Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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NOTAS DE LEITURA


EL NIÑO EN ANÁLISIS
Y EL LUGAR DE LOS PADRES

Alba Flesler
Buenos Aires, Paidós, 213 pp. 2007.


Um livro, tal qual um filho, é sempre uma nova esperança. E aqui temos um livro a tratar disso, do lugar do filho, enquanto objeto na economia libidinal dos pais.


Sua autora, uma experiente psicanalista, faz justiça ao seu próprio nome ao trazer a lume este livro com o frescor da alba de um novo dia. É assim que, com os dedos ainda róseos da aurora, abro o livro ao acaso, na página 188, e me deparo com esta sua frase: Con febril anhelo, todo ser humano apostará a escribir su trazo distintivo ante la uniformidad. Um texto que trate da diferença dentro do igual merece atenção.

O índice é convidativo. Depois de um rápido prólogo, onde deixa claro seu propósito de reconhecimento dos diferentes tempos do sujeito, estende-se por oito capítulos na análise prometida pelo título do livro: a criança e seus pais. E aqui já vemos o cuidado com a estrutura do texto: dos oito capítulos – cujo número lembra o oito da castração, como diz um canto sefaradi – os dois primeiros, a guisa de abertura, e os dois últimos, como uma coda, falam da criança, sempre no singular, e dos pais, enquanto os quatro capítulos intermediários se ocupam dos tempos prometidos no prólogo.

Os tempos – onde o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir são supostos – são fundamentalmente os tempos da estrutura borromeica, do real, do simbólico e do imaginário. Desde aí examinará os tempos da angústia, do jogo e do desenho, revelando em cada linha o cuidado com o particular de cada caso.


Os pressupostos teóricos do livro vêm revelados na Bibliografia, onde se destacam as obras de Freud e Lacan, examinadas intensa e extensamente por ela mesma e por Isidoro Vegh que tanto nos tem ajudado a melhor compreender inúmeros conceitos. Ademais de diversos colegas seus da Escola Freudiana de Buenos Aires – onde já foi Presidente –; podemos ver aí também autores como Winnicott, Melanie Klein, Ana Freud (que embora não incluída na Bibliografia, é mencionada no texto), René Spitz, Arminda Aberastury, Alain Didier-Will, Philippe Julien e Héctor Yankelevich entre outros tantos autores de valiosas contribuições teóricas. Mas além dos psicanalistas, vamos encontrar também filósofos, como Sören Kierkegaard, um artista como Tadeusz Kantor, ocupado com a questão da criação, e também poetas. Aí estão Saint-Exupéry, Julio Cortázar, Octavio Paz e também um poeta que não vejo citado com muita freqüência, mas que me encanta, Roberto Juarroz.


Conheci Juarroz poucos dias antes de sua morte, em 1995, quando tive o privilégio de participar de uma mesa com ele, na Escola Freudiana de Montevidéu. Sua poesia é tão sensível e delicada que não me surpreenderia tivesse servido de modelo à autora. Quanto a mim, tomarei o seguinte poema como fonte de inspiração para esta leitura:


LEVANTAR EL PAPEL DONDE ESCRIBIMOS...

Levantar el papel donde escribimos
y revisar mejor debajo

Levantar cada palabra que encontramos
y examinar mejor debajo

Levantar cada hombre
y observar mejor debajo

Levantar a la muerte
y escudriñar mejor debajo

Y si miramos bien
siempre hallaremos otra huella.
No servirá para poner el pie ni para aposentar el pensamiento
pero ella nos probará que alguien más ha pasado por aquí.
                                                                             R.J.

A pergunta com a qual a autora atravessa o texto, é a pergunta pela criança. Se estivermos frente a um problema real, ela propõe que se delimite esse real, o que se faz considerando aos restos. Tratando-se de um objeto especial, temos de saber que ele o é para alguém.


Então, quando ela pergunta o quê é uma criança?(p.22), antes de responder ela aponta para o crivo desde onde acredita se deva considerar a resposta - pois do pressuposto do analista dependerá sua análise (p. 23). E então asserta: a Psicanálise atende à criança, mas aponta ao sujeito (p.24).


Esta condição de sujeito é a que interessa à Psicanálise. É como sujeito ao Outro, ao Outro da linguagem, que tem existência, uma existência que não se confunde com a vida (p. 44). Este é o pressuposto a justificar a teoria pulsional vigente no sujeito, e a autora o leva tão a sério ao ponto de dizer que – em termos instintivos – não existe nem mesmo o famoso instinto materno! Se por um lado essa afirmação (p. 177) pode parecer chocante, por outro ajuda a compreender a necessidade da presença de certas condições para uma criança ser incluída na economia psíquica de seus progenitores.


Para a autora, o atendimento psicanalítico à crianças não está nunca dissociado dos pais. Nem dos pais da criança, nem dos pais da Psicanálise.


