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O ULISSES
DE JAMES JOYCE
Comentários de Luiz-Olyntho Telles da Silva
ULISSES
p/JAMES JOYCE
Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro
Rio de Janeiro, Objetiva, 2005, 888 p.
Quem pode dizer não,
Tem muito poder,
Mas quem pode dizer sim, tem muito mais!
ANTÔNIO DELFIM NETTO
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Hoje, 16 de junho de
2010, é dia de lembrar, além dos amigos e parentes, de dois importantes
aniversários.
Um é o 16 de junho de 1904, dia em que James Joyce passeou pela primeira
vez com aquela que viria a ser sua companheira, Nora Barnacle, a mesma data
que ele escolheu para a jornada de Leopold Bloom, no seu Ulisses,
publicado em 1922. A importância desse romance foi tanta que esse dia ganhou
um nome especial: Bloomsday! A palavra conjuga Bloom – o nome
de família de Leopold, traduzido também por flor, índice do florescimento
de um amor –, com day, dia, mantendo ainda uma relação homofônica
com Doomsday, o dia do juízo final.
Outro é o 16 de junho de 1975, quando Jacques Lacan, há exatos trinta e
cinco anos, pronunciava, no grande anfiteatro da Sorbonne, em Paris, durante
o Quinto Simpósio internacional James Joyce, sua famosa conferência
Joyce le sinthome. Essa conferência é uma homenagem de Lacan
a Joyce, na medida em que, do sintoma, ele dá sua grandeza, essência
e abstração (Joyce le sinthome). Verdade que, para tal, Lacan
toma apoio fundamentalmente em Finnegans Wake, no qual os neologismos
são inúmeras vezes mais frequentes do que em Ulisses. Sinthome,
conforme a um francês antigo, faz homofonia com saint homme. Tantos
neologismos fazem aí sentido por tratar-se de um sonho, mais exatamente
de um pesadelo, como detectou Maria da Glória, por intermédio da personagem
Ana Livia Plurabelle, ALP, que em alemão conota pesadelo. Finnegans Wake
é um livro da noite, enquanto Ulisses é um livro do dia, mas um livro
do dia que termina preparando, no último capítulo, a noite. E é desta noite
que, como lhes antecipei, irei falar-lhes.
Antes, contudo, umas notas para contextualizar o assunto. Afinal, estamos
falando, senão do último romance, daquele que fecundou todos os que vieram
depois.
Escrito entre 1914 e 1922, enquanto Joyce morou em Trieste, Zurique e Paris,
Ulisses desenvolve-se em torno a três personagens, os quais
impregnam, com seu selo, as três partes do romance: S, de Stephen
Dedalus, P, de Poldy e M, de Molly, os dois últimos, respectivamente,
hipocorísticos de Leopold Paula Bloom e Marion Bloom. Os que o consideraram
o cume de todos os romances, chegaram a essa consideração devido a seu caráter
de paródia de A Odisséia, de Homero. O substrato para tal estava contido
em uma frase atribuída a Kierkegaard: toda fase histórica termina com
a paródia de si própria. Era o que tinha acontecido com o Don Quixote
em relação aos romances de cavalaria.
Ulisses, dizem, nasceu com um estigma: o de difícil – ou
mesmo impossível – leitura. Pode ser! Mas não se pode deixar de lembrar que
as primeiras edições das duas traduções ao português esgotaram-se rapidamente.
Em 2008, a editora Alfaguara Brasil fez outra edição da tradução de Bernardina.
As dificuldades parecem dever-se a duas vertentes: de um lado, um certo
desconhecimento da intimidade do mito grego e, de outro, o fato de utilizar
um inglês impregnado de dialeto irlandês e também de outras ilhas britânicas,
do slang americano, de dialetos não expressos literariamente, além
de citações e alusões veladas da Bíblia e dos escolásticos, de obras escritas
em grego, latim, francês, italiano, hebraico, alemão, quando utiliza muitas
vezes palavras no idioma original, sem a menor cerimônia.
A relação com o clássico de Homero tem sido estabelecida assim: os três
primeiros capítulos, a parte S, em que traz à cena o personagem de
O retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus, compreende-se
como uma referência ao filho de Odisseu, Telêmaco, e representa a arte. Os
doze capítulos seguintes levam a marca de Leopold Bloom: uma paródia do próprio
Odisseu a viver sua odisseia de 18 anos em um único dia, e representa a ciência.
