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O ALIENISTA
De Joaquim Maria Machado de Assis
In Papéis avulsos I, Coleção Obras Completas de Machado de Assis, São Paulo,
Globo, 1997. 102p.
Comentários
de
Luiz-Olyntho Telles da
Silva
De médico, poeta e louco,
todo mundo tem um pouco.
Provérbio popular.
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Quando se escolhe um texto para comentar, enfrenta-se pelo menos duas dúvidas:
será o mais adequado? Estaremos à altura do texto para comentá-lo? Tratando-se
de Machado de Assis, a primeira dúvida se apequena porque temos certa intimidade
com o autor. E não falo apenas de mim, tenho a impressão de que no nosso
meio o sentimento é geral, mesmo entre os que pouco o leram e até entre os
que nada leram. Machado é de casa! Certa vez escrevi um conto em que seu
fantasma visitava um escritor, no meio da noite, para bisbilhotar em seus
escritos. A idéia era essa, de uma presença quase familiar. E assim a escolha
fica fácil, seja qual for o texto de Machado de Assis, todos nos ensinam
algo! A segunda dúvida já é mais difícil de enfrentar. Os universitários
dedicam anos ao estudo do Mestre, e sempre tem algo a mais para ser descoberto
e considerado. Então, como posso me animar, se esse não é o meu caso? Minha
autorização – é como imagino! –, vem da hipótese de que o mundo que cada
um vê nunca é inteiramente o mesmo que o outro vê.
Comecemos então pelos acordos: o alienista é, antes de tudo, um texto irônico.
Quero crer que a opção por essa tonalidade deva-se à seriedade do assunto,
tão séria que não raro deixa seus estudiosos céreos.
E o assunto, como bem sabem, não é outro do que a loucura, esta afecção
obscura, tomada aqui, amplamente, e que hoje tendemos a especificar sob o
título de psicose. Se a origem da palavra loucura é obscura, para
psicose temos uma nobre genealogia grega: deriva de psique, a alma, mais
ose, um obscurecimento da visão. E esse obscurecimento, esta amaurose,
é tanto maior quando de se trata de olhar para a própria alma. Para isso
é primordial não ter medo das palavras.
Ler Machado de Assis é fazer uma viagem no tempo e na língua. O porto necessário
de partida tem de ser os conhecimentos de nossa época. Uma vez com esse registro,
podemos pegar carona até no carro de ossos em que viajava Brás Cubas.
Viram como ele abre seu conto? As crônicas da vila de Itaguaí dizem que
em tempos remotos... Tempos remotos. Quando estudamos uma doença, hoje,
preocupamo-nos em conhecer, além da sintomatologia atual, sua história pregressa,
acontecida em tempos remotos. E o conhecimento da história pregressa
sempre é difícil! O conhecimento das origens, como em geral não se estava
lá, precisa ser sempre inferido, senão de deduções, pelo menos de informações.
É assim que Machado recorre às crônicas da vila de Itaguaí.
Para assim proceder, ele diz – na Advertência introdutória a estes
Papéis avulsos I –, apoiar-se em São João e Diderot. No primeiro,
desde o Apocalipse, para valorizar antes o sentido das coisas, do que a inteligência,1 e, no segundo, para dizer que através do exercício
do conto pode-se tornar a vida mais leve, como anos mais tarde proporia Ítalo
Calvino. Como O Alienista é da mesma época de As memórias póstumas
de Brás Cubas, não está demais sublinhar, nas primeiras linhas do último,
o aviso do narrador sobre a influência sofrida de Lawrence Sterne, o autor
de Tristram Shandy, e de Xavier de Maistre, conhecido pelo seu famoso
Viagem ao redor do meu quarto, quando ele diz ter usado a
pena da galhofa de um para escrever com a tinta da melancolia
do outro. As rabugens de pessimismo das Memórias aqui não as
há. De Freud também não há nenhuma influência e, se houvesse, o caso seria
antes ao contrário; no ano de publicação do conto, 1881, tão longo que alguns
chamam de novela, Freud, aos vinte e cinco anos, recém terminava a Escola
de Medicina. Embora preponderassem na época as ideias cartesianas, na ocupação
com as revoluções de seu tempo, como se este fosse o estado necessário para
conhecer o caráter dos homens, aproxima-se de seu contemporâneo Flaubert,
e também de Gui de Maupassant, cuja primeira versão do conto Horla
tem alguma proximidade, mas também com uma influência daqui para lá; na segunda
versão, há uma alusão a um barco com bandeira brasileira de onde teria vindo
a influência. Mais próximo da circunstância do autor, encontrei um conto
de Joaquim Manuel de Macedo, A luneta mágica, de 1869, que poderia
tê-lo influenciado nas diferentes formas de ver a loucura. Conta a história
de Simplício, um míope, físico e moral, que buscava aliviar seu sofrimento
usando diferentes monóculos: um que mostrava as pessoas como eram, em toda
sua maldade, outro que possibilitava ver o lado bom, e um terceiro que lhe
dava bom senso.
