Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A ODISSÉIA DE HOMERO
BY DONALDO SCHÜLER


Depois de duas traduções ao português, por Manuel Odorico Mendes, no século XIX, e Carlos Alberto Nunes, no século XX, aparece agora, no séc. XXI, a de Donaldo Schüler. Trata-se de uma edição bilíngüe, em três volumes concernentes cada um deles a cada uma das três partes nas quais a obra consensualmente tem sido dividida: I – Telemaquia (157 pp.); II – Regresso (279 pp.) ; e III – Ítaca (373 pp.). A editora é a L & PM, de Porto Alegre, no formato pocket book. Cada um dos volumes abre com uma introdução do tradutor (a mesma nos três volumes) e fecha com comentários também do tradutor a cada uma das partes. No primeiro volume temos, então, Odisséia – O poema das auroras; no segundo Odisséia, a epopéia das auroras(2); e no terceiro Odisséia, a epopéia das auroras (3). Segue-se ainda, em cada volume, uma breve nota sobre o Tradutor. Elogio a editora pela iniciativa de editar uma obra desta importância.

Os escólios de Donaldo Schüler, por si sós, valem a obra. Aí, as auroras, de róseos dedos, servem de limite aos diversos passos da epopéia, entremeados pelos comentários pessoais do Professor.  Depois de conhecer esta tradução, Paul Valéry por certo jamais perguntaria, nem em voz baixa, "Connaissez-vous une chose plus ennuyeuse que Virgile?", e André Gide tampouco responderia: "Oui, Homère." - como nos conta Otto Maria Carpeaux. A tradução  do Prof.  Donaldo é para ser lida e degustada.

O título do primeiro volume deriva de Telêmaco
( - Telémakhos), geralmente interpretado como o que luta ( ) ao longe ( ). Sua etimologia, contudo nos permite ler, conforme Junito Brandão, o que está distante do combate ou, ainda, aquele cujo pai combate ao longe.

Para acompanhar esta epopéia, entendo não se possa desconsiderar nenhuma das alternativas: Telêmaco é o filho de Odisseu, o astucioso
( )[XVII,192] rei de Ítaca, braço direito de Agamênon na guerra de dez anos contra Tróia. Quando Odisseu parte para a guerra, Telêmaco é ainda pequeno, talvez ainda de colo. Terminada a guerra, é um adolescente preocupado com o pai. Enquanto todos os outros chefes militares sobreviventes voltaram para casa, de seu pai não se tem nem notícias. A corte, agora, é literalmente dos cortejadores da rainha Penélope - esposa de Odisseu e sua mãe - que comem e bebem à tripa forra, consumindo dia após dia, ano após ano, o vinho, as vacas, os porcos e as cabras de seu pai, sem falar das escravas, das quais usam e abusam.

É neste clima que se arma a trama da história, e é a partir deste personagem que se constrói a epopéia.

A odisséia do pai é um requerimento do filho. O império da desordem é  conseqüência da ausência do pai (I, 231-2). Ele precisa retornar, vivo ou morto. Elabora-se o conceito de retorno - o
nóston . Se não estiver vivo para retomar a ordem, seu regresso terá de ser mesmo em efígie para receber as devidas honras (I, 239-40).

Na tradução do Prof. Donaldo li algumas coisas que até então não tinham chamado minha atenção. Uma delas é esta: A Odisséia, como uma espécie de contraponto da Ilíada, onde os personagens são múltiplos, é tida como a narrativa das aventuras de um personagem. Seu nome: Odisseu – a tradução latina para Ulisses deve-se ao fato de em algumas versões o delta presente em Odisseu aparecer como um lambda
( ). Outra é que esta história só é relatada em função da necessidade de Telêmaco: é pela busca do filho que somos levados a valorizar a rapsódia do pai.

Suspeito que Fenelón, no seu Aventuras de Telêmaco, tenha chegado próximo desta idéia, mas ele ainda não conhecia Freud nem Lacan, e assim lança o jovem Telêmaco em um périplo pelo Mediterrâneo a imitar as aventuras do pai, acompanhado de um Mentor por ele metamorfoseado em um velho e compreensivo mestre. Foi Fenelón, aliás, quem deu à palavra ‘mentor’ o sentido hoje conhecido. O que Fenelón não deixa transparecer, contudo, é que pela boca de Mentor, o fiel amigo de Telêmaco, fala uma deusa de olhos glaucos.

