Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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O DIA EM QUE LACAN ME ADOTOU
Efeitos de uma análise com Lacan

Uma leitura de
O dia em que Lacan me adotou
De Gérard Haddad
Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2003, 303p.

p/ Luiz-Olyntho Telles da Silva

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nascestes.
OLAVO BILAC, Pátria.

Blut ist ein ganz besonder Saft.1
GOETHE, Fausto, I, v. 1746.


 




   
O dia em que Lacan me adotou é um romance autobiográfico. É um romance maduro, de alguém que, por toda a vida, desde a adolescência, buscou ser um escritor. Nesse percurso, passa por diversos avatares, inclusive o de agrônomo, no qual consegue um excelente desempenho, até tornar-se analista no divã de Jacques Lacan. Uma de suas primeiras descobertas é a de que a escrita tem seus limites. O relato mais sincero não é uma terapia e a literatura não alivia duravelmente nenhum sofrimento (p.36).

Gérard vem de uma família de judeus tunisianos. Nasceu aí, em Túnis, nesta cidade de onde, ao longe, se enxerga a delenda Cartago. Seu pai o queria médico. Em cena, seus conflitos com a figura paterna: se tiver que ser médico, será um psiquiatra, um médico de loucos, um modo de deslustrar o título – como ele o diz –, e de agredir o pai, o que o faz também se declarando ateu. 

Antes de prosseguir, contudo, devo alertá-los para uma confusão nada rara entre Psicanálise e Psiquiatria. Ela aparece logo no início do segundo capítulo – Uma vocação precoce –, e eu não sei dizer se é devido à tradução, uma vez que na página 28 ele traduz o título do conhecido romance de William Faulkner, The sound and the fury, por O barulho e o furor, ou se ela está aí deliberadamente para representar a confusão do adolescente. Logo no início desse capítulo, o tradutor estabelece assim: Foi (...) nas primeiras horas dolorosas da adolescência que tomei esta decisão: vou ser psicanalista. Meu pai havia decidido isso. E em seguida, no segundo parágrafo, ele acrescenta: era preciso imprimir minha jovem singularidade sobre essa vontade paterna (...). Eu não seria um simples médico, mas um psiquiatra, um “médico de loucos” (...). A confusão é determinada pelo uso dos pronomes demonstrativos das frases Meu pai havia decidido isso, indicando o ser psicanalista, e, logo adiante, quando quer imprimir singularidade sobre essa vontade paterna, indicando o ser psiquiatra. Em geral confundem-se ambas as atividades quando não está claro o objeto de interesse de uma e de outra. Para uma rápida diferenciação, observem que a Psiquiatria, uma especialidade médica (iatro), ocupa-se das doenças, e a Psicanálise se ocupa do inconsciente, distinção essa que as coloca a uma irreconciliável distância. Por coerência, então, temos de dizer que nesse primeiro momento o projeto paterno está relacionado com a Psiquiatria, e não com a Psicanálise, como o texto dubiamente deixa entender.

Sua adolescência coincide com o processo de independência da Tunísia, momento de uma torrente cultural vinda da França. Teatros, conferências, recitais, livros, livros e livros. Entre eles, uma Introdução à Psicanálise, escrita pelo próprio Freud, deixa-o apaixonado: fazer uma Psicanálise tornou-se um sonho. Aí estava o caminho para livrar-se da infelicidade proporcionada pelos problemas sexuais da adolescência. Mas a vida dá voltas. Quando vai visitar a namorada – S. –, que conhecera um ano antes, em Paris, durante as férias, encontra-a, para sua surpresa, em Munique, internada em um Hospital Psiquiátrico, no pavilhão de agitados, aos gritos. Gérard fica horrorizado. Convencido de não ter as forças necessárias para combater a loucura, joga fora as armas, antes mesmo de tê-las usado – como nos diz. Na verdade, temos de dizê-lo, como nesse momento ele nem mesmo conhecia os instrumentos disponíveis, preponderante era sua relação com o pai. Desarvorado com sua decisão, depois de ter se preparado durante todo o secundário para a Faculdade de Medicina, resolve dedicar-se ao trabalho agrícola, para desespero e frustração de seu pai que já o imaginava um camponês, um fellah. O professor encarregado de examiná-lo para o ingresso na escola agrícola, porém, entusiasmado com as boas notas de seu currículo, encaminha-o para a Faculdade de Agronomia. Haddad torna-se agrônomo, especialista em rizicultura, casa-se, tem dois filhos e vai muito bem em seu trabalho. Publica um livro sobre sua adolescência, elogiado por Simone de Beauvoir, e que ele supõe ter estimulado Sartre a escrever o seu Le mots, também autobiográfico.

Seus interesses, literário e pelas esquerdas, levam-no a encontros interessantes: destacam-se, entre eles, Louis Althusser (p.33, passim), a quem reconhece como seu maître-à-penser, e o Dr. G., que lhe receitava calmantes e também lhe fez escutar o nome de Lacan pela primeira vez. Em sua constante busca de uma iniciação, valoriza também a relação com outros mestres, desde Sicard, seu professor no 2º grau, que o levou a ler os autores contemporâneos, como Albert Camus, André Malraux, George Bernanos e Jean-Paul Sartre (pp.19-20), passando pelo mestre Yeshayahou Leibowitz (p.73) que orienta seus estudos no Talmude, e mesmo por Bernard Palissy (p.84) que, no século XVI, para o desespero de sua esposa e filhos, queimava os móveis e as tábuas do piso para descobrir o segredo da porcelana, até chegar a Lacan que rapidamente o desilude dizendo não haver mais, nesta época, lugar para nenhuma iniciação.

