Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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Amor sem fim (Enduring Love)
Ian McEwan
Tradução de Jorio Dauster
São Paulo, Companhia das Letras, 2011, 291p.

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Luiz-Olyntho Telles da Silva
Porto Alegre, 11 de março de 2013


O romance está baseado em um caso real, um caso clínico publicado na British Review of Psychiatry (s/número e data). Trata-se de uma forma, dita pura, de um caso de erotomania, também conhecido como Síndrome de De Clérambault, em que, além da descrição do que se passa no sujeito da doença, também se delineia os efeitos dessa afecção nas vítimas perseguidas pelo erotômano.

No caso clássico, apontado pela literatura, uma francesa imaginava o Rei Jorge V, da Inglaterra, apaixonado por ela, mas, impedido por sua posição social, não podia declarar-se abertamente e enviava-lhe apenas sinais, como a oscilação de uma cortina no palácio e outros movimentos nos quais apenas ela via uma significação amorosa. O erotômano, de modo geral fervoroso e honesto, está convencido de que a felicidade de sua vítima depende exclusivamente dele e o persegue. O risco de suicídio é alto!
Na presente história, Ian McEwan, concentrando sua atenção na descrição da vítima perseguida por um erotômano, altera o foco.

Para um romance, a história é bem interessante. Mas ela é também um lugar conveniente para examinar a quase sempre difícil e mal compreendida diferença entre a Psiquiatria e a Psicanálise. Enfocá-la-ei aqui pela vertente da anamnese. A Psiquiatria, enquanto especialidade médica, usa
-a como instrumento para conhecer a história nosológica. Através das lembranças do paciente, o médico vai construindo a história clínica com os dados que, desde sua formação, lhe parecem relevantes para a compreensão do caso e - uma vez formulado um diagnóstico -, prescreve um tratamento. O interessante nesse romance é que, a bem dizer, não há anamnese! O momento traumático é examinado por vários ângulos, mas, como o doente é o outro, não se interrogam os antecedentes! Tal como no caso psiquiátrico original, sabe-se de certa orfandade do erotômano, sua posição sócioeconômica, e não muito mais que isso. E do herói, sua vítima, a descrição não ultrapassa sua circunstância, o trabalho, dúvidas existenciais e relações amorosas. Nada de sua origem! Quando seu passado surge, ele é apenas enigmático, e isso apenas para o leitor. Para o personagem, tudo parece bem decidido. No início do capítulo 12, quando Joe, o personagem narrador, de quase quarenta anos, fala de seus sentimentos, seus fracassos, insinua-se uma curiosidade pela origem de suas inquietações. Ele sabe que não se resolvem essas coisas ficando sentado no escritório. Sua primeira opção de ajuda, contudo, é simples e rapidamente rejeitada. Ele diz assim:
Vinte anos atrás eu talvez contratasse um ouvinte profissional, mas desde então perdera a fé na cura pela conversa. A meu juízo, uma fraude bem-educada. Atualmente, preferia dirigir meu carro.
Sobre o acontecido, vinte anos antes, para que ele - ainda mocinho -, tivesse perdido a fé na cura pela conversa, não há nenhuma referência. Tudo tem que se resolver no aqui e agora. Quando ele sai para dirigir seu carro, um olho na estrada e outro no retrovisor, cuida sempre para ver se não aparece um carro patrulha! Para esse personagem, tudo está colocado do lado de fora. Por seu fracasso, ele passa tão rapidamente quanto pelas paisagens da estrada, e as causas de suas preocupações estão sempre do lado de fora de si mesmo, nos outros. Enquanto acredita na força de seu perseguidor ele, por assim dizer, entrega-se ao gozo da situação, a qual, em última instância, lhe possibilita uma alienação de sua própria história.

Não é muito diferente do ocorrido com De Clérambault, o psiquiatra que, depois de ter estudado exaustivamente a síndrome, deu-lhe seu nome. Gaëtan Gatian De Clérambault foi um sujeito muito interessante, aliás, diga-se de passagem, foi o único psiquiatra a quem Jacques Lacan reconheceu como Mestre,  embora confundisse sempre seu prenome: chamava-o de Georges! Nascido em 1872, esteve interessado em várias áreas. Assim como se dedicou ao estudo da erotomania, dedicou-se também à fotografia e ao estudo do drapejado dos vestidos das mulheres árabes, dando aulas sobre o tema
na Escola de Belas Artes. Suas fotos estão hoje no Museu do Homem, em Paris. Construía bonecas de cera, em tamanho natural e as vestia com todos os requintes de sofisticação. Em 1934, aos sessenta e dois anos de idade, cercou-se de suas bonecas e, sentado frente a um espelho, suicidou-se com um tiro.

A anamnese é invenção platônica. Trata-se da reminiscência, uma rememoração gradativa através da qual o filósofo redescobre dentro de si as verdades essenciais. Por um trabalho de investigação, o sujeito termina construindo uma história. É diferente da simples memória, é diferente da mnemosine, a lembrança sólida, pétrea, aprisionante. Partindo do pressuposto de que as percepções tendem ao engano, Freud atribui a essa memória uma função encobridora, encobridora justamente do essencial, encobridora do desejo que nos move. É nesse enquadre que o psicanalista propõe ao analisante o exame de sua própria história. E a anamnese que aí se propicia não será, como a sugerida pela Psiquiatria, criada desde a perspectiva do médico, do que sabe, e sim desde a perspectiva do próprio analisante. Diferente ainda da investigação filosófica, a anamnese proposta pela Psicanálise inclui também o lugar do psicanalista - vinculados pelo fenômeno da transferência -, o qual, por sua capacidade ímpar de valorização do significante, pode destacar do discurso do analisante pequenos traços por meio dos quais este conseguirá, ao enfrentar-se com seus objetos de desejo, desligar-se dos elementos aprisionantes de sua memória.










































































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