Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

Abertura

Biografia

Publicações

Traduções

Textos:
 - Psicanalíticos
 - Crítica
 - Contos
 - + recente

 Fortuna crítica

 Comentários

 Atividades

 Links

 Contato

O senhor embaixador
ERICO VERISSIMO
Prólogo de Carlos Appel
São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 434p.

Comentários de Luiz-Olyntho Telles da Silva
www.tellesdasilva.com

Antes de começar, minha homenagem aos cidadãos de Porto Alegre por terem sabido reconhecer um escritor da altura de Erico Verissimo,
 batizando com seu nome um Centro Cultural
.

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
(CHICO BUARQUE, Apesar de você)

De quantas maneiras um cidadão pode contribuir para com a coletividade? Inúmeras, sem dúvida. Navegamos em um barco no qual há muito a fazer, desde as caldeiras até a determinação da rota, sempre difícil, para a qual todas as informações são importantes.

Em 1965, em pleno golpe militar, Erico Verissimo, com a coragem de um bravo, amplia nossos horizontes.

Quando a liberdade de expressão estava restrita, encontrou uma maneira de deslocar a atenção da censura para outra geografia, e aí então contar sua história. Um pouco como aquele sujeito, especialista em anedotas de português, que, ao participar de um concurso de chistes, foi logo avisado de que histórias de português não valiam. E de chinês, valem? - perguntou o humorista. De chinês valem – respondeu o árbitro. Pois então vou contar uma história de chinês: Era uma vez dois chineses, um se chamava Juca e o outro Manuel...

Como veem, esse romance não é isento de humor. Muito ao contrário. Ao descrever a esposa de um militar, por exemplo, diz que por vezes ela, a Senhora Ninfa Ugarte, uma lúbrica ninfômana, usava tantos berloques, medalhas e pregadores, que chegava a lembrar o Marechal Goring nos seus tempos de festa e glória (p.83).

O enredo da história é simples, e, se me permitem a ironia, até banal: trata-se da luta pelo poder.

Será esse o nosso interesse no texto?

Embora não haja motivo para excluí-lo, diria que nosso interesse primeiro será o de ver como a história vai se estruturando para nos mostrar isso. E é aí que aparece a grandeza do texto! Digo isso, mesmo embora alguns me tenham reclamado, ao começo da leitura, que o livro era chato, que tinha muitos personagens... E é verdade, quanto ao número de personagens é verdade. E é claro que nem todos têm que gostar do romance. Quanto ao reconhecimento de seu valor, isto já é outro assunto.

Comecemos então pelos personagens. Como já vimos, são diversos, mas existem os principais, os coadjuvantes e os secundários. Embora tudo pareça girar em torno ao personagem título, não arriscaria dizer de Gabriel Heliodoro, o sol dourado do Sacramento, sua única figura principal. Repararam que o primeiro a entrar em cena foi o jornalista americano batizado, de modo sui generis, como Bill Godkin? A Maria da Glória, aliás, chamou-me a atenção para o fato de que a ausente “g” final, que permitiria traduzir seu nome claramente por Deus rei, na verdade está já presente, joyceanamente, no início do nome. Afinal, não foi Joyce quem detectou em God um palíndromo de dog? Godkin está presente do início ao fim. O segundo é o secretário da embaixada brasileira, Orlando Gonzaga, que embora não apareça muito, também está sempre presente, e o terceiro é o Gabilodoro. Como diz a ciranda, quando acorrem três cavalheiros, é ao terceiro que Tereza dá a mão! As atenções convergem sempre para ele e seria fácil ver nele o protagonista. O inquieto Pablo Ortega, Secretário da Embaixada da República do Sacramento, que muita sorte com as mulheres não tem, só entrará em cena depois de descrita a sede da Embaixada, cenário de inúmeras cenas.

Serão esses quatro, então, os personagens principais? Não e sim. Sim, porque os mais destacados são quatro, e não, porque os mais destacados não são exatamente esses. Estão lembrados de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, que são quatro? Embora a história gire em torno ao rei e a rainha, até o Cardeal Richelieu, a eminência parda que faz de tudo para preservar seu rico lugar, tem mais entradas, enquanto os verdadeiros protagonistas são os Mosqueteiros. Mas se queremos encontrar em Dumas uma influência, quem será o quarto mosqueteiro?

Uma vez que os outros personagens já não merecem um capítulo exclusivo para sua descrição, como encontraremos aqui o arrivé d’Artagnan? Se os aparecimentos do Embaixador são sempre resplandecentes, os outros três, Godkin, Gonzaga e Ortega, brilham pela amizade. Mas tem ainda outro personagem, o qual, se bem entre em cena, diretamente, poucas vezes, também se caracteriza pela amizade e é lembrado pelos demais personagens a cada tanto: Leonardo Gris. Voltaremos a ele e ao tema dos protagonistas.

No modo como Erico Verissimo vai criando os personagens e entretecendo suas vidas, podemos reconhecer a influência do romance Contraponto, de Aldous Huxley, no qual, em um período de pós-guerra, os personagens mais dispersos vão aos poucos se aproximando de um ponto comum. Destaco essa influência por ser ela a mais facilmente reconhecível. Erico traduziu o romance de Huxley para a Editora Globo e acabou tendo boa parte de sua própria obra influenciada por este eminente escritor.