Mas o caminho vivido não é assim tão reto. Antes de chegar a Lacan, angustiado com seu difícil casamento com A., uma gói italiana, com a síndrome de Solal,2 e com seus sintomas obsessivos, ele tentou analisar-se com Octave Mannoni que não o aceitou pelo fato de nessa época Gérard Haddad trabalhar na África. É depois dessas andanças que – em uma passagem por Paris –, resolve telefonar para a Clínica do Dr. Lacan, na esperança de analisar-se com um de seus alunos. Recebe-o, para sua surpresa, o próprio Lacan, e a análise então começa.

O relato de Gérard Haddad não é modesto. Ele reclama para si nada menos que as palavras de Rousseau na abertura das suas Confissões: Fundo um empreendimento que nunca teve exemplo e cuja execução não terá imitador (p.13). Para ver o quanto ele consegue, ou não, fazer justiça a essa epígrafe, tomemos em conta as palavras de Dostoiévski em Notas do subterrâneo (1864): aí o grande escritor diz que entre as lembranças que cada um de nós traz consigo, algumas há que só contamos aos amigos. Outras nem aos amigos revelaríamos, mas apenas a nós mesmos, e ainda assim em segredo. Finalmente, há outras coisas que o homem tem medo de contar até a si mesmo. E para argumentar sua crítica à epígrafe de Rousseau, ele acrescenta que cada homem honesto conserva bom número dessas [últimas] lembranças guardadas em sua mente, e quanto mais honesto é o homem maior é esse número. Baseado nisso é que Dostoiévski diz, sem meias palavras, que Rousseau, nas suas Confissões, mentiu deliberadamente, por vaidade.3

A narrativa de Haddad é agradável. Seu aprendizado de Agronomia leva-o, na África, do Senegal, muito próximo do porto de São Luiz, até a ilha de Madagascar, percorrendo um caminho inverso ao de Júlio Verne no seu Cinco semanas em balão. Júlio Verne, de certo modo, já nos avisara dos problemas que se enfrenta ao aproximar-se muito da terra. Ele, quando sobrevoava o Lago Vitória, muito rasamente, foi arrastado para dentro do lago por um rinoceronte cujo chifre enredara-se no cordame de seu balão, fazendo-o correr risco de vida. Haddad, por sua vez, em um lugar perdido, perto da fronteira de Gana, vê-se na contingência de ter para dormir apenas uma cabana abandonada, decorada com uma sujeira repugnante e uma cama infectada por excrementos. Como o homem do subterrâneo, que, quando chove, se enfia em um galinheiro para proteger-se,4 Haddad fica agradecido e, quando vê aí, nesse lugar desolado, ao pé da cama, no meio da noite, uma gata parindo, aprende para si a experiência (pp.76 e 85), enredado que estava em seu imaginário. Cada vez mais passa a fazer sentido para ele o aforismo lacaniano: o que pode acontecer de melhor a um ser humano, são os estragos de sua existência (p.39). Em Madagascar, com um pouco mais de tempo, pode passear pelas colinas e aprender um pouco do dialeto malagasy que, para colinas, diz tanety (p.51).

Seu livro esparrama-se ao longo de doze capítulos e centrarei minha análise em um deles, o antepenúltimo, aproveitando para falar-lhes do interior de uma análise lacaniana.

Antes de continuar, um porém: a análise que buscarei empreender será sobre [a tradução d’]o texto publicado no qual o autor supõe um analista. O que o próprio Lacan pensava sobre esse analisante, não tenho nenhuma notícia. Cada analisante vê seu analista de um modo diferente e sabemos que isso é quase o óbvio pelo fato de o analista trabalhar cada vez sobre um terreno discursivo díspar, marcado pela singularidade de cada um.

O episódio por mim escolhido é um que coloca em destaque este fenômeno tão comum nas análises e que os tradutores brasileiros de Freud deram em chamar de parapraxias, as Fehlleinstungen, isso que com Lacan passamos a incluir nas formações do inconsciente, no caso um ato falho. Na situação em exame tratava-se de um verhören, um lapso de audição. E mais, um nada raro lapso do analista.

Freud recomendava aos analistas escutar aos analisantes com uma atenção muito especial, com uma atenção flutuante, com uma gleichshwebende Aufmerksamkeit,5 quer dizer, com uma atenção que dá, por princípio, o mesmo valor (gleich) a todas as palavras. O texto do analisante deve ser tomado como um texto sagrado, um texto no qual todas as palavras têm o mesmo valor. A diferença entre uma e outra, Lacan nos diz, está em seu valor significante, quer dizer, em seu valor de representação do sujeito para outro significante, dentro de uma cadeia. E esse significante, basicamente um som, sem um significado especial, quando toca no ouvido do analista provoca uma reação; podemos dizer mesmo que desperta no analista uma resposta, muitas vezes com valor de interpretação. O lapso de audição, nesse caso, pode ser tomado como um indicador da atenção gleichshwebende, equiflutuante, por parte do analista.

