Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
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O livro
de Raimundo Carrero é a descrição de uma aventura no infinito do instante.
Em cena, dois personagens: um homem e uma mulher, Leonardo e Alice. O cenário,
um quarto feito para o amor, um quadro de amor. E há música no ar! Um jazz
sofrido, lancinante e lânguido, tocando e embalando a cena.
Em Justine, o primeiro volume de O quarteto de Alexandria, Lawrence Durrell abre com duas epígrafes, de Freud e de Sade, dois autores ocupados com a constituição do sujeito desde a relação com o outro. A primeira diz que o
ato sexual é um processo que envolve quatro pessoas,
enquanto
a segunda parte da afirmativa de que
Há
duas atitudes possíveis: o crime que faz a nossa felicidade,
ou
o nó enredio, que nos impede de ser felizes,
para então
perguntar:
Querida
Teresa, é possível hesitar por um só momento?
E em seguida,
quando Sade pergunta
que
argumentação o teu espírito fraco é capaz de descobrir contra isto?,
vejo
que essa seria também uma boa epígrafe para nos ajudar a ler o livro de
Carrero. Mas enquanto Durrel trata de buscar a verdade das assertivas, descrevendo,
em quatro volumes, os pontos de vista de cada um dos quatro personagens,
em Carrero o quarteto não tem a mesma forma plástica. É mais sutil, bem mais
sutil!
Como podem ver, começo pelo valor das epígrafes. Carrero as tem em grande consideração. Para ele, como ensina em suas oficinas, a ideologia de um texto pode vir assinalada nas epígrafes e por isso elas servem de chaves interpretativas. Ele abre seu romance com cinco epígrafes, de Osman Lins, Nathalie Serraute, Bakhtin, Julio Cortazar e Bergson-Lourenço Chacon. Todas elas apontam na mesma direção, destacando aspectos da arte de escrever. Para realçar o cerne de cada uma das citações, ainda que com o risco de perder a força de algum aspecto, diria que os autores epigrafados falam, respectivamente, do escrever
como uma via de acesso à verdadeira natureza
do próprio ato de escrever, quer
dizer, para escrever, se me permitem o truísmo, há que escrever. Depois,
assinala a importância da inspiração,
um
eflúvio, uma radiação, uma luz que flui na direção [do escritor],
cintila fracamente, e depois vai se apagando e tudo fica escuro. Através de Bakhtin, Carrero nos apresenta sua preocupação com a construção do personagem: importa
[no fundo] o que ela é para si mesma.
A seguir utiliza-se de Cortazar para mostrar que uma
frase deve ser construída de modo a potencializar o dizer
para que ele possa chegar ao fim tal qual uma improvisação de jazz ou uma grande sinfonia de Mozart. E o último autor diz como construir esta frase: há
que utilizar a pontuação e toda a coreografia do discurso.
Bonito, não é mesmo! A coreografia do discurso. Pois, se tomamos em consideração o posfácio de Westburn, veremos como o autor de Ao redor do escorpião... se utiliza de travessões, pontos e interrogações para caracterizar a mulher, e reticências e vírgulas para o homem; e também para ele as adversativas. O romance de Carrero é literário. Que digo com isso? Não o são todos? Entendo que ele quer tirar das letras, estas que estão para todos, e também dos tropos, seu valor máximo. Suas epígrafes são como uma espécie de lembrete alfinetado na capa do livro: prestem atenção nas letras e na gramática para captar minha mensagem! Se for preciso – e será! – releiam-no. O texto está estruturado em torno de três capítulos. Cada um deles composto por exatas cinco partes, numeradas, sequencialmente, de um a quinze. Nota-se uma organização. Melhor: nota-se a necessidade de uma organização. O tema é complexo. A primeira parte expõe o tema. As seguintes, como em um longo e lento adágio, vão retomando o tema e acrescentando, discretamente, novas informações. A última, como uma coda, retoma todos os pontos, mas não conclui. A última frase do livro é igual à primeira. A mesma repetição acontece no décimo terceiro trecho. O ricorso viconiano, retomado por James Joyce em Finnegans Wake está presente. Sua última pontuação é dois pontos: podemos começar tudo de novo. Pois recomecemos: A sequência dos quinze trechos está marcada pela música, como se fossem variações em torno do mesmo tema. A ASSUADA
Então, pelo início. Vamos dar atenção à exposição do tema. Da capo.
Essa a primeira frase. Como uma frase musical, ela será repetida e desenvolvida ao longo do texto. Trata-se de um momento de compreender o instante de ver. A cena é posterior ao clamor do sexo. Clamor do sexo? Parece tão óbvio!