E como estamos falando em personagens, preciso mencionar outro, pois, afinal, o autor de certo modo lhe dá um status de personagem ao dedicar-lhe todo um capítulo: trata-se da sede da Embaixada do Sacramento (e não vou falar de Miss Ogilvy). E a verdade é que ela nos conta coisas. Primeiro. Fica quase em frente da Embaixada inglesa, cujos telhados e chaminés o Senhor Embaixador admira, uma agradável metáfora arquitetônica a dizer de sua admiração pela política daquele país. Comprada de modo fraudulento, parece-se com a Dumbarton House, enquanto a Chancelaria, construída a posteriori, mostra reminiscências do Palácio Rucellai, de Florença. A característica comum entre as duas, eu diria, é o grande número de Janelas. Enquanto a primeira tem o que se costuma chamar de um estilo federal, característico das construções americanas entre 1780 e 1830, a segunda reflete o estilo florentino quatrocentista. Verdade que esse palácio foi construído por Leon Battista Alberti, a quem devemos os primeiros estudos sobre o claro-escuro. Localizaremos aí um princípio de ponto contraponto? Mas é interessante também observar o brasão de armas da família Rucellai – e eu acredito que meus colegas lacanianos vão gostar desta informação –: construída duzentos anos antes do milanês Palácio Borromeu, essa família florentina já usava em suas armas o famoso laço de três anéis. Mas como estamos no plano dos deslocamentos, precisamos reconhecer que o que aqui está apenas insinuado, aparece registrado logo no capítulo seguinte: a Embaixada do Brasil também fica na Massachussets Avenue. Precisamente no número 3006. Aí está a grande mansão conhecida como McCormick House, comprada pelo governo brasileiro, em 1934, e hoje é a residência do embaixador. Bem mais tarde, em 1971, – o que mais uma vez mostra como os escritores andam na frente1 –, foi construída ao lado, tal como na Embaixada do Sacramento, a Chancelaria; no nosso caso, segundo um projeto moderno de Olavo Reding de Campos. Nos registros da compra de nossa Embaixada não se faz referência a nenhuma transação fraudulenta, o que é procedimento comum, isto sim, na fictícia República do Sacramento. Isto também é contraponto!

E que dizer do contraponto entre as atrocidades políticas e a leveza da poesia? O período histórico do romance está bem delimitado: vai de abril a novembro de 1959, da primavera ao outono. Enquanto fora de cena o Presidente Eisenhower reflete sobre os destinos da Revolução Cubana, eclodida ainda no início daquele ano – Fulgêncio Batista, apoiado por bastante tempo pelo governo americano, fora derrubado por Fidel Castro –, em cena, as recordações de Bill Godkin vão da entrevista com Getúlio Vargas logo no início de seu primeiro governo, em 1930, até o final desse governo, em 1945. Pelo Bogotazo, de 1948, já não há grande interesse. Embora quase não se mencione a política brasileira no romance, exceção feita a uma compra fraudulenta de feijão podre (p.218), o que no fundo não passa de um problema apenas para a consciência do Secretário Orlando Gonzaga, os movimentos revolucionários citados dão-se todos dentro desse período, a começar com a revolução de Sandino, na Nicarágua, entre os anos de 1923 a 1933, cuja morte tem mais de uma versão; a sórdida guerra do Chaco Boreal, em 35, por um petróleo que não existia. A deposição de Castillo, na Argentina, por um grupo de oficiais liderados por Perón, em 1943. Todos esses litígios que serviram de pano de fundo ao momento revolucionário vivido no Brasil, durante o primeiro governo de Getúlio, são lembrados por Erico para caracterizar a América do Sul como um barril de pólvora sempre prestes a explodir. De outro lado, como um bálsamo para esta compreensível dor de cabeça, os encontros de Pablo Ortega com a delicada Kimiko Hirota, dedicados todos eles ao haicai. Pois o haicai entra por essa época no Brasil, por iniciativa de Monteiro Lobato, em 1906. Praticado por alguns dos modernistas de 22, foi tornado amplamente conhecido, por volta de 1940, por Guilherme de Almeida que os publicava em O Estado de São Paulo. É depois disso que Erico, ao mesmo tempo em que Manuel Bandeira, João Guimarães Rosa, Mário Quintana e Haroldo de Campos, começam a traduzir, criar e comentar o haicai,2 sempre com versos de 5 – 7 – 5 silabas. Em O senhor embaixador, Erico inclui sete haicais. O primeiro, enunciado por Miss Hirota, ainda no capítulo 5, sofre uma nítida influência de Arakida Moritake3:
PRIMAVERA
Libélulas? Qual!
Flores de cerejeira
Ao vento de abril.


No último, já ao capítulo 47, de um total de 49, quando já não se pode esquivar da morte, a enunciação é de Pablo Ortega:
JARDINEIRO INSENSATO
Passou a vida
A cultivar sem saber
A flor da morte.

Como se vê, o haicai é uma pequena joia simbolista: a presença de uma flor, o mais das vezes de cerejeira, representa sempre a primavera, o grilo sugere a noite, o cuco o entardecer e o sino as primeiras cores da manhã. É preciso encontrar sempre a palavra mais adequada para expressar o que se quer dizer. E essa é sempre a preocupação de Erico Verissimo ao longo de seu texto.