Assim, um dos primeiros pontos a considerar, é que a realidade psíquica não se apreende por via direta e sim via secundum intelectum: Para haver uma criança é preciso ter havido um desejo. E desejar não é o mesmo que querer (p. 45). Para chegar a esta compreensão é preciso distinguir o objeto a enquanto presença, do objeto a enquanto ausência, respectivamente enquanto plus de gozo e como causa de desejo (p.31), pois não há desejo que não surja de uma perda de gozo (p.50).

Para compreender uma criança, já não basta um curso de Psicologia Infantil. Ocupar-se com os tempos já não se aprende em manuais de Psicologia do Desenvolvimento. O que realmente importa para o sujeito não está prescrito pela natureza, dependendo sempre do desejo conformador de uma estrutura. E aí, os inúmeros casos de sua prática exemplificam o ponto em debate a cada instante. Sobre seus casos, aliás, não se pode deixar de mencionar, a par de sua inquestionável capacidade esclarecedora, seu viés comovedor a delatar também o carinho desta analista com seus pequenos analisantes, cujo tempo nunca é desconsiderado.

Suas análises, contudo, não ficam restritas a seus próprios casos. Ela examina também os clássicos casos de Freud, tanto os bem conhecidos como aqueles que não são tomados todos os dias como exemplo. Tal é o caso de um menino de 13 anos incompletos, examinado por Freud logo no começo do capítulo IX de A psicopatologia da vida cotidiana. Através do generoso relato de Freud ela vai examinando a sabedoria do Mestre em se abster (p.170), discriminando-se de um pedagogo, e aguardando, sem pressa, a emersão do material para ser trabalhado, no caso, através de pequenos bonecos feitos com miolo de pão.


Ao tratar seus casos, a autora os enfoca de um modo tal que lança luz mesmo em outros casos clássicos. Tal a história de Alan (p.77), acompanhada de enurese e encoprese, que, ao aprender a escrever, o fez em espelho, tal qual Leonardo Da Vinci. O singelo caso do carretel, uma observação do netinho do próprio Freud, na segunda parte de Além do princípio de prazer, é examinado de um modo do qual se poderia dizer paradigmático: a autora destaca aí alguns dos tempos de redistribuição do gozo.


Em um primeiro tempo, o menino joga os objetos para fora (fort), para um lugar – a autora destaca – onde era difícil encontrá-los, para fora do campo esperado pelo Outro (p.100). Este tempo é fundamento do segundo, necessário para a oposição significante fort-da. Trata-se de um tempo em que a criança já está fora do berço e joga brincando de esconder o carretel por entre o cortinado do pequeno leito: é o tempo do sujeito recriar-se fora do lugar em que estava originalmente posicionado pelo Outro e que o ajudará a subtrair-se da frente do espelho. Mais adiante, com a ajuda do Hamlet de Lacan (p.105), a autora nos leva a pensar – quiçá como conseqüência do tempo antes mencionado – em um tempo - de sonho - em que o sujeito não é estritamente igual a si mesmo, mas que, sincronicamente, como na aufhebung, conserva algo dele; um tempo imprescindível para a necessária capacidade de despersonalização propiciatória a um final de análise. – O que importa, na passagem de um tempo a outro, é a possibilidade de, na redistribuição dos gozos, surgir para o sujeito uma nova leitura de seu lugar no mundo, acompanhada de uma nova leitura do mundo.


O problema, é que as passagens de um tempo a outro não costumam ser sem vicissitudes. Para exemplificar, recorre à fobia do pequeno Hans: frente a angústia, Joãozinho responde com um sintoma fóbico. E aqui - considerando de perto a indicação de Juarroz – para descrever teoricamente o funcionamento da angústia no enodamento borromeano, através de uma intrusão do real no anel do imaginário, a autora se utiliza de uma palavra (para mim até então desconhecida) não dicionarizada pela Real Academia Espanhola. Seguindo a Lacan, ela diz que na angústia trata-se de uma inmicción (p.182) do Real no Imaginário. Possivelmente se trate de um neologismo para dar conta do francês immixtion, usado por Lacan, umas poucas vezes, na verdade. Ele o usa no Sem. 6, na classe de 26 de novembro de 1958, como uma hapáx legomena, com o sentido empregado pela autora, e depois nos seminários 13, 14 e 19[1]. Mas o interessante, e o que me interessou no neologismo, foi o fato do real a imitir no imaginário ser o real pulsional despertado pela premência miccional do pipi-macher de Joãozinho, em espanhol, a força da micción, o que, pelo menos nesse caso, caracteriza o neologismo.

Pois é isso. E para mais, leiam o próprio livro de Alba Flesler. Vale a pena.

Luiz-Olyntho Telles da Silva

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[1] Em português, temos imissão, de lat. immissìo, ónis 'ação de impelir, enviar para', do verbo immitère 'enviar para, impelir, introduzir, deixar ir'. Mas no espanhol não parece haver um termo que lhe corresponda, pois para as fontes mencionadas já foram utilizados antes pelo menos dois neologismos alternativos: inmixión e inmixción (14 de junho de 1972).

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