Seja como for, a verdade é que já naquela época, Machado se dava conta de
que o observado não é sem o observador. Por isso, embora brevemente, ele
diz dos antecedentes do Dr. Simão Bacamarte, formado pelas escolas de Coimbra
e Pádua. É desde aí que ele toma como seu universo, quer dizer, como o conjunto
que constitui sua totalidade tomada como referência, a vila de Itaguaí, onde
estão também suas próprias origens. Seu gosto pelos árabes, em especial por
Averróis, parece um modo de denunciar, entre todos nós, a profunda influência
dessa cultura em nossa língua.
Menciono a observação por constituir-se essa como o método por excelência
do Dr. Bacamarte. Foi mesmo através desse método que ele escolheu, ainda
antes de definir-se pela especialidade de alienista, a mulher para ser sua
esposa: boa de anatomia, digestão e sono, ainda gozava de boa visão; se era
mal composta de feições, isso não só não a impedia de ter filhos robustos
e inteligentes, como também não iria distraí-lo de seu interesse e compromisso
com a ciência. E é verdade que o engano aí sofrido não lhe serviu de derrogação
do método. Usou-o sempre!
E como o poder de cura da ciência consiste, antes de tudo, em dedicar-se
a ela, a ela dedicou-se o Dr. Bacamarte. Dessa dedicação terapêutica é que
lhe surge a vocação de alienista, a qual deveria cobrir a ciência brasileira
de louros imarcescíveis. Se essa não foi a sorte da ciência de Simão
Bacamarte, os louros que Machado de Assis içou aos lauréis de nossa literatura,
esses sim, jamais murcharão.
Seu propósito primeiro de agasalhar todos os loucos em uma mesma casa
é, de um lado, uma aposta na organização e, de outro, uma idéia de salvação.
Está bem, pode-se compreender. Mas por que Itaguaí?
Uma viagem ao interior? Ao interior do próprio estado (mórbido)? É uma boa
hipótese, sem dúvida, mas perguntemos um pouco mais às crônicas da vila,
como recomenda o narrador, uma vez que os tempos remotos não o são
tanto assim, pois a fundação da vila de Itaguaí remonta apenas a meados do
século XVII, quando, durante o governo de Martin de Sá,2
os índios Y-tingas vieram para a região, próxima do Morro da Cabeça Seca,
atraídos pela promessa da criação de um entreposto. Sua resistência à catequese
jesuíta, contudo, resultou em diversos conflitos e num deles os portugueses
capturaram um indiozinho de dez anos, que depois de catequizado e batizado
como José Pires Tavares, passou a viver entre os colonos. Crescido, e já
casado com uma índia, José Pires Tavares viaja a Portugal com a intenção
de obter junto à Rainha Maria I uma carta de proteção para a tribo Y-tinga.
Enquanto isso, sorrateiros, os colonos atacaram a aldeia indígena sem distinguir
sexo nem idade. E os que aí não morreram, os colonos amarraram em canoas
furadas que foram empurradas mar adentro. Quando Tavares voltou, com a carta
de proteção em mãos, já não havia nada a proteger. É depois dessa chacina
que se funda a vila de Itaguaí, na rota das viagens para São Paulo e Minas
Gerais. Chamaremos esse episódio inaugural de loucura? Será contra essa loucura
o irônico libelo de O Alienista?
Pois o nosso herói, Dr. Simão Bacamarte, batizado com o nome da provável
arma de extermínio dos Y-tingas, é descrito como o maior dos médicos do Brasil,
Portugal e Espanhas. Seu lugar é único, sua voz é lei. Oposição, ainda que
tímida, oferece-lhe apenas o Padre Lopes, e mesmo assim com a maior discrição
e por vias indiretas, enquanto o boticário Crispim Soares serve de bajulador.