Aqueles que conhecem esse relato de Gérard Haddad, já terão identificado o episódio em destaque: aquele ao qual ele se refere como leucemia: A “leucemia” do Dr. Lacan.

Trata-se de algo muito simples: depois de uma noite difícil, em que o analisante tinha brigado mais uma vez com sua mulher, a quem durante todo o relato chama de A., começa sua sessão por estas palavras (p.225):

- J’ai passé une de ces nuits!

Ato contínuo, o analista, como que arrancado da sonolência de sua tarde (p.225), – despertado pelo significante, eu diria –, interpreta:

- Quoi? Comment? Vous avez la leucemie?

Observem como no francês ocorre certa homofonia entre as duas expressões!

une-de-ces-nuits
la-leu-ce-mie


Seja como for, o fato é que o analista interrompe a sessão exatamente no momento em que o analisante protesta, dizendo nunca ter falado em leucemia.

Haddad, nesse momento, depois de muitas voltas – as quais incluíram, face às suas relações familiares, a entrada na Faculdade de Medicina para poder tornar-se e praticar como analista –, está por terminar seu segundo Curso, e, para tal, faltam-lhe alguns exames. É para aí que ele dirige o valor da interpretação, ainda que com uma frase ambígua: Tenho leucemia... Nessa ocasião, Haddad já leva sua análise com Lacan por mais de sete anos, o que se não é muito, também não é pouco. Digo isso apoiado em um tempo lógico, no qual se pode ver o que ele já conseguiu até aí, e o que não. O que ele já sabe é a importância de tomar em consideração as palavras do analista, ainda que enigmáticas. A transferência é a base de sustentação necessária para esse crédito. Põe-se então a estudar a leucemia, convencido de que isso teria a ver com suas provas, e o resultado não foi outro: em seu exame principal, o ponto sorteado será o de hematologia, e ele se sai muito bem.

Contentíssimo, ele se apresenta na sessão seguinte, quando sua agitação explode nas seguintes palavras: - Sabe, eu de fato peguei a leucemia, peguei-a nas provas clínicas. Arrematando: É magia! E quando o analista considera não se tratar de magia, mas de pura lógica (p.228), o analisante, já adentrado suficientemente nos estudos teóricos, dá-se conta, ainda que com muitas interrogações, tratar-se aí da lógica do significante.

Era algo a ver com ele, e só com ele. Com outro analisante de Lacan, em análogas circunstâncias, por exemplo, a análise não tem o mesmo efeito e o sujeito não consegue terminar sua faculdade. O que estava em jogo aí era o seu particular desejo.

É possível que pudesse terminar por aqui essa análise. Considerado o desejo, no momento em que o analista capta a força do significante, esse arrasta consigo o que for preciso para sua realização. Trata-se de lógica, e não de sorte. Comigo aconteceu o contrário: ainda adolescente, fiquei para um exame de segunda época em Latim. Era preciso saber a tradução de onze textos. Contei com a sorte e decorei dez deles; o sorteado foi justamente o que eu não sabia. A lógica: eu não sabia nenhum, apenas os tinha decorado.

Mas esse episódio é apenas uma parte, uma pequena parte de um longo capítulo que vai de suas primeiras preocupações com o passe até o momento de sua autorização como analista. E no relato dessa passagem ele vai abordando uma série de pontos, utilizando uma série de metáforas, as quais, no seu conjunto, levaram-me a valorizar o episódio da leucemia como uma chave, como um importante epicentro de sua análise. Seus desdobramentos nos possibilitam acompanhar a trajetória dessa análise desde a intersubjetividade com Lacan, conforme ele nos conta, mas também com o autor dessas linhas, se vale o Latim.

A interpretação de Lacan, veiculada por seu verhören, tem uma implicação bem maior, bem mais ampla do que se imagina à primeira vista. Embora eu não possa afirmar ter o autor do relato se dado conta de todo o seu alcance, posso dizer que por algum motivo ele nos apresenta esses dados do modo como nos apresenta.

Afinal, como é que se consegue dizer exatamente o que se quer se as palavras não alcançam para tanto? Essa impotência da linguagem engloba a todos os falantes, analistas ou analisantes.

Vejamos então como ele vai encadeando seus tópicos.

Ingressado nos temas mais esotéricos da psicanálise, defronta-se com um fracasso: o passe. Fala-se muito mas sabe-se pouco, e ele resolve fazer suas próprias descobertas.  Compara-se então a Jó que não podia mais se contentar com uma fé em Deus transmitida pela tradição, e deseja uma radical e direta redescoberta de Deus. Ele quer conhecer o complexo de Édipo em si mesmo e suas investigações sobre o objeto a levam-no ao nada, para o aplauso de Lacan.

Vejam, contudo, com a ajuda de qual metáfora ele chega a essa descoberta. Ele a chama de uma epifania. Não bastasse sua preocupação com uma direta redescoberta de Deus, eis que sofre – vou dizer assim –, ao ver clarear diante de si um conceito, uma epifania. Uma vez alcançado esse nada, ele traz para a análise esse achado: o filho de uma noite de Iduméia (p.220). Nada mais, nada menos: um filho d’une nuit.