O Prof. Donaldo também valoriza a sabedoria de Mentor, mas não se ilude, ela vem de Atena. Aparentemente insatisfeito com o tom verde-claro-azulado ( ) dos olhos de Atena, prefere dize-los misteriosos, vivos, abertos, penetrantes e mesmo corujosos, afinal, a coruja ( ) - de poderes divinatórios e presente no seu nome - a representa, e nos olhos corujosos a coragem também se faz escutar. Os epítetos proporcionados a Atena através de seus olhos – espelhos da alma – são signos de sua inteligência apurada, de sua sabedoria. Assim, as características sempre presentes em Mentor são as de Atena, e Telêmaco as reconhece (I,323).

Na segunda parte, conhecida como Regresso, aparecem as aventuras de Odisseu.

A pedido de Zeus, Calipso libera Odisseu. A bordo de uma jangada, ele enfrentar o mar, perseguido por Posidon, até alcançar a ilha do feáceos onde é recebido por Nausicaa e, em seguida, por seus pais, o rei Alcínoo e a rainha Arete. O relato de suas aventuras é feito para eles. Desse modo, o que nós temos é uma narrativa do relato das aventuras e não a narrativa das aventuras propriamente ditas.  Qual a importância disso? Não esqueçamos que Telêmaco sai de casa em busca de notícias; ele quer ouvir relatos.

O clima para o relato, aí, é ideal: Alcínoo garante a tranqüilidade e a liberdade de expressão. O nome dessa realeza o atesta: Alcínoo é um derivado do verbo
  , “repelir um inimigo, afastar o perigo, defender, proteger”, e de  , “espírito, inteligência”, enquanto Arete ( ) deriva do verbo  , “suplicar, pedir através de preces”. É como se Homero nos avisasse: - O que se dirá aí, é preciso ouvir com inteligência! E o relato enriquece o narrador. Coberto de dádivas, Odisseu é conduzido até sua própria ilha. Viaja dormindo e ao despertar, como quem acorda de um sonho, está só, em solo pátrio, os barqueiros já se foram e temos espaço para a terceira parte da epopéia, conhecido como Ítaca.

Em Ítaca, temos o encontro de pai e filho, e a retomada dos bens e da esposa.  

Quando do lançamento da tradução, em Porto Alegre, no Estúdio Clio, a mesa apresentadora discutiu duas questões verdadeiramente perturbadoras: por quê um clássico e o lugar do destino. A mim parecem entrelaçadas.


Os argumentos apareceram referendados por Ítalo Calvino. Ótimo! Calvino arrola quatorze propostas de definições, quer dizer, propostas em nada definitivas; e mais, propostas, cada uma delas, por si só, insatisfatórias. Entretanto, em uma delas, na sexta, ele diz assim: Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. E esta me parece uma característica bem interessante para pensar no por quê de um clássico.

Lembrou-se também da presença dos vários níveis de leitura como requerimento para um clássico, e é verdade, pois já na primeira linha da Odisséia aparece o caráter polítropon do homem - traduzido como 'multifacetado'.

Um texto torna-se clássico também por constituir-se como resposta às perguntas do homem. E é nesta leitura que me parecem juntar-se os dois aspectos destacados na apresentação da Odisséia, sua estrutura clássica e sua preocupação com o destino. Contudo, se a ocupação com o destino aparece também logo no início da Odisséia
[v. 35] através de Moros (móron) - traduzido por Junito Brandão como 'sorte' - está longe do caráter de resposta, aparecendo antes como algo a ser afrontado. O que faz de um livro um clássico é, antes de tudo, o encaminhamento de nossas questões de sempre, o mais das vezes por vias indiretas, através de metáforas ao alcance do maior número possível de leitores. Anaxágoras (citado por Aristóteles) dizia só podermos avaliar a vida de um homem depois de terminada. Como não podemos ver o futuro, um clássico, quer dizer, um texto que valha a pena, precisa reconhecer esta impossibilidade e trabalhá-la entre pianíssimo e fortíssimo, ou ao contrário, como preferia Tchecov, deixando as respostas sempre em aberto. Inscientes do futuro, temos de desentranhá-lo deste monstro voraz conhecido por nós como Passado.

Poder reestruturar as velhas questões será sempre uma nova conquista, esperança frente a qual somos sempre népioi.  


Luiz-Olyntho Telles da Silva

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