Em nítido contraste com as senhoras americanas que do espanhol só aprendiam frases simples, como Buenos días, amigos!Hasta la vistaQue rico!Muchas gracias! (p.125), ou da sacramentenha que no inglês não passava de um Ai ême jus lúquingue, como diz Ninfa Ugarte em uma loja americana (p.81), as expressões de Erico são precisas. A mãe de Gabriel Heliodoro, por exemplo, tinha os olhos sempre apostemados (p.38) – um modo de dizer tanto dos olhos infectados como de seu abatimento moral; quando o embaixador se apresenta ao Presidente dos EEUU, este o espera junto à educada porte cochère (p.73); o esfuziante Titito, chegado a algumas intimidades com o General Ugarte, pergunta-lhe se vai comprar um chinó (p.79) para cobrir a calva; no Sacramento, era preciso substituir a ronceira (p.149) estrada de ferro por outra mais rápida; no diálogo em que Leonardo Gris diz só tolerar a violência como resposta a violência, Pablo contra-argumenta: Com um grão de sal [talvez]? (p.194) expressão na qual reconhecemos a latina cum grano salis, cujo sentido é o de com um pouco de graça, e que abre a possibilidade de Gris melhor se expressar: - Talvez com uma gota de sangue. Necessitado de descrever os brilhantes cabelo e pescoço da gorda amante (porque o papel de erastés é dela!) do gigolô Aldo Borelli, Erico usa para o primeiro o adjetivo reluzente, e para o cachaço da senhora, à guisa de sinônimo, o adjetivo nédio (p.215); para Pablo Ortega, apaixonado pela adorada Miss Doremus, os ruídos das portas dos ônibus americanos são sussurrantes bufidos (p.271); Pancho Vivanco, dormitando no sofá a imaginar a esposa nua nos braços do amante, com sua chegada, levanta-se de inopino, os olhos piscos (p.293); para falar de outra vítima de um despertar súbito, como foi o caso de Gabriel Heliodoro, chamado ao telefone pelo Presidente Carrera, antes do raiar do dia, diz que foi estremunhado (p.309); Jorge Molina, depois de desiludido com tudo, preparando-se para o suicídio, depois mesmo de ter rasgado todo o seu trabalho para a biografia do mui querido por todos D. Pánfilo Arango y Aragón, vendo nas pílulas que lhe faltavam tomar uma ponte para o outro lado, lembra um piquenique de sua meninice e de um rio que atravessou sem se molhar graças à presença de alpondras (p.368); ao alcançar o poder, o líder revolucionário Miguel Barrios, ao justificar para Pablo Ortega os fuzilamentos públicos para gáudio do povo, diz que a burguesia necessitava, a título de repreensão, de um escarmento (p.378).

A esta altura me perguntarão por que me alongo, ou quem sabe, para usar outro termo de Erico, por que perlongo (p.412) na lista de exemplos? E a resposta é simples, servem a dois motivos: um é o de fazer pequenos cortes ao longo do texto, contemplando várias cenas e personagens; outra é para tomá-los como argumento para mostrar outra importante influência sofrida pelo autor. Refiro-me à preocupação de Gustave Flaubert, que se tornou conhecida como mot juste. Flaubert ensinou Guy de Maupassant, por exemplo, a ver uma árvore, observando-a longamente em todos os seus detalhes, até descobrir um que ninguém observara, e depois, em vez de descrever a árvore inteira, expressa por este pormenor, a árvore se tornará visível. Assim, quando Pablo Ortega examina a adorada Glenda Doremus, com os olhos do pintor que ele é, sua atenção fixa-se nos poros: Sua pele não tinha esse branco de poros demasiadamente abertos, comum em certas mulheres muito claras e que, quando expostas ao sol, adquire manchas que lembram a parte machucada das frutas. A epiderme de Glenda sugeria antes uma pétala de magnólia, não só pela contextura cetinosa como pelo tom levemente creme (p.249). Pronto! Podemos vê-la! É assim com todos os personagens, tanto pela descrição dos detalhes físicos e morais, como por sua atuação.

E neste campo – da atuação –, meu destaque é para o Dr. Leonardo Gris. Verdade que mesmo sendo um personagem importante, há poucos dados sobre sua vida. Ex-Ministro do deposto governo anterior, de Júlio Moreno, vive em Washington como exilado político, dá aulas na American University e toca violoncelo. Se quisermos conhecê-lo melhor, teremos de recorrer às figuras nas quais Erico Verissimo se inspirou para construí-lo: entre elas, a principal me parece ser a do Dr. Jesús Galíndez,4 como nos indica às pp.283 e 399: Nascido na Espanha, em 1915, ele logo se interessou pela ciência sociopolítica. Inscrito desde seus 17 anos no Partido Nacional Vasco, aos 18 apareceram suas primeiras publicações, sempre preocupado com a situação política dos seus conterrâneos. Instalada a Guerra Civil Espanhola, em 1936, no mesmo ano em que se licencia em Direito, ocupa-se da assessoria jurídica na Seção de Presos e Desaparecidos. Graças a alguns contatos, em 1939, exilou-se na República Dominicana, onde foi Professor de Ciências Jurídicas, entre outros, de Ramfis Trujillo, o filho mais velho do Ditador Leónidas Rafael Trujillo. Sem nunca ter deixado de ocupar-se com os direitos Vascos, teve, em 1944, sua primeira obra premiada em um concurso comemorativo aos cem anos da Rep. Dominicana. Em 1946, por ter entrado em desacordo com o Trujillo que havia assassinado o líder de uma greve na qual ele estava encarregado das negociações, muda-se para Nova Iorque, e aí, trabalhando com líderes do PNV, consegue, junto às Nações Unidas, a condenação do Governo Franquista, continuando a escrever sobre a situação política dos Vascos e recebendo ainda outros prêmios literários. Em 1956, ele apresentou à Universidade de Colúmbia sua tese, A era de Trujillo: um estudo casuístico de Ditadura hispano-americana, e eu acredito ter sido nela que Erico se inspirou para construir o discurso que o Dr. Leonardo Gris apresentou ante o Departamento de Ciências Sociais da American University, em Washington, no mês de maio, conforme anunciara na conversa com Pablo Ortega, ainda no cap. 9.