Embora soubéssemos de suas preocupações com a questão religiosa, o que transparece nessa noite de Iduméia não deixa de ser surpreendente. Mesmo porque ainda guardamos na memória o ocorrido minutos antes de sua primeira entrevista: Gérard está entrando na Rue de Lille, onde fica o consultório do Dr. Lacan e, ainda na rua, é invadido por uma ideia estranha, uma representação que já o visitara em sua adolescência, algo da ordem – outra vez –, de uma epifania, na qual ele fica de pé, imóvel e silencioso. Sou todo olhar – diz ele –, e esse olhar está virado para o véu que esconde o Santo dos Santos do Templo de Jerusalém. Surpreendente para um ateu, não é mesmo?! O exame da metafórica noite de Iduméia ajudar
-nos-á a melhor compreender o laço por ele estabelecido entre Deus e Édipo.

Registremos, primeiramente, que a Iduméia nem sempre se chamou assim. Antes, essa região, próxima do rio Jordão, chamava-se Edom, aparecendo como estado nacional no segundo milênio a.C. Edom tornou-se, na literatura profética, o protótipo dos poderes anti-israelitas e antidivinos por haver se cumpliciado com os mesmos árabes e filisteus que expugnavam Jerusalém, mesmo embora sua sabedoria, pasmem, fosse muito estimada em Israel. Quando Nabucodonosor conquista Jerusalém, os edomitas invadiram o território dos judaístas, sob pressão dos nebateus, o que provocou diversas ameaças dos profetas, e, na história posterior, esses edomitas recebem o nome de idumeus. – Registre-se a importância da mudança de nome.
Vejam então em que nuit ele vai buscar sua singular descoberta do significado do objeto pequeno a. Justamente na sapiente noite dos inimigos de Israel, na noite dos ambivalentes inimigos, eu diria.

Para melhor identificar esse território, vejamos como o Profeta Isaías o descreve em sua ameaça:

Isaías 34: 9-15

9 Os seus córregos [da Iduméia] se transformarão em piche, o pó da sua terra em breu e o seu chão ficará como piche fervendo. 10 Passam dias e noites e o chão não se esfria, fica soltando sua fumaça para sempre. De geração em geração fica no abandono, e era após era ninguém mais passa por aí. 11 Seus herdeiros são o pelicano e o ouriço; a coruja e o urubu fazem aí sua morada. Javé estenderá aí o prumo do caos e o nível da confusão. 12 Não haverá nobres para proclamar um rei, os seus chefes desaparecerão. 13 Crescerão espinhos em seus palácios e em suas fortalezas ervas daninhas e urtigas; será morada do lobo, esconderijo dos filhotes de avestruz. 14 Aí vão se encontrar o gato do mato e a hiena, o cabrito selvagem chamará seus companheiros; aí Lilit vai descansar, encontrando um lugar de repouso. 15 Aí vai se aninhar a cobra, que botará, chocará os seus ovos e recolherá sua ninhada em sua sombra; aí se reunirão as aves de rapina, cada qual com sua companheira.

Será apressado tomar essa descrição de Isaías como constituinte do pano de fundo do psiquismo desse sujeito? Sim, talvez seja, mas não deixemos de notar, contudo, que ele pelo menos aponta para uma difícil identificação com sua raça. Iduméia representa sua ambivalência em relação ao judaísmo de seus pais. Não é a toa que ele se casa com uma gói, uma gói que, resolvida sua ambivalência, converte-se ao judaísmo.

Talvez pareça terrível a ideia de alguém ter de passar por essa visão de si mesmo. Pode ser! Mas a verdade é que, nesse caso, a utilização dessa metáfora permitiu-lhe ir adiante. É depois disso que ele reconhece[ndo] a metamorfose (p.221) sofrida na análise com Lacan. Ele passa por aí para chegar ao terceiro nível de sua formação, que na tradução de Procópio Abreu aparece como supervisão. Para ele, o primeiro nível consistia na análise propriamente dita, enquanto o segundo era provido pela participação nos seminários e o terceiro pela análise de controle.

Desestimulado por Lacan de supervisionar com o próprio analista, Haddad procura Claude Conté (p.223) – um analista da quarta geração, segundo o critério de Elisabeth Roudinesco. Próximo de Lacan, Conté ocupou diversos cargos importantes na Escola Freudiana de Paris, dando, contudo, alguns passos – eu diria –, sem uma boa inspiração: primeiro, enquanto um dos responsáveis pelo passe na instituição, cabe a ele comunicar a Juliette Labin – analista experiente, com vasta clientela e AME6 da Escola –, a decisão negativa do júri quanto ao seu passe a AE.7 Ele o faz, e, como resposta, ela comete suicídio. Estamos em 1977. Na dissolução da EFP
,8 dois anos depois, sua inspiração falha mais uma vez e ele apoia Miller na Fundação do Campo Freudiano. Leva um tempo demasiado longo para reconhecer o maquiavelismo maoísta de Miller e voltar atrás. Haddad diz que ele tem um fim trágico, que desconheço mas que não duvido.