Os três últimos capítulos têm como marca o M de Molly Bloom. Aí encontraremos
o derradeiro deles composto com 8 frases, sem nenhuma vírgula e um único
ponto, bem no meio, entre a quarta e a quinta frase, distribuídas ao longo
de 42 páginas; representa a mãe-terra. Estou de acordo. Contudo,
para mim, insiste uma frase do Fausto, de Goethe: Nicht Kunst und Wissenschaft
allein, Geduld will bei dem Werke sein (Faust I – Arte e Ciência
por si sós não andam, é preciso paciência para o trabalho ir em frente).
Se o filho e o pai representam a arte e a ciência, Molly por certo há de
representar também a Geduld, a paciência.
Quando se fala em Ulisses, a primeira coisa que em geral as pessoas
associam é o que se chama de fluxo de consciência. Entrou de moda
nessa época, e nunca mais saiu. Muitos autores a utilizaram, como Virginia
Woolf, para citar um de seus expoentes, e que muitos consideram mesmo uma
de suas criadoras, mas também, ainda antes dela, Édouard Dujardin que, em
1888, publicou Os loureiros estão cortados, do conhecimento
de Joyce. Hoje, o fluxo de consciência tornou-se quase um lugar comum.
Sua manifestação foi estudada, teoricamente, por William James que utilizava
a expressão – retirada de antigas escrituras budistas –, desde a publicação
do seu Princípios de psicologia, em 1890, e depois, de modo mais
específico, no seu The Stream of Consciousness, de 1892. A palavra
inglesa stream, do mesmo modo que a nossa portuguesa fluxo, têm,
ambas, o sentido de um escoamento contínuo e, acima de tudo, natural, como
um rio, a menorreia, etc. A premissa de William James era a de que a mente
está sempre ocupada por um turbilhão de pensamentos, e hoje, acorde à teoria
do caos, pode-se pensar mesmo que o pensamento nasça desse turbilhão. Mas
sua ocupação era com a mente consciente, com toda a gama de impressões,
sensações e raciocínios que fluem superficialmente.
A definição básica de William James era a de que o primeiro e mais importante
fato concreto que cada um afirmará pertencer à sua experiência interior,
é o fato de que a consciência, de algum modo, flui. Estados mentais sucedem-se
uns aos outros na consciência. Tudo o que se pode dizer, dizia ele,
é que na consciência tudo flui. As principais características desse fluxo
são condizentes com o fato de que (1) cada estado tende a ser parte de
uma consciência pessoal; (2) dentro de cada consciência pessoal os
estados estão sempre mudando; (3) cada consciência individual é sensivelmente
contínua e (4) é interessada em algumas partes de seu objeto em detrimento
de outras, acolhendo-as ou rejeitando-as o tempo todo. Nessa constante
e ininterrupta mutação, enquanto a concentração se dá sobre determinadas
impressões ou sensações, outras, necessariamente, estão sendo ignoradas.
Mas, enfim, como se diz, uma andorinha só não faz verão. E o episódio
que veio somar-se às leituras, por Joyce, de Dujardin e de William James,
dando-lhes sentido, foi seu encontro com o escritor Italo Svevo, ainda em
Trieste, onde Joyce ensinava inglês para as escolas Berlitz. Svevo trazia
textos para Joyce corrigir o inglês e Joyce começou a achar muito interessante
os textos sem nenhuma pontuação, no caso porque Svevo, com dificuldade para
pontuar, escrevia um texto contínuo. De acordo com Richard Ellman, tendo
percebido as implicações literárias de uma estrutura assim, Joyce passou
a adotá-la imediatamente.
A expressão maior dessa técnica aparece, no Ulisses, em seus dois
monólogos, respectivamente o de Stephen Dedalus, no capítulo três, e o de
Molly, no capítulo dezoito. Enquanto o de Stephen é bem comportado, com
seus pontos, vírgulas e interrogações, tudo em seu lugar, o de Molly tem
um único ponto ao final do quarto de seus oito parágrafos. Mas não se pode
deixar de reconhecer que o texto tem ritmo e isso de certo modo facilita
a leitura.
Pois estamos agora no capítulo dezoito. O capítulo final. Como na vida,
não se chega ao fim sem ajuda. A chave facilitadora nem sempre está onde se
espera. Como Ulisses, retornando com a ajuda de seu filho Telêmaco, Leopold
Bloom, no capítulo anterior, retorna para casa com a ajuda de Stephen Dedalus,
a quem quer adotar como filho. Verdade que um não é sem o outro: se de Stephen
com Bloom temos Stoom, de Bloom com Stephen, temos Blephen
(p.707). Blefe? Por que nenhum diz a verdade para o outro? Por que, quando
tudo parecia certo, Stephen não aceita o convite para passar a noite? Apenas
urinam juntos, e depois seguem cada um seu caminho. O som da urina, que noutro
tempo inspirou a Joyce sua Música de câmera – chamber pot –,
será uma simples indicação de um ritornelo para, da capo, começar tudo outra
vez?