O professor de voz vaga apresenta o palestrante,
eximindo-se de qualquer responsabilidade por suas palavras.

O discurso (com toda a mis en scène) -recitado na ocasião por
 Luiz Paulo Vasconcellos (leia abaixo).


Na segunda parte de seu discurso, ao responder sobre a responsabilidade dos Estados Unidos neste lamentável estado de coisas na República do Sacramento, convoca as palavras do Visconde de Tocqueville, nascido Alexis Henri Charles Clérel, que tendo vindo conhecer o sistema prisional americano durante o governo de Andrew Jackson, em 1831, terminou por publicar um livro intitulado Da democracia na América, em 1835. Invoca, depois, as palavras do presidente Jeferson (1801-1809), autor da Declaração da Independência, e a política do big stick do presidente Roosevelt, um corolário da Doutrina Monroe, e que estava baseada em um aforismo africano: Fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete. E o grande porrete era mesmo (para ficar restrito apenas ao período do romance) a base da política internacional daquele país, como ele comprova através do livro de Smedley Darlington Butler, A guerra é uma raquete, no qual o Major-General confessa ter, com seus Marines, tornado o México uma zona segura para investimentos, etc., etc. e que, perto do que ele fizera, operando em três continentes, Al Capone – que operava apenas em três distritos da mesma cidade –, teria o que aprender com ele! É do final da segunda parte do discurso de Leonardo Gris, já nas respostas às perguntas, que o Prof. Appel retirou a nota sobre comunismo e democracia, cuja antítese é falsa. Pelo melhor, explica o autor, o contrário do comunismo não é a democracia, mas o capitalismo, e a antítese da democracia não é o comunismo, mas a ditadura. O que ocorre é que, quando queremos dizer que somos capitalistas, achamos mais simpático dizer que somos democratas! (p.239) – onde escutamos um eco das ideias de Haya de la Torre.

Um mês depois de seu discurso, Leonardo Gris desapareceu sem deixar rastro. Tal como o acontecido com Galíndez, cuja vida começara a ficar difícil depois de o governo americano ter reconhecido o governo franquista, em 1953, e que menos de um mês depois de ter sua tese aceita, desapareceu de seu apartamento na Quina Avenida, em Nova Iorque. O cadáver de Galíndez nunca apareceu! Diz-se que Trujillo gastou cerca de dois milhões de dólares neste desaparecimento para o qual encarregou o ex-agente do FBI e da CIA, John Joseph Frank. Erico diz que ele foi jogado ao mar do alto de um avião, e a verdade é que o piloto que o levou para a Rep. Dominicana, Gerald Lester Murphi, também desapareceu, assim como a maioria das testemunhas. Mas como nem tudo é maldade, antes de ser declarado morto, o que aconteceu em agosto de 1956, ainda em junho daquele ano, no dia 5, recebeu, in absentia, da Universidade de Colúmbia, onde também foi professor, o título de Doutor Honoris Causa. No cinquentenário de sua morte, quatro anos atrás,5 a Fundação Sabino Arana organizou uma grande exposição, em Bilbao, chamada Galíndez Missing, onde foram expostos mais de setecentos documentos do serviço secreto americano sobre a colaboração Vasca, entre os anos de 1942 e 1945, assim como a rede de espionagem no Caribe, dirigida por Galíndez desde São Domingo, contra os nazistas, além da documentação completa sobre seu desaparecimento com cerca de 100.000 documentos parcialmente censurados pelo FBI.

Quero crer que estarão de acordo comigo: o personagem Dr. Leonardo Gris é uma homenagem ao Dr. Jesús Galíndez!

Mas nem por ser Leonardo Gris um importante contraponto de Gabriel Heliodoro, o mais simpático patife que jamais se conheceu, é que Erico irá descuidar da apresentação do Senhor Embaixador. Gabilodoro é caracterizado antes de tudo como um narcista, orgulhoso de seus cojones (pp. 36, 69, 127 e 423), e que nunca nega o que lhe pede o corpo (pp.109, 191 e 391). Além das credenciais oficiais, apresentadas ao Presidente Eisenhower, existem também as oficiosas: entre elas a de ser hijo de uma chingada, expressão da qual poderíamos dizer tratar-se simplesmente de um termo local para bastardo, mas ela é mais do que isso! Chingadas foram as aborígenes mexicanas curradas pelos conquistadores espanhóis, e hoje, como lembra Octavio Paz,6 no dia da festa da independência, os mexicanos gritam: México, hijo de uma chingada. É um jeito de confessar-se, enquanto mexicanos, filhos de uma mãe mítica e assumir a humilhação da mãe-pátria violada pelo conquistador. Para o nome do pai do Embaixador, Erico, um lacaniano avant-la-lêtre, sabe que esta terá de ser sempre uma estrutura plural. Quando Pablo Ortega, por exemplo, está conversando com o Dr. Gris sobre sua consciência [moral], diz que ela está estruturada, mais do que sobre a figura de seu próprio pai, sobre a figura do ceramista Mestre Natalício – lembremos que Deus foi também um ceramista! E quando se trata de ver um nome para o pai de Gabilodoro, não é só ao 5º de Infantaria que recorre (pp.68. 129, 245 e 316). Embora seja contra esses soldados que ele reza para Deus jogar seus raios (p.245), ele mesmo, quando precisa de inspiração, recorre ao Presidente Lincoln, e ao seu atento valet de chambre, por outro lado, não escapa ter sua infância algo de Georges Ohnet e de Dumas Père (p.217). Se em ambos podemos reconhecer a capacidade para dramatizar, ainda que de Ohnet a crítica dissesse faltar-lhe ao estilo um traço pessoal, e em Dumas identificar por vezes a presença de um traço mais pueril, podemos reconhecer em Dumas Père também a similaridade de uma infância difícil: se não era um bastardo, era um mulato, devido ao casamento de seu avô, o marquês Antoine-Alexandre Davy de la Pailleterie, com uma mulher negra, possivelmente uma escrava, ou então uma recém-liberta. Isso, numa França do princípio do século XIX, não era pouco. Mas, finalmente, depois de Dumas ter sofrido por toda a vida o estigma do racismo – o mesmo racismo destacado por Erico no capítulo 14 –, cento e trinta e dois anos depois, no governo de Jacques Chirac, em 2002, os restos mortais de Dumas Père foram trasladados, do cemitério de sua cidade natal, onde fora enterrado, para o Panteão, em Paris, carregado nos ombros de quatro homens vestidos como os Mosqueteiros de Luís XIII. Na ocasião, em seu discurso, o Presidente Chirac disse: Contigo, nós fomos D'Artagnan, Monte Cristo ou Balsamo, cavalgando pelas estradas da França, percorrendo campos de batalha, visitando palácios e castelos - contigo, nós sonhamos.