Maus passos não eram, porém, o todo de Conté, e ele o ajuda decisivamente em um momento crucial de sua análise, quando ela já estava bem avançada. De saco cheio com as curtíssimas sessões de Lacan, G.H. decide abandoná-lo, pedindo a Conté que o receba em análise.  A resposta ética de seu supervisor o surpreende: - Não, vá vê-lo de novo. É com ele que as coisas aconteceram. Não se troca assim de analista, sobretudo quando as coisas foram levadas tão longe (p.236).

São passos, todos esses, que o ajudam a clarear sua identificação, a fortificar seu sangue. De volta ao divã, participa de cartéis e destaca um em que se estuda a Identificação. Aí conhece A.D., uma colega a dar
-lhe uma grande ajuda, tanto amorosa como financeira. Ler em A.D. a clássica abreviatura de Ano Domini não me parece exagero: A.D. será para ele um pai a abrir caminho até a publicação de seu tão desejado livro.

É nesse clima, com uma possível ambivalência entre A. e A.D. (este A. com um algo a mais, da ordem do imaginário), que ele vai para a análise falar de ces nuits, possibilitando a Lacan escutar a já mencionada leucemie que o leva a estudar toda a hematologia e particularmente a questão das anemias. O que G.H. ainda não sabe, o que ele ainda não se deu conta, é que a letra escolhida para identificar sua esposa é o mesmo A com que se identifica ao Autre, com A maiúscula. Mais adiante Lacan apontará esse lugar para ele.

A valorização do sangue me remontou à primeira parte do Fausto, de Goethe, quanto Mefistófeles está ultimando a negociação de sua alma e pede que o contrato seja assinado com sangue. O contexto dá a entender que Mefistófeles assim o quer por se tratar, no sangue, de um suco, de um extrato, de um licor especialíssimo. Fica dito nas entrelinhas que o Diabo quer esse sangue porque aí está a vida. Onde está o sangue, aí está a atenção – já disse alguém. A ambivalência de Haddad encontrava nessa anemia uma metáfora. Aí estava não a fraqueza de seu sangue, mas sim sua fraqueza com relação a seu sangue, vale dizer com sua raça.

O que acontece na leucemia? A produção normal de glóbulos brancos é afetada; os glóbulos não amadurecem para desempenharem suas funções e, doentes, passam a se multiplicar, tomando também o lugar dos glóbulos vermelhos e das plaquetas. O sangue fica aguado. Lembram de ele comparar o conhecimento do Édipo ao conhecimento de Deus e também de sua necessidade de contrariar o pai que tanto gosto fazia em seus estudos de Medicina? – Havia mesmo um problema com seu sangue, embora lhe custasse chegar a essa conclusão. Quando a comissão de exames clínicos lhe pergunta sobre a síndrome de Garcin, ele não lembra, não sabe tratar-se de um câncer na cabeça. Mas a lógica do significante é tão potente que mesmo tendo sido reconhecida apenas uma de suas partes ela não deixa de produzir seus efeitos.

Agora, ele já pode se ocupar de seu próprio passe. Mas – outra surpresa –, o cenário desse passe não será o ritual proposto pela escola de Lacan, e sim o proposto pelo bar mitzva de seus filhos. O que se ganha dos pais, paga-se aos filhos. No caso dele, com os juros da elaboração do Édipo. Desdivinizada, a identificação já pode passar por trâmites mais simbólicos, reconhecendo-se um pai patógeno para seus filhos (p.231). E esse reconhecimento, nada fácil, com a força de uma castração simbólica, possibilita a Lacan autorizá-lo a tomar seus próprios filhos em análise, ainda que por um curto espaço de tempo. Eis aí um momento em que podemos apreciar os efeitos de uma destituição subjetiva. Isso certamente lhe possibilitou adentrar ao complexo tema da identificação primária. Seguindo uma indicação de Lacan ele se dedica, então, ao estudo das culturas semíticas. Pode ser que aí tenha se encontrado com os Idumeus, e com Esaú (também chamado de Edom), e com seu irmão Jacó, que depois de ter lutado com um anjo, e saído vencedor, tem seu nome mudado para Israel.

A experiência do passe, tenha ou não dado certo, tem sua verdade e o importante é que essas passagens implicam na mudança de nome. A valorização desses passes abre-lhe a possibilidade de perceber a verdade contida mesmo na passagem de ano, este passe denominado de Rosh Há-Shana pelos judeus, e ele então se dá conta de que todas aquelas comidinhas acompanhadas de rezas, com fórmulas particularíssimas, é o equivalente de um jantar totêmico. O que se come aí são fundamentalmente palavras. Esse estalo é tão importante para ele que, mais tarde, desenvolve-lo-á em um livro chamado Comer o livro. Seu primeiro ensaio sobre o tema, contudo, é contagiado ainda por sua ambivalência e ele não crê no seu valor, surpreendendo-se quando Jacques Hassoum e Erik Porge, entre outros – e depois o próprio Lacan –, ficam excitados com sua exposição.

Sua relação com o Talmude já é bastante clara e, inspirado em um de seus doutores, que dizia ter aprendido mais com seus alunos que com seus mestres, ele propõe à EFP um projeto de leitura dos textos de Freud relacionados à neurose obsessiva e é aceito.