A internação dos deserdados do espírito, em claro contrato com a vereança,
era para estudo.
Sua primeira classificação é quase doméstica: furiosos e mansos. Seus estudos
mais aprofundados começam a partir do segundo capítulo, quando toma por epígrafe
uma apócope de dois versículos da primeira epístola de São Paulo aos Coríntios:
Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não
sou nada.3 Lotada a Casa Verde e construída
uma nova galeria de mais trinta e sete cubículos, destaca-se um primeiro
caso, incompreensível: um rapaz, que três meses antes jogava peteca na rua,
agora fazia todos os dias um discurso acadêmico, ornado com as mais diversas
figuras de linguagem, bordado pelas antíteses, as apóstrofes, com seus relevos
de grego e latim, tecidos com finas citações dos clássicos indispensáveis
à leitura de qualquer erudito, Cícero, Apuleio e Tertuliano. Observemos ainda
que a palavra empregada pelo autor para fechar a descrição, borlas,
tem duplo sentido: são as bolas de passamanaria, tomadas como metáfora, e
são também os calotes para enganar as prostitutas, para gozar sem
pagar, e que aqui servem para enganar o leitor porque enquanto descreve um
louco, também descreve sua concepção de um escritor e da escrita, a qual
precisa sempre ter ao menos um duplo sentido.
E então começa seu estudo, pelos loucos por amor (p.8). O primeiro
caso, de um rapaz de vinte e cinco anos que supunha ser a estrela d’alva,
abria os braços e as pernas, para dar-lhe certa feição de raios, passando
assim o dia, em um estado que hoje a psiquiatria chama catatônico. Esses
casos existem. Eu mesmo, quando trabalhei no Hospital São Pedro, na seção
de doentes crônicos, pude acompanhar um rapaz que passava o dia inteiro assim;
seu único movimento era de rotação sobre si mesmo para acompanhar o movimento
do sol, do qual seu olhar não desviava. Diferente do interno da Casa Verde,
o do São Pedro ficava o tempo todo em um pé só! Assim que, a posição de estrela
não deve ser por nada. Pulemos algumas páginas e vamos – no capítuo V –,
dar atenção às notas etiológicas do caso de um caga-ducados, o perdulário
Costa. A culpa de ser como era – explicava uma tia –, esperdiçando tanto
dinheiro, devia-se antes ao tio que lhe deixou a herança, um mão-de-vaca
que não dava nem bom dia. Certa feita, a um homem feio e cabeludo que veio
pedir-lhe água, disse que fosse beber no rio ou no inferno, pelo que, com
ar ameaçador, o homem rogou-lhe esta praga: - Todo o seu dinheiro não
há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão!
E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Eu lhes dizia da importância
do duplo sentido. Pois então! Quando leram a descrição do caso da estrela
d’alva, que ele chama de Falcão, é bem possível que tenham reconhecido
aí a conhecida figura desenhada por Leonardo Da Vinci, com um homem, os braços
e as pernas abertas, em duas posições, inscrito em um círculo. Pois aí está
a base do pentagrama conhecido como sino-salamão. Sua história é muito antiga.
Sir James Frazer, no seu O ramo dourado, conta que a estrela d’alva,
companheira constante dos marinheiros, serviu para trazer do oriente para
o ocidente o culto da deusa Isis metamorfoseada em Virgem Maria. Adotado
pelas religiões, em particular pelo judaísmo e pelo cristianismo, embora
com sentidos diferentes, mas sempre representando um poder divino e a perfeição,
o signus-salomonis, conhecido também como sino saimão ou signo de
Salomão, foi também estudado pelos pitagóricos cujas conjeturas místicas
levaram a pensar que por meio dele se podia prender a genialidade. Afinal,
antes de prender o gênio na garrafa, há que capturá-lo, não é mesmo?! Pois
o escritor também ambiciona a captura da genialidade, sem a qual não se sai
do mesmo. E por que não com o concurso de um pentagrama inscrito em um heptagrama
inscrito em um círculo?