Ah! Os sonhos... Ao longo do texto aparecem três. O primeiro é o do Embaixador (pp.35-6), o segundo do Dr. Gris (p.87) e, por fim, o de Pablo Ortega (p.280-1). Em comum entre os três, a busca de algo que não encontram: um Rei, um Presidente, um Médico. Do primeiro não há nenhum ensaio interpretativo, sua compreensão parece cair por seu próprio peso; no segundo observa-se que em um sonho as coisas não são exatamente o que parecem; e no terceiro surgem as associações que ajudam a compreender o sonho: a história d’A gata borralheira, em espanhol La cenicenta, que o médico lhe contava à cabeceira, na infância, à guisa de tranquilizante, associada ao nome de seu amigo Gris. A criança do sonho, precisada de ajuda, representava por certo as crianças de seu país, mas também era ele mesmo à beira de uma difícil e decisiva decisão. E aqui, então, poderíamos perguntar se, ao relatar os sonhos desses três personagens, o autor, dando uma mostra da vida interior deles, estaria dizendo deles os principais? Poderia ser! Estivessemos no teatro grego, diríamos respectivamente o protagonista, o antagonista e o deuteragonista – Godkin seria o coro. Mas poderia ser também um modo de ver tudo como um grande sonho, em que cada personagem diz um pouco do que lhe vai na alma. Em comum entre os três, a eterna dificuldade com o pai, quem sabe a frase principal do contraponto!

É isto! Acho que posso parar por aqui. Por certo ainda resta muito a comentar: a trilha sonora que vai de Debussy (p.78) aos cantos folclóricos (p. 197), passando por Béla Bartok, Bach e Vivaldi; as diversas referências literárias, religiosas e filosóficas; as informações de ornitologia, botânica, anatomia, urbanismo, arquitetura e mobiliário; os embates políticos contrapostos à política do escritor, quando ele propõe um engajamento total com o homem, com a vida e todas as suas riquezas e ambiguidades, labirintos e mistérios (p.382). E os preciosos e precisos comentários sobre arte, e o humor... Aliás, tem um momento de junção dessas duas áreas que tenho de recordar-lhes: Erico toma como pressuposto a superficialidade da cultura geral dos americanos e, quando Bil Godkin faz a última viagem com sua esposa, já doente, à Europa, tem diante da Pietà de Miguel Ângelo, a maior emoção artística de sua vida. Ao vê-la, ele, que até então pouco entusiasmo tinha pela escultura, sentira como que um soco no peito, num impacto que lhe cortara a respiração. Lágrimas lhe vieram aos olhos. Ruth, sua esposa, apertara-lhe ternamente o braço, sussurrando-lhe ao ouvido: "Meu bem, como se parece contigo a figura que está segurando o Cristo morto!" Grande consolo – contestou Bill – ter um nariz partido como o de Miguel Ângelo Buonarroti! O engraçado consiste em ele situar o episódio na Igreja de Santa Maria Del Fiore, em Florença, enquanto a Pietà, encomendada para a Basílica de São Pedro, em Roma, daí nunca saiu! – Quem sabe durante as discussões poderemos falar um pouco mais.

E, para terminar, quero citar um pequeno parágrafo, já bem do final do romance. Discute-se a insensatez de tudo e Erico recorre às palavras de Gertrude Stein, em seu leito de morte. Ela voltou-se para Miss Toklas, sua dedicada companheira, e perguntou: Qual é a resposta? E antes que a outra tivesse tempo de abrir a boca, Miss Stein acrescentou: Mas qual é a pergunta?

Muito obrigado.






  






Fortuna crítica:
Dulcinea Santos













































































































1.É o caso também da estrada transacramentenha, uma vez que a nossa transamazônica só foi projetada no governo Médici (1969-74).






