Essa iniciativa é plena de consequências: a primeira consiste no próprio fato de ter seu projeto aprovado por uma instância capaz mesmo de reprovar projetos de colegas do status de um Leclaire. Verdade que, nesse projeto negado, Leclaire estava associado a Antoinette Fouque, a quem G.H. chama de Egéria, egéria do feminismo. Egéria é o nome de uma ninfa que dá conselhos, e esse não é um princípio recomendado pela Psicanálise.

Depois, a questão religiosa, sempre presente, vem dominar a cena. De uma parte, Françoise Dolto encarnará o lado cristão, buscando evangelizar a Psicanálise. G.H., aferrado ao Talmude, busca extrair dele contribuições para a Psicanálise. Ainda que, ocupados ambos com a Religião, são posições bem diferentes: enquanto Dolto quer aproximar a Psicanálise da Religião, fazendo da primeira um braço da segunda, G.H. procura na Religião elementos que possam contribuir para a leitura da Psicanálise. É assim que instrumentaliza sua obsessividade. Do Talmude retira subsídios que lhe permitem ler a loucura, mas não só! Daí retira também elementos com os quais consegue dar certos parâmetros à teoria da interpretação. Para tanto, apoia-
se no cânon do Rabino Ismaël que abrange um total de treze regras.

Dessas, as primeiras quatro regras com as quais se constitui o discurso do Midrash são a héqèch, a gezera chava, a qal vahomer e a binyan av. São todas muito interessantes:

A primeira, a héqèch, é um argumento de assimilação. O termo constitui um substantivo derivado do verbo aproximar, chocar dois objetos, e, no campo jurídico, assimilar ou pelo menos aproximar duas espécies jurídicas.

A segunda regra, a gezera chava, em hebraico significa ao mesmo tempo palavra e julgamentoGezera chava designa termos idênticos, ou também Issorhem, palavras semelhantes implicando a noção de analogia.

A terceira, a qal vahomer, é definida como um raciocínio a fortiori. Qal significa leve, em hebraico, e designa uma prescrição menos grave ou mais difícil de observar do que outra, ou simplesmente o que é permitido, puro, isento de falta. Homer significa matéria pesada e, no direito, um mandamento grave. Uma boa tradução para a qal vahomer seria uma coisa menos grave e uma coisa mais grave, algo da ordem do oximoro.

A binyan av consiste em um argumento a contrário, um argumento para excluir as implicações que podem resultar da Torá. Contrariamente à analogia que estende o campo de uma norma, ele o restringe. Os elementos subentendidos da regra são agora excluídos pelo intérprete. – O adágio latino, Qui dicit de uno, negat de altero, qui de uno negat, de altero dicit, parece bem expressar essa regra na qual não seria impossível encontrar as bases da negação, da Verneinung freudiana.

Enfim, menciono essas regras porque Haddad privilegia uma delas, e não uma qualquer, nem a primeira, nem a última. Privilegia a segunda, a gezera chava (p.242). Embora a pronúncia dessa expressão no hebraico possa ser diferente, proponho lê-la de modo transliterado, como no nosso português, como g e como ch. Gezera tem a ver com ligsor que é igual a nossa tesoura. Chava conota literalmente chácara, fazenda, qualquer pedaço de terra. Na verdade leio esta regra assim: Gez-era-a-chave. A letra z podendo soar para nós como s, fazendo o plural de g: gês.  Acredito que esse jeu de mots, que esse calembur, faça sentido mesmo em francês e por isso vou mantê-lo. O ges era a chave. Ge de Gérard, mas também de gênesis e de je, o eu francês com o qual Lacan representa o sujeito do inconsciente. São quase sinônimos, não são? Gerar[d] e gênese? Embora Haddad tenha traduzido o gezéra chava por transferência significante, seu sentido primeiro é o de conexões recorrentes. Parece ser a regra por excelência a dar ao Talmude seu estilo. Aí está! Gerar e gênese são termos recorrentes, ainda que nas línguas latinas. Em hebraico, para Gênesis, diz-se Bereshit que significa no princípio, e interessante que esse princípio não começa com a primeira letra do alfabeto, e sim com a segunda, justamente com a segunda, bet. A insistência da segunda? Talvez para dizer que sem o segundo não é possível pensar no primeiro! Estamos novamente às voltas com as mudanças de nomes e com a volta às origens, ao Bereshit, ao princípio da Torá, ao sangue de sua raça. Se lembrarmos que o desenho da letra bet [ב] representa uma caverna, uma casa primitiva, talvez fique mais fácil entender que seu projeto de estudo da neurose obsessiva, ao seguir a proposta lacaniana de retorno a Freud, engancha-se precisamente em seu caminho terapêutico de retorno às próprias origens, de retorno a casa, tal qual o filho pródigo. Não fosse tudo isso, a simplicidade da tesoura cortante, contida na gezera, e as terras nomeadas pela chava, os grandes e cultivados arrozais de sua antiga profissão, bastariam para ver que os cortes sofridos em sua análise não estavam sendo sem consequências em sua segunda profissão. Segunda, note-se, tornada primeira.