Mas voltaram. Odisseu, depois de vinte anos, volta para casa e aí tem que
conquistar outra vez sua mulher, agora com vários pretendentes. Passados
vinte anos, a mulher não mais o reconhece. Há que vencer os concorrentes,
eliminando-os, um a um. Nem vencendo a prova do olho do machado, a mulher
o reconhece, afinal é mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha que um rico entrar no reino do céu. Penélope só o reconhece
como marido quando ele lhe fornece a senha correta, construída sobre um segredo
de alcova: o tálamo talhado sobre o tronco de uma oliveira de folhas alongadas
(XXIII: 190-91). A solução tem que ser discursiva. É pelo discurso que Leopold
Bloom reconquista sua mulher Marion Bloom. A metáfora é forte: é no inamovível
tálamo que se sabe quem é quem! Porque o que se diz na cama não se esquece.
E, agora, Leopold Bloom pede, como a muito não fazia, desde o Hotel City
Arms, seu café na cama, e com dois ovos, please. Daí em diante, Molly
não resistirá mais. Para quem conhece a linguagem dos selos (p.788),
não é difícil decifrar a implicação de sua posição nas bordas do envelope.
O título deste décimo oitavo capítulo chama-se Penélope, justamente em
homenagem ao capítulo XXIII de A Odisséia. Penélope, a quase sempre
citada como exemplo da esposa fiel, servirá de modelo para a figura parodística
da mal dita infiel Molly Bloom.
Conheçamos de Molly o que se pode conhecer. Veremos que não é muito! Seu
monólogo não tem a mesma consistência do de Stephen Dedalus, um sujeito
que veio d’a lus – permitam que o diga luz assim, com ‘s’
– inversamente, para a sonora ded (death), para a morte. Ela
faz um balanço de sua vida, recorda, mas não se analisa. Enquanto Stephen
se compara com outros, buscando saber quem é, Molly, ao comparar-se com
outras, fica restrita a um primário e alienante nível de identificação.
Quem mais parece falar é seu corpo.
Antes de entrarmos no monólogo propriamente dito, lembremos que de sua
mãe, Lunita Laredo, ela não sabe nada (p. 791, l.5), ou morreu
muito cedo, ou então desertou. Casou-se com Leopold Bloom, um peripatético
vendedor de anúncios para jornal, com quem teve uma filha, Milly, e um filho
natimorto – Rudy; a partir dessa perda, seu marido tornou-se praticamente
impotente. Molly, por sua vez, trabalha como cantora em um bar, o Palace,
e é amante de seu agente teatral, Blazes Boylan. Como não é difícil de perceber,
Molly está sempre às voltas com a falta – para citar Churchill –, de fracasso
em fracasso, mas sempre com entusiasmo. Mas é verdade que a frase de
Antonio Maria e Fernando Lobo, em Ninguém me ama, poderia estar também na
boca de Molly, que então cantaria: - Vim pela noite tão longa, de fracasso
em fracasso.
Molly Bloom, a mulher infiel, é uma paródia da fida Penélope, diz-se. Pois
vejamos: em uma das muitas versões, a origem do deus Pã, uma das figuras
mais populares de todos os tempos, é atribuída aos amores de Penélope com
Hermes. Vejam só! E outra versão atribui sua origem aos amores de Penélope
com todos os seus pretendentes, daí o sentido de todo atribuído ao deus.
De modo que a fidelidade de Penélope não é assim tão indiscutível. E o adultério
de Marion?
O cenário é uma cama e o tempo da cena o dia seguinte, as primeiras horas
da madrugada do dia seguinte ao 16 de junho de 1904. O que quer dizer isso?
Que o que aí se descreve não tem lugar no dia a dia? Uma antecipação ao
livro da noite?
Estamos lembrados de que a cama é o lugar da verdade. E aí está Marion
Bloom. Antônio Houaiss chama esse monólogo de solissômnio – uma palavra
que ele não incluiu nem no seu dicionário! –, quem sabe para diferenciá-lo
do monólogo de Stephen Dedalus. Ela está em um estado crepuscular, entre
o sono e a vigília, entre o sono e o sonho. Seria uma maneira de interpretar
a ausência de pontuação, uma forma de representar a atemporalidade onírica.