Sigamos porém com os estudos nosológicos do Dr. Bacamarte. Aos loucos
por amor seguem a mania das grandezas e a monomania religiosa.
Como vêem, a ironia está sempre presente. Monomania religiosa! Ora, ora.
Um só deus, para amigos e inimigos?!
Quando consegue um pouco mais de tempo, aprofunda-se. Dos Furiosos
e Mansos passa às subclasses de monomanias, delírios
e alucinações. Mas, atenção, se ele parece confundir síndromes com
sintomas, vejam como nos estudos mais aturados – aos quais não se alcança
sem a perseverança –, começa a examinar os hábitos de cada louco, as horas
de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências
(p.10), isso enfim que a psiquiatria, de mãos dadas com a psicologia chama
de comportamento. Mas também inquiria da vida dos enfermos – ainda que com
a acurácia modelada no corregedor –, a profissão, os costumes, os acidentes
da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família,
sem relevar das circunstâncias da revelação mórbida (p.10) hoje de tanta
importância para a determinação do prognóstico de uma cura.
Se nada parecia distrair o nobre médico de seus estudos, temos de reconhecer
que a ausência da esposa, em viagem pela capital, deu-lhe a serenidade necessária
para a descoberta de uma nova teoria: seu conceito de loucura, para não dizer
a sua loucura, cresceu de uma ilha perdida para um continente,
e junto o reconhecimento de que a insânia abrange uma vasta superfície
de cérebros (p.15). É aí que passa a descrever, caso a caso, os exemplos
conhecidos da história, a começar por Sócrates, de quem Platão nos conta
que tinha um daimon, aqui corretamente traduzido por demônio familiar
e motivo para justificar sua loucura. Ainda que esse daimon servisse para
justificar também a genialidade do mestre grego, temos de lembrar que quando
ele vai visitar Agaton, por ocasião do planejado simposium, antes de entrar
na casa, Sócrates para sob o pórtico de outra residência e, apoiado em um
pé só, fica ali por algum tempo, absorto, tal qual nossa estrela d’alva,
na mesma posição adotada durante uma batalha da qual participou, enquanto
as frechas sibilavam em seus ouvidos e as espadas de seu exército brandiam
contra os adversários. Lacan diz que Sócrates sofria da Síndrome de Cotard.
Essa nova teoria é a base do terror com o qual inaugura o capítulo quinto
onde recolhe-se os ilustres Costa e Mateus, envenenado este pelo amor
das pedras (p.22). São assuntos para o Padre Lopes contar a D. Evarista
que acaba de voltar, acompanhada de quase todo o seu préstito.
Mas estou a falar da volta sem ter falado da ida. Lembram que quando o marido
ofereceu-lhe a viagem ao Rio, para ela isso equivalia ao sonho do hebreu
cativo? Pois lhes pergunto: - será que o emprego dessa figura nos autoriza
a dizer da admiração de Machado de Assis por Verdi, cuja ópera Nabucco
estreara quando tinha dois anos de idade? Angustiado com a invasão da Itália
pela Áustria, Verdi compõe esta ópera com tanto ardor que a ária do hebreu
cativo foi tomada por muitos como se fosse o próprio hino da Itália. Para
mim, em todo o caso, a lembrança dessa ária ajuda-me a compor a imagem do
aprisionamento vivido por D. Evarista em um matrimônio que muito não diferia
de sua anterior viuvez.
Mas a volta da esposa não amaina o interesse do alienista que logo aloja
na Casa Verde Martin Brito, o jovem poeta que para elogiar a semsorte,
quero dizer, a consorte, disse que quando Deus quis vencer Deus, criou
D. Evarista (p.26). De fato, o exagero constituía-se em forte denúncia
de lesão cerebral (p.27)! Depois prenderam o Gil Bernardes, que era
gracioso e cortês demais (p.28)! Pois, para encurtar a história, o terror
foi tanto que não podia terminar senão em rebelião. A turba encontrou voz
no barbeiro Porfírio, disposto a ver por terra a Bastilha da razão humana
(p.30). Valha a ironia: para contrapor à Revolução Francesa, a Revolta
dos Canjicas! Seriam sabedores, esses revoltosos, que quando da invasão
da Bastilha estavam presos aí apenas sete pessoas? O sentimento da revolta,
contudo, vem marcado pelo Padre Lopes, leitor de Dante, que evoca o primeiro
verso do canto XXXIII, do Inferno, onde se fala da traição dos amigos,
da traição sofrida por Ugolino do arcebispo Rogério, e se escuta ao fundo
que o homem é o lobo do homem.