Envolvido nesse processo, Haddad nos faz uma singular confissão: por vezes, quando esperava por sua consulta na biblioteca do Dr. Lacan, encontrava a porta do consultório entreaberta – não se sabe se inadvertidamente ou não –, transformando-a em auditório, e aí, o que é que se escuta? A primeira frase que ele nos conta ter ouvido é a seguinte: Durante toda a minha análise – dizia um analisante –, pensei que o senhor fosse judeu e, no entanto, o senhor não o é! (p.243) Não é preciso haver trilhado muito tempo o caminho da Psicanálise para saber que quando se fala dos outros, algo se diz da gente mesmo. Ser judeu era sem dúvida uma questão importante para Gérard Haddad. Por ocasião de sua formatura, seu pai, que tanto queria vê-lo médico, não estava feliz, não queria comemorar com ele, deixando-o só! Queria vê-lo como médico, certamente, mas não assim, tão longe de casa, tão longe da beit. Gérard ainda está em trânsito.

Impossibilitado de resolver essa difícil questão com seu próprio pai, elabora-a na análise, lugar apropriado para isso, no qual o analista poderá suportar os papéis necessários a esta durcharbeitung, a esta perlaboração.

Em outra cena desse auditório, Haddad mostra que sua valorização da religião ainda o leva – obnubilado por sua subjetividade –, a confundir aquilo que escuta. Agora, é Lacan quem fala a um suposto candidato à análise: - Se você estivesse em seu país - dizia Lacan -, consultaria um feiticeiro para o mal de que sofre. Mas aqui, na Europa, você vem ver um psicanalista. E em seguida acrescenta: - Vou enviá-lo a um de meus alunos que o ajudará a resolver o seu problema (p.244). Pois eu suponho que a confusão de Haddad resida justamente, conforme nos conta, em acreditar que para Lacan havia uma equivalência entre o feiticeiro, ou xamã, e o psicanalista. Uma coisa é que – se estamos pensando nos quatro discursos propostos por Lacan –, ambos possam ocupar o lugar do agente, mas não podemos esquecer que ocupado por um ou por outro, teremos discursos diferentes. Ocupado pelo analista, justamente pelo objeto a de sua primeira preocupação, um representante do resto, desse nada de segundo grau, diferente de um nihil inicial, diferente do zero de origem, teremos um discurso do analista que, se chega a ficar famoso, é porque cura. Mas ocupado por um xamã, cheio de poderes, tal qual um S, um Amo, o discurso será outro e só curará, como se diria com a regra binyan av, ao contrário, se for famoso.

Os conceitos da Religião certamente podem ajudar, mas não é sendo religioso que o analista fará seu trabalho. Quando Lacan propõe encaminhar esse paciente para um colega, ainda que um aluno, suponho que com essa atitude esteja dizendo da impossibilidade inerente ao discurso do Amo exigido pelo candidato. Lacan conhece bem sua relação com a fama e sabe que esse candidato demandava dele uma cura xamânica. Ao não aceitar esse lugar do que cura porque famoso, Lacan possibilitava a esse candidato um melhor exame de suas pretensões. Enquanto o discurso do analista está marcado pela castração, o do Amo, do Xamã, certamente não. Isso pode ajudar também a entender um pouco mais a posição de Dolto e o porquê do desentendimento de Lacan com ela. Gérard consegue ver o difícil lugar de Dolto, mas nesse momento ainda não pode discriminar-se devidamente dessa posição. Sua crítica a respeito do título do livro de Dolto, L’Évangile au Risque de la Psychanalyse [1977], parece
-me adequada na medida em que ele expressaria melhor seu conteúdo se fosse ao contrário. A tradução portuguesa de certo modo dá conta dessa ambiguidade. A psicanálise dos evangelhos9  tanto pode dizer da Psicanálise contida nos evangelhos como dos evangelhos lidos à luz da Psicanálise. É somente desde o imaginário que podemos aproximar essas duas figuras, a do Evangelho e a da Psicanálise.

Ao longo dessa exposição, eu lhes apontei algumas mudanças de nomes. Pois agora quero apontar-lhes outra, crucial. A mudança do título de sua tese A loucura no Talmude finalmente encontrou editora, mas com a condição de modificar conteúdo e título. Junto com seu Editor – de certo modo ocupando o lugar do Outro –, batizam-no de O filho ilegítimo, subtitulado Fontes talmúdicas da psicanálise (p.248). A mudança de título, como a mudança de nome, não é sem consequências. Ele fala aí de Freud como um herdeiro, ainda que herético, dos mestres do judaísmo. Como sempre, ao falar de outro, fala de si, mas, assim falando, está agora elaborando sua reconciliação, o que lhe possibilita escrever diretamente sobre um caso de conversão a pedido de Laurent Theis, diretor da revista H Histoire, então, recém criada.

O caso Aimé Pallière e a verdadeira religião será o título de seu artigo. Trata aí da relação entre um seminarista, católico, Aimé Pallière, e seu mestre judeu, o Rabino Elie Benamozegh. Aimé quer converter-se ao judaísmo, mas é desaconselhado por seu mestre. É como se Benamozegh dissesse que cada um tem de fazer o seu melhor, mas no seu próprio campo. E aqui temos outra intervenção de Lacan, prenhe de significados. Depois de ter mencionado em análise que Pallière adotara como pseudônimo uma expressão hebraica – loetmol – com o sentido de não ontem, ao pagar a sessão, G. H. surpreende-se com o fato de o analista cobrar também a sessão do dia anterior, um feriado. Mas como? – Era uma multa a assinalar para ele a importância de não ter estado lá, no ontem, valorizando assim sua antecedência.