Movimentos a especificar o clamor, parecem. Lembremos que o autor nos chamou a atenção para o valor das palavras. Elas devem estar potencializadas. E o que é clamor? Qual sua potência? Clamor é uma gritaria de súplica, de protesto, de reclamação, de ameaça, e também de aplauso. Na sua sinonímia entram grito, lamentação, rogo e assuada, que no português medieval tinha o sentido de um ajuntamento de pessoas armadas para fazer desordem, confusão. – Não há dúvida, passado o clamor sexual é um modo de dizer do momento sucessivo ao coito, um coito agitado, tenso, entre a agonia – precursora da morte –, e o gozo. A frase seguinte, um close up cinematográfico, mostra a cena composta de uma
Nossa angústia não diminui antes do quarto parágrafo. Aí o autor confessa: trata-se de um sonho, na verdade um pesadelo, como especifica no terceiro trecho, esse sonho – diferente de um sonho de angústia –, do qual não se consegue sair. Mais tranquilos, podemos retomar a frase da mulher com o revólver. O efeito da bala será o mesmo de um amavio: enfeitiçará o coração do marido, sem ofender as carnes. Mais adiante, ainda no primeiro trecho, a bala é comparada a uma flecha que, ferindo o coração, faz verter lágrimas. A flecha encantada é a flecha de Cupido, a cupiditas, é a flecha do erótico Eros grego. É hora de a aranha entrar em cena. Começa na orelha esquerda. É grande e peluda e felpuda. Uma tarântula (pp.16-7). Do mesmo modo que todos os elementos da cena, a aranha também vai se desdobrando, como em uma pintura de Brake, em quadros que se sucedem em direção ao infinito, em um crescendo. A tarântula no joelho (p.23), nos seios ( 27).O revólver vem para a coxa, para o peito, o decote em V, da mulher que olha e vê. Ainda no terceiro parágrafo entra em cena a mãe. Tão exíguo o parágrafo anterior que esse terceiro bem poderia passar por um segundo. E a mãe, não fosse uma cantora de banheiro, poderia passar por Nora Ney cantando Não tenho você, na letra de Paulo Marques e Ari Monteiro.
Entrou em cena a música, um samba nostálgico, falando de uma falta. A filha escuta a mãe cantar a saudade de um terceiro, excluído da cena. Alice, olhando para o marido adormecido, lembra a mãe sentindo a falta de seu marido, de seu pai, quem sabe? – Um quarteto! A mãe abre a sensibilidade de Alice para a música. Agrada-lhe o sax de Dexter Gordon, isso após ter experimentado o grave jh (Johnny Hallyday cantando, quem sabe l’amour que manque a la vie), e mesmo o inquieto cp (Charlie Parker, The Bird). A mãe, cantando, conta-lhe coisas. Na lembrança de Moacyr Franco, canta Adeus às ilusões, de Jonny Mandel e Paul Francis Webster, na versão de Luiz Bittencourt:
A confusão, armada de revólver, busca revolver a desordem. É preciso pôr ordem no caos e criar o mundo. CANTO DA NOITE
Para possuir o corpo do marido, é preciso matá-lo? - A maior posse é a daquilo que se mata. Mas quem olha para quem? Quem mata quem? Quem é quem?
No capítulo 10 de Finnegans Wake, o texto desenrola-se em três colunas. Enquanto no meandrolato desenvolve-se a história, nas margens aparecem, na esquerda, as observações de Shem, o escritor, e na direita as de Shaun, o carteiro. Mas em determinado momento eles trocam de posição e com isso tolda a tranquilidade do leitor. Em Ao redor do escorpião..., não se sabe bem quem sonha! As imagens são especulares, um fala desde o lugar do outro, por vezes de um maiúsculo Outro lacaniano. Alice ainda é a imago de sua mãe. Está a força do vento, a força do jazz, de jh, de cp, de dg, mas a marca da mãe cantando felicidade foi-se embora, e a saudade aqui no peito ainda mora (p.27), do Lupicínio Rodrigues, é que conta. Lembremos que ela segue assim:
O erotismo da mulher confunde-se com o da menina. Deve ser como menininha ainda que essa senhora navegue no vasto ventre escuro do mar. O negro bosque, a negra aranha, a negra música, tudo a latir no ouvido, como se o ouvido prescindisse da letra. O bosque negro da noite bem pode representar a buscada e impossível sexualidade adulta, colorida, dificultada justamente por ainda navegar no ventre escuro da mãe dominadora que, ela sim, Alice imagina, conhece o mundo! Mas Alice deseja rir. Deseja ou quer? É diferente o riso do sorriso? Ri (junto com outro), ou riso (ri-só)? Rir com o outro é uma forma primitiva de dizer da relação sexual. Os esquimós se pronunciam assim. Alice se confunde com a gargalhada, uma e outra vez. Se ela sorri, é o negro que toca a sombra do seu sorriso (p.28), tocando, possívelmente, I’m a fool to want you. SÃO JORGE RIDES AGAIN
Não deixa de ser interessante lembrar a etimologia inglesa do nosso substantivo revólver, revolver, tal qual a escrita do nosso verbo revolver, com o sentido de revisar, agitar o espírito. É interessante também o sentido da palavra inglesa para pesadelo, que aí se diz nightmare, égua-da-noite. Nas lembranças de Alice, ela e os meninos cavalgavam cavalos de pau. Já na infância o cavaleiro frequentava seus sonhos: um marido cavaleiro (p.33). Mas, como diz o autor,
Do desequilíbrio, a possibilidade da vida. E os blues da orquestração representam sempre o tema da libertação.
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