 

2. GUTILLA, R.W. “Arte breve, vida longa”. Revista da Cultura, nº 30, janeiro2010, p.21.
3. Arakida Moritake, um dos mestres do Haicai, que provavelmente viveu entre os anos de 1473 e 1549, compôs um haicai parecido, convencionalmente traduzido por:
Uma flor que cai –
Ao vê-la tornar ao galho,
Uma borboleta!












































































4. Outro possível modelo pode ter sido Victor Raúl Haya de la Torre, pensador e político peruano (1895 -1979)





































































5. De 22.11.2006 a 28.02.2007.
 



















6. PAZ, O. O labirinto da solidão e Post-scriptum. Trad.: Eliane Zagury, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2ª Edição, 1984, p. 195

 































Relação de livros para acompanhar a leitura:

    01. Albert Isaac Bezzerides
 Mercado de ladrões
    02. Aldous Huxley
 Contraponto
    03. Alexandre Dumas (pai)
 Os três Mosqueteiros
    04. Alexis de Tocqueville
 Da democracia americana
    05. André Malraux
A esperança (L’Espoir)
A condição humana

    06. Aristóteles
 Ética a Nicomaco
    07. Charles Perrault
 A gata borralheira
    08. Dante
 A divina comédia
    09. Dostoievski
 Os irmãos Karamazov
    10. George Ohnet
 O grande industrial
 Sergio Panine

    11. Gustave Flaubert
 Madame Bovary
    12. Hesíodo
 Teogonia
    13. Homero
 A odisséia
    14. Jean-Jacques Brousson
 Anatole France em Pantoufles
    15. Jean-Paul Sartre
 O ser e o nada
    16. Jesús Galíndez
 A era de Trujillo: um estudo casuístico de
            Ditadura hispano-americana
    17. John Reed
 O dez dias que abalaram o mundo
    18. Luigi Pirandello
 Seis personagens a procura de um autor
    19. Luiz de Gôngora
 Fábula de Polifemo e Galatéa
    20. Maquiavel
 O príncipe
    21. Maurice Maeterlinck
 Pelléas et Mélisande
    22. Octavio Paz
 O labirinto da solidão
    23. Platão
 Diálogos
    24. Paulo Setubal
 Confiteor
    25. Samuel Beckett
 Esperando Godot
    26. São Marcos
 Evangelho
    27. Smedley Darlington Butler
 A guerra é uma raquete
    28.  William Hickling Prescott
 Conquista do México






escreva aqui seu comentário

CONFERÊNCIA DE
Dr. LEONARDO GRIS
(Ex Ministro da Educação na República do Sacramento)
NA AMERICAN UNIVERSITY – WASHINGTON, D.C.
Apresenta-o um Professor do Departamento de Ciências Sociais, advertindo ao público de que as ideias emitidas pelo Dr. Gris não seriam necessariamente as mesmas da Universidade, sendo de inteira responsabilidade do orador.
Autor: ERICO VERISSIMO
In: O SENHOR EMBAIXADOR, Cap. 25, pp.223-32.
(Adaptação [discreta] de LOTS)

Senhoras e senhores,

Todo o conferencista que fala, nos Estados Unidos, sobre um país da América Latina, corre sempre o perigo de sucumbir à tentação de dizer coisas leves e agradáveis, dando ao público o que este, em geral, espera em tais casos: descrições de pessoas e paisagens exóticas, feiras populares animadas pelo colorido das frutas e flores tropicais, peças de cerâmica, tapetes e cestos feitos por índios... uma anedota aqui, uma lenda ou conto folclórico mais adiante... enfim, todas essas coisas que, em atraentes tricromias, os cartazes de turismo prometem à vossa compreensível fome de pitoresco...

(Pequena pausa):

Estou porém decidido a não ceder a essa tentação. Vou fazer uma conferência realista e portanto desagradável. Possivelmente hei de parecer-vos agressivo e arrogante quando analisar a parte de responsabilidade que cabe aos Estados Unidos pela situação econômica, social e política da América Latina em geral e de meu país em particular. Preparem-se, portanto, para cinquenta minutos de impaciência e irritação.

(Pequena pausa):

Como alguns dentre vós não ignoram, a República do Sacramento não passa de uma falsa democracia, como é o caso de tantos outros países de nosso continente. A liberdade de pensamento e expressão que seu Governo proclama lá existir é tão fictícia quanto suas duas casas do Congresso. O Sacramento é governado por uma oligarquia formada por umas trinta famílias proprietárias de terras, plantações e indústrias pastoris ou agrícolas, mancomunadas com duas poderosas companhias norte-americanas: a United Plantations Co. e a Caribbean Sugar Emporium. ||Juventino Carrera, o Presidente da República, é na verdade um ditador que goza do beneplácito dessa oligarquia e das citadas companhias estrangeiras. Esses poderosos grupos econômicos fazem vista grossa a todas as imoralidades || praticadas pelo Generalíssimo contanto que, em troca, ele mantenha o status quo econômico e social, esmagando com o apoio de sua polícia e de seu exército todo e qualquer movimento de oposição.

A Câmara dos Deputados e o Congresso do Sacramento || representam direta ou indiretamente os interesses dessas grandes famílias e consórcios||. Assim, o Congresso faz exatamente o que os donos do poder esperam dele. E a oposição? Seus chefes encontram-se exilados ou então apodrecem no fundo de cárceres, sem processo formado, sem julgamento, sem nada! E a imprensa? Os escassos jornais antigovernistas que existiam no país foram aos poucos desaparecendo, não porque o Governo os fechasse sumariamente ou porque exercesse sobre eles uma censura policial constante e insuportável. (Oh não! Pois não estamos numa democracia?) A destruição dessa imprensa livre foi levada a cabo por meios mais sutis. O Governo, que controla todas as importações, negou a esses diários da oposição uma quota regular de papel e assim os foi aniquilando, um a um. Outra maneira de controlar a imprensa é através da distribuição da publicidade, a maior fonte de renda desses jornais. E o diário que hoje ouse publicar qualquer notícia ou editorial lesivo aos interesses desses grupos econômicos corre o risco de morrer à míngua de anúncios.