Mas apesar do sucesso da revolta, com a adesão até do corpo de dragões, o
barbeiro titubeia, deixando-se, de um lado, intimidar pela poderosa eloquência
do alienista, e, por outro, sentindo despertar em si a ambição do governo
(p.34). Viram que para obter o apoio do Médico, tratou de cooptá-lo (usando
da melhor técnica de nossa triste contemporaneidade), para assombro do Alienista
que, honesto, esperava até cadeia, esperava tudo menos isso (p.42)! Como
podem ver, uma nota suficiente para já prevermos aí um novo candidato, se
não ao governo, à Casa Verde sim. Mas a esta altura todos já notaram que
entre os pecados do Dr. Bacamarte não encontramos a pressa. Há tempo para
tudo, até para a traição do bajulador, cantada pelo Padre Lopes. Crispim
Soares reconhece isso ao lembrar da citação de Lucano feita pelo Padre: Victrix
causa diis placuit, sed victa Catoni.4
Mas quando o povo sente que suas ambições estão sendo traídas pelo ignominioso
Porfírio, eis que outro barbeiro se alevanta. João Pina. Com voz de tenor,
bem que poderíamos ouvi-lo trauteando os últimos versos de O barbeiro
de Sevilha, da ópera bufa de Rossini: Figaro cá, Figaro lá, Figaro
cá, Figaro lá. Figaro! Motivo para encontrarmos um Machado de Assis leitor
do também irônico Beaumarchais. Resultado, a Revolta dos Canjicas deu em
nada para a população mas muito para o Alienista que foi metendo na Casa
de Orates de um tudo, vereadores pela simples inconsistência de opiniões
(p.45), presidentes que queriam vingança com almudes de sangue, atingidos
pela famosa demência dos touros (p.46), mentirosos inocentes, elegantes
dados a tafularia, outros por pródigos ou por avaros, enfim, tudo aquilo
que no início do século seguinte Freud iria chamar de Psicopatologia da
vida cotidiana, e até o que Freud não ousou mencionar, como a mania
sumptuária de D. Evarista, cume de uma escalada da qual o nobre Alienista
não titubeia em retornar. Reconhecido o engano, soltou todos!
Loucura não era o desequilíbrio das faculdades, concluiu o nobre esculápio;
essa era a normalidade! Patológico era o equilíbrio ininterrupto (p.49).
Como se o Dr. Simão Bacamarte também passasse a usar um novo monóculo armênio,
hospedava na Casa Verde agora os de funcionamento correto, como o vereador
que não votava na exceção dos edis, o sensato Padre Lopes, a dedicada mulher
do boticário, um reto e fiel companheiro, e até um juiz-de-fora. Abandonada
a antiga teoria, eis que surge uma nova: os alienados são alojados por classes!
Os modestos, os tolerantes, os verídicos, os símplices, os leais, os magnânimos,
os sagazes, os sinceros (p.54), e assim por diante, até chegar ao seu canto
de cisne: a terapêutica!
Debussi costumava dizer que a simplicidade era o último passo antes da perfeição.
E é mesmo! As grandes descobertas, as grandes invenções, no fundo são como
o ovo de Colombo, muito simples. Para quem sabe, é claro! Para curar, ele
atacava, cuidadosamente, a excelência, a perfeição moral particular
de cada doente (p.56), com aquilo que lhe fosse mais caro, anéis de brilhante,
distinções honoríficas, placas de ouro, malas de dinheiro... Desculpem, as
malas de dinheiro são de outro conto! Perdoem meu ato falho, mas é que a
simplicidade da descoberta terapêutica do Dr. Simão Bacamarte consistia em...
a maravilha de seu sistema terapêutico... eu não queria usar essa palavra,
mas, enfim... verdade que é uma palavra com um pedigree latino, não
muito honorável mas... latino. Está bem, vou dizer: para curar, o Dr. Bacamarte
subornava os doentes. Sabem que suborno entra na sinonímia
de corrupção. Quem sabe estivesse apoiado em Aristóteles, pois o estagirita
dizia que o destino do que nasce é a corrupção! Mas já seria ir longe de
mais. O que importa é que seu método deu certo, para o pasmo dos cronistas
de Itaguaí. E então, todos curados, quando só parecia faltar-lhe o Nobel,
eis que o indemovível perseguidor da verdade enfrenta-se com nova esfinge:
teria ele participado da cura, ou seria a simples vis medicatrix da
natureza (p.57)? Sua conclusão, agora apressada, eu diria, foi de que não
podia ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade
nova; uma e outra cousa existiam no estado latente, mas existiam (p.59).
