir sempre o termo, pois a primeira versão brasileira preferiu dizer significado e a segunda, sentido. Solução carrega consigo a denotação de enigma. Como bem poderia ter dito Édipo frente à Esfinge: – Enigmas, sempre enigmas!

É nesse capítulo que Freud trabalha extensamente os mecanismos de condensação, de deslocamento, de visibilidade15 e, também, os símbolos.

A possibilidade de condensação permite a construção de um sonho a partir de toda a massa dos pensamentos oníricos (p.303). O símil Freud toma da mesma cena quatro do Fausto, que aqui lhes relato na tradução de Agostinho D’Ornellas. A fala é de Mefistófeles:
Verdade é que a fábrica de ideias
A um tear se assemelha: cada piso
Vai mil fios mover que se entretecem
Escondidos à vista. Acima, abaixo
Correndo a lançadeira, a cada golpe
Prende mil ligações.16
15.  Está em jogo, aqui, o que Freud chama de Rücksich auf die Darstellbarkeit traduzido pela Imago como Consikderação de representabilidade. A tradução está bem, mas prefiro dizer visibilidade pela preferência, daquele que sonha, ao que é visível. Há também quem prefira o termo figurabilidade, também cabível.
16. GOETHE, W. Fausto. Tradução de Agostinhos D’Ornellas. Coimbra, Atlântida, 1958. - I, 4, vs. 1915-22.

Sabem que os exemplos se sucedem, às pencas e variados, mas talvez no último exemplo ele tenha conseguido condensar a maioria deles, ao dizer que os truques linguísticos das crianças, tratando as palavras como se fossem objetos e inventando novas linguagens e formas sintáticas artificiais, servem para mostrar a elaboração do mecanismo (pp.323-24).


O deslocamento é o que possibilita ao essencial (wesentlich) dos pensamentos oníricos não estar representado nos sonhos (p.325), incluídos aí a inversão e a transformação no contrário (p.348).

A característica mais comum dos sonhos provavelmente seja a de que eles aparecem, de forma preponderante, por meio de imagens visuais.  Os preferidos são os que admitem imagens visuais (p.366). Daí as pessoas pensarem logo que os símbolos empregados tenham um valor universal, mas Freud deixa claro ter verificado isso em muitos poucos casos (p.368).

Um exemplo muito interessante foi o aparecido em um jornal húngaro humorístico, chamado Fidibusz. Trata-se do Sonho de uma governanta francesa (p.391-3):

 

Uma jovem mãe resolve o pedido de seu filhinho para fazer xixi aproximando-o a um poste. O xixi do menino, contudo, é tão copioso que, ao correr pela sarjeta, logo se transforma em um rio onde navegam barcos e logo em um mar no qual singra um transatlântico. É quando a mãezinha - provavelmente pelo sonoro apito do navio - acorda com o o choro do menino, premido pela necessidade de urinar, ou já com as fraldas molhadas.

Antes de terminar, quero comentar, ainda que rapidamente, aliás, como tudo o mais mencionado até agora, a questão dos afetos nos sonhos. Como diz Freud, quando se é atacado por um ladrão, em um sonho, os ladrões são imaginários, mas o temor é real (p.492). Isso se deve a um fator muito simples: quando as experiências e sensações de nossa vida passam a fazer parte do psiquismo, elas aí se inscrevem por meio de duas representações, uma chamada de representação palavra e outra de representação afetiva, e uma das diferenças entre elas é que enquanto a representação palavra pode sofrer a ação da repressão, a afetiva nunca sofre, por isso muitas vezes ficamos tristes ou contentes sem saber por quê. Como não se trata de uma situação agradável, em nenhum dos casos, não é raro que, para nos justificar, estabeleçamos um falso enlace com alguma outra representação que tenha tido a sorte de também alcançar a consciência.

Depois vem a elaboração secundária, a qual trata do ordenamento lógico das imagens, de modo a transformá-las em discurso, e então surge o capítulo eminentemente teórico, o sétimo e último.

Entre outras tantas coisas, ele diz aqui que o texto de um sonho deve ser tratado como um texto sagrado (p.548), quer dizer, um texto onde todas as palavras têm o mesmo valor. Se a Psicanálise é desconfiada, é porque uma de suas regras entende, no que perturba (stört) a continuação (Fortsetung) do trabalho, uma resistência (p.551). As traduções preferem, em vez de perturba, a forma mais drástica, interrompe, e no lugar de continuação, preferem progresso. Quero crer que Freud usa Fortsetung de caso pensado, pois ele tem demonstrado em outros lugares saber que não há progresso: o que se ganha por um lado, perde-se pelo outro!

Depois de ter examinado as diversas fontes do sonho, ele não deixa de reconhecer a presença, em todos eles, de um ponto obscuro ao qual nunca se alcança, usando a figura do cogumelo: tal qual ele, o sonho nasce também de seu micélio (p.560).

Para terminar, quero apresentar ainda o modelo de Freud para compreender a formação do sonho. A partir da figura que entre os analistas chamamos de pente invertido (Fig.1), de cuja primeira forma é preciso retirar os dentes intermediários e retificar a curva inferior (elementos alterados em ambas edições brasileiras), logo
 


identificaremos a figura básica de um arco reflexo: no lado esquerdo a extremidade sensória (Pcpt) e no direito a extremidade motora (M) (pp.573 e 519). É assim o funcionamento do aparelho psíquico na vida de vigília. Para torná-lo um pouco mais complexo, Freud introduz algumas modificações nessa figura (Fig.2): nela, ele introduz os dentes correspondentes aos traços de memória (Mnem),

 


próximos da extremidade perceptiva, e depois, em uma terceira figura, introduz os sistemas pré-consciente (Pcs) e inconsciente (Ucs).16 Quer dizer, enquanto na vigília o aparelho psíquico segue essa direção progrediente – para usar uma tradução proposta por Roberto Harari (melhor que progressiva) –, passando pelo inconsciente até


 
 
chegar à consciência; durante o sono, o caminho percorrido pelos pensamentos oníricos é inverso, seguindo um caminho regrediente (melhor que regressivo para traduzir rückläufigun – p.578). Abolida a motilidade durante o sono, no lugar da percepção temos uma alucinação. Eis o sonho.
16.  Os parênteses referem-se aos símbolos ingleses.
Porto Alegre, 21 de outubro de2010.
Reescrito em 21 de maio de 2024.

Caricatura de Ralph Steadman









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