E o que dizer do povo? A parte da população do Sacramento que sabe ler e é capaz de pensar reprova essa situação vergonhosa e opressiva, mas não dispõe de meios materiais para reagir pela palavra ou pelas armas. As massas, essas vivem intimidadas, embrutecidas pela miséria e pela ignorância, na mais pavorosa das alienações imagináveis.

[E nossos governantes?] O Generalíssimo, ele é um dos homens mais ricos das Américas, senhor de terras, plantações, imóveis, usinas, ações de companhias as mais variadas – presentes que ganhou em troca de vantagens concedidas a grupos econômicos nacionais e estrangeiros e prejudiciais aos interesses da nação. Seu apetite de lucro é insaciável. Calcula-se que tenha alguns milhões de dólares depositados em conta numerada num banco da Suíça, como é o caso de Gabriel Heliodoro Alvarado, que agora representa meu desgraçado país junto à Casa Branca e ao Conselho da OEA.

Juventino Carrera é um homem sem nenhuma grandeza. Revelou, é certo, coragem física e tenacidade na campanha revolucionária que chefiou vitoriosamente contra o ditador Chamorro. Isso, porém, não deve obscurecer o fato de que é um egoísta, vaidoso e vingativo, capaz de todas as crueldades e crimes. Na famosa Noite Trágica, em fins de 1951, entrou em Cerro Hermoso à frente de tropas rebeldes que o repuseram no poder, e fez questão de dirigir em pessoa um ataque ao jornal A Ordem, e ele próprio assassinou a tiros o redator-chefe desse jornal, sob o pretexto de que esse homem o tinha difamado em numerosos editoriais, durante o tempo em que |..| estivera exilado na República Dominicana, sob as negras asas de seu |..| compadre, Rafael Leónidas Trujillo!

Gabriel Heliodoro, por sua vez, é um dos mais simpáticos patifes que conheço. É também homem de extraordinária coragem pessoal, e até capaz, segundo me contam, de algumas generosidades. Mas trata-se de um simulador, dum mercador de influências, dum peculatário. Tendo, através de um casamento de conveniência, chegado a diretor dum estabelecimento outrora respeitável, o Banco das Antilhas, acabou por transformá-lo em uma casa de agiotagem.

(Pequena pausa,
seguindo com voz parentética):

(Tendes o direito de perguntar que espécie de homem é este que não tem pudor de dizer tanto mal do Governo de seu próprio país perante um auditório estrangeiro.)

(Inicia a próxima fala
abrindo os braços,
em um gesto dramático):

Mas, senhoras e senhores, sejamos lógicos. Trata-se mais de uma questão de semântica geral que de ética. O vergonhoso não é || descrever com palavras a situação política, social e econômica da República do Sacramento. O vergonhoso mesmo é existir de fato essa situação.

(Pausa para dar tempo ao público
de se reacomodar):

Já deveis ter ouvido falar muitas vezes em Puerto Esmeralda, a Joia do Caribe, cidade portentosa, com sua baia de águas glaucas, suas praias de areias brancas bordadas de palmeiras, seus suntuosos e confortáveis hotéis e cassinos, onde se joga livremente, e seus nightclubs que apresentam shows tão ricos e interessantes como os melhores de Nova York e Paris... Pois eu vou levar-vos agora, rapidamente, nervosamente talvez e, sem a menor dúvida, cheio de indignação e vergonha, numa excursão através da vida noturna da Joia do Caribe. Andemos por suas principais ruas e avenidas, à luz dos letreiros luminosos que, pelo colorido e pela extravagância dos desenhos, lembram os de Las Vegas. Estão vendo aquelas prostitutas que ali vão? Não chegam a ser mulheres: são meninas entre doze e quatorze anos que vagueiam pelas calçadas a caçar homens. De onde vêm essas pobres coitadas? Geralmente do campo ou das pequenas vilas do interior. Não sabem ler. Não têm a menor experiência da vida. Foram selecionadas por proxenetas para serem exibidas e alugadas no grande mercado de carne humana que é Puerto Esmeralda, onde turistas nacionais e estrangeiros, portadores de lunas ou dólares e apetites depravados, periodicamente vêm entregar-se a feriados lúbricos.

Entre certas camadas pobres da população sacramentenha, tornou-se um bom negócio possuir uma filha bonita. Mal a criaturinha entra na puberdade, os pais a entregam a esses agentes de prostíbulos, uma ‘madama’ compra-lhe vestidos, calça-lhe sapatos de salto alto, pinta-lhe a cara, ministra-lhe algumas lições na arte de agradar aos homens e daí por diante a rapariguita está in busines. E sabeis por que a transação da parte dos pais se processa em geral sem maiores hesitações? É porque cada uma dessas pobres meninas pode ganhar numa só noite, com seu corpinho, muito mais do que toda a sua família num mês inteiro de trabalho duro nas plantações. Aos trinta anos, essas precoces prostitutas parecem velhas de mais de sessenta, roídas pelas doenças venéreas ou pela tuberculose, ou dominadas pelo vício dos entorpecentes.

(Normalmente calmo,
Dr. Gris fala agora como paixão):

Porque o tráfico de cocaína, heroína e maconha, é um dos mais rendosos negócios da bela cidade do Caribe, onde existem mais de duzentos prostíbulos entre os populares, os de preço médio e os de luxo. E nossos homens de Governo, nosso Libertador e seus cupinchas recebem uma percentagem não só no lucro dos milhares de caça-níqueis espalhados pelos lugares públicos da cidade, como também no resultado dos bordéis e no da venda de tóxicos.