Afinal, como diz um ditado que ele deve ter aprendido na Espanha, lo que
la naturaleza no dá, Salamanca no lo presta.
Já sabem como o conto termina. Como se o Alienista não soubesse usar adequadamente
o óculo armênio do bom senso, internou-se a si mesmo, para estudo, até a
morte.
CODA
Nós, porém, que hoje já aprendemos alguma coisa com os Bacamartes da vida,
pensamos que o Alienista não prestou a devida atenção à importância do sexo.
Mas andou por perto. Para ver isso, mergulhemos um pouco nas entrelinhas,
nas alusões. Vamos dar um pouco de atenção, para finalizar, nisso que hoje
chamam de make off. Para o frontispício da Casa Verde, por exemplo,
o Alienista escolheu uma frase do Corão dizendo que Alá tira o juízo dos
doidos para que não pequem. Reparem na idéia de pecado aí presente, uma
palavra antiga, com o sentido original, latino, de tropeço, que quando
os romanos se tornaram católicos adquiriu sua conotação moral. Sabem que
os católicos já nascem com um pecado de origem! E a assinatura da frase,
o Alienista, espertamente, atribui a um papa. Não a um qualquer, mas a Benedito
VIII, político, criador do celibato dos padres e do poder teocrático do papado.
Mais adiante, já instalado o terror, menciona a loucura perdulária do Costa
consistente em distribuir entre os necessitados (e também entre os exploradores)
a herança recebida de um tio, uma herança magnífica, régia mesmo, de quatrocentos
mil cruzados em boa moeda de el-rei D. João V. Pois a menção a D. João V
não é à toa. Este novo rei sol português era um tarado sexual e conhecido
como Freirático, devido ao seu apetite sexual por freiras, com as
quais teve muitos filhos. Agora, a principal referência, a meu ver, a mais
sutil, está na viagem de D. Evarista ao Rio de Janeiro. Aí, da sua visita,
ela destaca o chafariz das Marrecas. Como podemos saber a data de sua construção,
ao mesmo tempo em que ele nos dá uma data aproximada dos acontecimentos,
o final do século XVIII, começo do XIX, dá-nos também a idéia de um conceito
hoje reconhecido como dos mais entranhados ao estudo das psicoses, e que
Freud só introduziu em sua teoria no ano de 1914, e isso que o Chafariz não
era de cisnes! Pois eis que o Chafariz das Marrecas não era feito só de marrecas.
Ainda que lindas, soltando água pela boca, obras em bronze de Mestre Valentim,
elas eram acompanhadas de duas estátuas, obras também do mesmo Mestre, datando
a primeira de 1783,5 aliás, a primeira
estátua fundida no Brasil, da ninfa Eco e de seu amado Narciso. Hoje, sem
passar por esse mito, já não há o que dizer sobre o amor, nem sobre a loucura.
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1.Apocalipse, 17:9 Aqui é necessário
a inteligência que tem discernimento.
2.Era governador do Rio de janeiro, de 1602 a
1608 e de 1623 a 1632, no Governo Geral de Diogo Botelho e Diogo de Mendonça
Furtado, respectivamente.
3. São Paulo aos Coríntios I, 13:1 Se eu falar
as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o metal
que soa, ou como o sino que tine. 2 E se eu tiver o dom de profecia, e conhecer
todos os mistérios, e quanto se pode saber; e se tiver toda a fé, até a ponto
de transportar montanhas, e não tiver caridade, não sou nada.
4. Lucano, Pharsalia, 1, 128. (A causa vencedora
agradou aos deuses, mas a vencida a Catão). – A referência é a Catão
que permaneceu fiel a Pompeu, vencido por César.
5. No governo do vice-rei Luís
de Vasconcelos e Souza, 4º Conde de Figueiró.
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