Vamos então ao monólogo.
Não é o mais difícil de ler. Se não tem pontuação, tem ritmo, o que facilita
em muito a leitura. E também não tem tantas línguas, embora grande parte
da gíria aí utilizada tenha que ver com o llanito. Isso porque Molly
é originária de Gibraltar, uma península do território espanhol cedido ao
Reino Unido pelo tratado de Utrech, em 1713. Quem alguma vez já viu o Rochedo
de Gibraltar, sabe que ele não fica a dever nada ao nosso Pão de Açúcar!
Aí, além do inglês, sua língua oficial, fala-se também o espanhol e, sobretudo,
o llanito, formado pelo inglês e o espanhol, porém com uma influência
do árabe, do genovês, do italiano, do ladino, do maltês e do hebraico, mas
não é nada difícil, tudo está dito com o mais conhecido de cada língua.
É um capítulo inteiro bordado de sim.
Ela começa surpresa com a mudança do marido. Ele, que sempre a servira,
viera para a cama encomendando para seu desjejum um café acompanhado de dois
ovos. É o seu primeiro sim! Quando se sente desejada, é dessas mulheres
que só dizem sim. Um carvoeiro? – Sim. Um bispo? – Sim (p.767).
O padre Corrigan a quis? – Sim (p.767). Bartell dArcy quer beijá-la
depois de ter cantado a Ave Maria, de Gounod? – Sim (p.773). Harold
a persegue pela chuva até ela dizer sim? – Oh! Maria Santíssima, sim!
(p.773-74). E Gardner, circuncidado ou não? – Sim (774). Henri Doyle,
pedindo com 8 papoulas, no dia oito? Não beija tão bem como Gardner, mas
sim. Na segunda-feira, sim (p.774). E o velho Goodwin, de rosto gelado?
– Sim (p.775). Val Dillon, grande e selvagem? – Sim (p.777-78).
O velho Larry, por uma garrafa de clarete que ninguém mais queria? – Sim
(p.788). Alguém mais? Quem sabe uma banana? – Isso não, pois teme pudesse
quebrar e ficar perdida em algum lugar lá dentro (789). No mais, todos
páginas viradas no seu folhetim.
Com Boylan era diferente. Ele notava a forma de seu pé (p.772), mesmo na
presença de seu marido, o Poldy, querido! Uma cena que parecia excitá-lo
(p.772). Quando se diz que dois é bom, três é demais, usa-se uma fórmula
que não serve para todos os casos. Boylan, o terceiro, bem pode ser condição
da felicidade conjugal (p. 813). É do gosto de Poldy ver Molly e Boylan juntos
(p.804). Em seu solissômnio, Molly se lembra de todas as mulheres
que conheceu, desde os dias de Gibraltar, seus amores pelos homens, frustrados,
sofridos, perdidos, apaixonados, e o imenso valor do desejo dos homens pelas
mulheres. Os viúvos, as viúvas, sem esquecer o que um traje de luto
(p. 805) – hoje diríamos um pretinho básico –, pode fazer por uma
mulher bonita. E, là ci darem la mano,1
a cena no topo do monte Howth (p.814) desdobra-se em miríades. Bernardina
da Silveira Pinheiro, na sua transcriação, ao fazer de O much about it,
Ó muito barulho à toa (p.812/l.18), fez-me lembrar de uma
comédia de Shakespeare, Much Ado About Nothing, em geral traduzida
como Muito barulho por nada. O particular da peça tem a ver com a
gíria da época elisabetana, quando thing conotava pênis, e nothing,
sua ausência. Daí que uma coisa é o desejo dos homens pelas mulheres e outra,
o desejo de um homem por uma mulher. Molly lembra, então, o dia em que foi
pedida em casamento (pp.814-15). Desde esse dia, ela só quer dizer sim. Em
sua resposta está presente toda a história do mundo, dos muros mourescos
de Algecira à Duke Street, as mulheres sempre dizendo sim. Em todas as perguntas,
repete-se sempre esta que representou para ela a máxima expressão do desejo
de um pelo outro, a máxima expressão do desejo de Leopold por Marion, a máxima
expressão do desejo do homem pela mulher: ele me pediu se eu queria sim
dizer sim [...] e sim eu disse sim eu quero sim.
Voilá!
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sobre o capítulo11
de Ulisses,
dedicado às
sereias
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