Existe, no Sacramento, um curioso neologismo: o verbo esmeraldar-se. Significa muitas coisas, como tirar um feriado sexual, fugir da rotina duma vida de fachada respeitável, mudar, soltar por momentos – dias ou semanas – o animal que mora dentro de cada um de nós. A cidade parece ter um efeito catártico sobre os que a visitam. Cavalheiros considerados respeitáveis bastiões de nossa ordem social e que aos domingos, na missa da Catedral de Cerro Hermoso, batem no peito, ajoelham-se e rezam, de quando em quando dão uma escapada até à Joia do Caribe para uma espécie de cura pela libidinagem. Muitos desses esteios da nossa sociedade são secretamente sócios das casas de jogo e até dos bordéis. Sabem que é muito fácil obter periodicamente uma absolvição de seu padre confessor, pois – que diabo! – afinal de contas eles contribuem regularmente com apreciáveis somas em dinheiro para obras de caridade, coisa que imaginam agradável aos olhos de Deus.

(Pequena pausa
com um gole d’água):

[...]
Quando o Doutor Júlio Moreno foi eleito Presidente da República e nós (digo nós porque tive a honra de fazer parte de seu Governo, como Ministro da Educação) tentávamos melhorar as condições de vida dessa desgraçada gente, muitas vezes tive a oportunidade de visitar pessoalmente essas vilas. Lembro-me do diálogo que entretive certa vez com uma mulher indiática, de rosto como que talhado em pedra, mas suavizado por um par de olhos negros de expressão a um tempo terna e triste. Como eu lhe tivesse feito várias perguntas sobre sua família, contou-me que dos quatorze filhos que tivera em vinte anos só lhe haviam sobrado três, pois os outros tinha morrido de diarreia, tuberculose ou desnutrição. || Jamais poderei esquecer suas palavras finais, pelo que continham de grotescamente dramático. ‘Pois imagine, doutor, a gente gastava tudo o que tinha nos enterros das crianças, não havia ano que um filho nosso não morresse duma coisa ou de outra. A sorte é que conheço um defunteiro de muito bom coração que me faz desconto quando compro caixão de anjinho, pois, o senhor sabe, eu sou freguesa antiga.’

(Repetir a última frase
com voz indignada,
dando uma palmada na mesa):

Eu sou freguesa antiga!

Ao assumir o poder, o Doutor Moreno mandou fechar as casas de jogo e prostituição de Puerto Esmeralda e declarou guerra de morte ao tráfico de tóxicos. Essas medidas lhe valeram a inimizade, o ódio de todas as pessoas e grupos econômicos interessados na existência desse câncer social. O novo Governo começou a construir hospitais e escolas, bem como casas decentes para gente pobre e, segundo planos muito bem organizados, esperávamos dentro de cinco anos ter queimado a última favela em Sacramento! ||

(Pausa para um gole d’água
e passar o lenço nos lábios):

Um dia, o Doutor Moreno tomou medidas que equivaleram por assim dizer à sua sentença de morte. Expropriou mais de quatrocentos mil acres de terras pertencentes aos grandes latifundiários, à Uniplanco e à Sugar Emporium. Pagou essas terras com títulos do Governo, o que desagradou profundamente seus antigos proprietários, e distribuiu-as entre quase vinte mil famílias de camponeses. Seu plano de reforma agrária era um primor de lucidez e bom senso. Pela primeira vez em mais de cinquenta anos, senhoras e senhores, começou a soprar na minha terra um vento de esperança.

(Gesto de desalento:
deixa cair os braços e encolhe os ombros):

O resto é história recente. Um dia, tropas mercenárias arregimentadas em vários pontos do Caribe e transportadas em navios da Uniplanco e da Sugar Emporium || desembarcaram na ilha. Compradas com o dinheiro dos oligarcas, forças do Exército Nacional aderiram à Revolução, que teve uma vitória fulminante. O povo, esse assistiu passivo e atônito aos acontecimentos. El Libertador voltou ao poder com o beneplácito das trinta famílias e, através de uma série de ficções legais, instituiu a sua democracia, redigiu a sua Constituição. Puerto Esmeralda voltou a ser o grande centro de vício do passado. Restabeleceram-se as velhas firmas, || aumentou o número de bordéis e casas de jogo, e os pilares de nossa sociedade, agora aliviados do peso da ‘ameaça comunista’ que pairava sobre suas venerandas cabeças, puderam continuar a esmeraldar-se como nos velhos tempos!

 (pequena pausa,
olhando para o público
e erguendo a mão como para mostrar um belo quadro):

Quem hoje visita Cerro Hermoso pode ver, na Praça de Armas, erguer-se aos poucos um enorme palácio de linhas majestosas, destinado a ser a sede do Governo Federal... Sua construção foi iniciada há quatro anos e não será exagero afirmar que levará mais dez para ser terminada, pois isso convém à quadrilha que se locupleta com a obra. Sim, porque esse edifício, que, segundo afirma nossa imprensa, será o mais suntuoso palácio governamental das três Américas, está custando tão caro aos cofres da Nação como se seus tijolos fossem de ouro maciço e de ouro também a argamassa de seu cimento. Filhos, irmãos, sobrinhos, primos, amigos, afilhados e protegidos do Libertador estão de algum modo tirando lucros fabulosos dessa construção que vem sendo dirigida por um cunhado do ditador. O Congresso diz amém a todos os pedidos de verba para a obra, aprova sem discutir todas as suas contas.
A imprensa elogia o ‘monumento’, orgulho e prova de nossa civilização. Mercê dum sistema de falso faturamento, todo o material de construção para esse palácio fica custando mais do dobro de seu preço real. E a diferença, que sobe a milhões de dólares, vai para os bolsos do ditador, de seu cunhado e sócio e do resto dessa quadrilha que criminosamente enriquece a custa da miséria do povo!