Não ontem. O significado particular desse apodo, para ele, era de não ter estado presente no ontem de sua raça. As perseguições, o genocídio, a shoah, até então não tinham sido com ele! – Assumir esse texto, trabalhar sobre um nome como este, Aimé[e], empregado pelo próprio Lacan como pseudônimo do caso de sua tese de doutorado,10 tinha também o sentido de retomar o valor das origens. O feriado não foi cobrado em vão. Haddad se ocupa da história de seu povo, visita Auschwitz e Birkenau onde conhece as valas nas quais a cada dia haviam sido queimados 20.000 corpos dos filhos de sua gente. Ele sabe agora que o holocausto não foi um crime apenas contra o povo judeu e sim contra toda a humanidade. E nesse momento ele registra: Lacan acompanhou-me atentamente, durante toda essa nova travessia do horror (p.252). Nova? Nova travessia? Qual foi a outra? Está bem, não faltaram momentos difíceis, mas diria também que não deve ter sido fácil atravessar a nuit de Iduméia.

E, para terminar, só mais uma palavrinha sobre seu final de análise. Marcada a data para o final, ambos de acordo, as sessões se sucedem fazendo a análise avançar a passos largos, para usar sua própria expressão. E ao terminar essa última sessão, o analista pergunta: - Quando é que o vejo de novo? (p.255) Manobra discreta, porém decisiva para evitar as catastróficas consequências como as ocorridas com o Homem dos Lobos, devido à fixação, por parte de Freud, de uma data para o fim-de-análise.  Haddad batiza esse movimento de cura em trompe l’oeil, a meu ver, um nome muito adequado, afinal esse talvez seja o mais francês dos estilos de pintura, o qual busca claramente enganar o olho. Esse engano – não nos enganemos –, é aquele que consiste em fazer semblante de a e não o da taumaturgia. Frente aos comentários correntes dos milagres de F. Dolto, por exemplo, de que seus truques em geral só davam certo com ela, Lacan se posiciona dizendo não ser um taumaturgo. O que ele faz é possibilitar que a análise continue.

Ao concluir, queria lembrar que em toda a análise sempre ficam restos não analisados, algo a ver com o que Freud chamava de Das Ding.11  Na frase gerada pelo vehören de Lacan por certo também. Pois eis que me ocorreu um trocadilho com o título do capítulo que estivemos trabalhando: A “leucemia” do Dr. Lacan. Deslocadas as aspas de leucemia para “Dr. Lacan”, isso certamente incluiria mais ainda a pessoa do analista, como produtor do ato falho. Afinal, o que ele diz, termina com a sílaba mie, que em francês conota miolo, o miolo de pão, por extensão, os miolos, o cérebro. E o que tem a ver? Bem, na data do ocorrido Lacan está a cinco anos de sua morte, uma morte com um diagnóstico muito pouco claro. Negou-se sua doença até o último momento. O mais perto que se chegou foi a distúrbios vasculares de natureza cerebral, e o que sabemos desses distúrbios é tratar-se de uma patologia de lenta evolução. Enfim, parece que essa questão sanguínea também tinha a ver com o analista. Síndrome de Garcin? Mas como sempre, só se sabe depois, a posteriori.

EPÍLOGO

Perguntemos, agora, com Rousseau e Dostoiévski: É um relato veraz o de Haddad? E para responder, convoco as palavras de Jeremy Bentham, este utilitarista inglês tão citado por Lacan: a verdade tem estrutura de ficção. Assim entendido, não posso terminar sem expressar meu comovido agradecimento ao Dr. Gérard Haddad por sua honestidade intelectual e por sua generosidade. Seu texto me possibilitou uma inestimável proximidade com o Lacan-analista. O calor exalado de seu relato me contagiou a ponto de escrever esse texto.                                                                         

Muito obrigado.



G.Haddad    


1. É o sangue um licor especialíssimo. – Tradução de Agostinho D’Ornellas.




LEIA AQUI O TEXTO DE
JOSÉ LUIZ CAON

Literatura e biblioteca
de psicanalisante

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2.  Do romance de Albert Cohen.






















3.  F. M. Dostoiévski, Notas do subterrâneo.  Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro, Bertrand, 6ª ed., 2008, p.50.









4.  F. M. Dostoiévski, idem, p. 46.




























5.  Freud (1912), p.171. – A tradução brasileira diz atençãouniformemente suspensa. Rio de Janeiro, Imago, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XII, pp. 149-50.























































































































































































6.  Analista Membro de Escola.
7.  Analista de Escola.
8.  Escola Freudiana de Paris.







































































































































































































































9.  Dolto / Sévérin (1977).

































10.  Lacan (1975).




























11.  A coisa incapaz de se tornar palavra, por oposição a Die Sache, essa sim uma coisa capaz de se transformar em palavra























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