Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA:
UM PESADELO

G. K. CHESTERTON

Rio de janeiro, Tecnoprint, 1987, 166pp.
Tradução de David Jardim Júnior
Prefácio de Assis Brasil (Francisco de Assis Almeida Brasil)


Comentários de
Luiz-Olyntho Telles da Silva

Senhores e Senhoras

Vamos falar hoje de sonho e poesia, de como o amor os provoca. Como diria Scherazade, a história de hoje começa com dois poetas, dois poetas com díspares visões de mundo; de um lado a anarquia, o elogio da ausência de governo, e, de outro, a ordem, representada pelo cristianismo da simpatia do autor. O que talvez nem todos saibam – porque a edição que estou usando não ajuda –, é que esse romance está dedicado a um poeta. Chesterton, que além de escritor e jornalista, também foi poeta, dedicou-o ao seu colega da St. Paul School, em Londres, Edmund Clerihew Bentley, criador dos clerihews, poemas whimsical, fantasiosos, de quatro linhas biográficas. Por algum tempo eles se divertiram com esses poemas. Vejam uma amostra:

Sir Christopher Wren
Went to dine with some men
He said, »If anyone calls,
Say I’m designing Saint Paul’s.«
E o poema da dedicatória, seguindo o estilo, começa assim:

Uma nuvem encobria a mente dos homens
E uivando o tempo seguia,
Sim, uma nuvem doente sobre a alma pairava
Quando o ser criança nos unia.

Na edição brasileira que me caiu nas mãos, como se diz, o prefácio é do escritor piauiense, Assis Brasil, que, além de fazer uma análise geral da obra de Chesterton, ainda elogia a tradução. Um elogio, aliás, merecido: autor de um estilo caracterizado por uma sintaxe e linguagem particular, Jardim Júnior o mais das vezes encontra boas soluções. Mas tenho a obrigação de corrigir pelo menos uma informação contida no prefácio de O homem que era Quinta-feira: a primeira edição é de 1908, e não de 1904, como consta no final do segundo parágrafo. E uma interrogação deveria ser colocada junto à afirmativa desse romance ser um conjunto de várias histórias intercaladas. Acredito que, dizendo assim, perde-se a ideia dos diversos episódios de uma só história.

Por gentileza do Prof. José Luiz Caon (a quem agradeço também a nota, mais adiante, sobre o pelicano), fiquei sabendo da existência de uma tradução anterior, de José Laurêncio de Mello, para a editora Agir, em 1957, esgotada há muitos anos. Quando fechou a Agir, sua herdeira reeditou o romance, ao que parece, assinando ela mesma a tradução de Laurêncio de Mello. São dessas coisas feias que acontecem! E há também uma edição portuguesa, de 1989, da Estampa, de Lisboa, traduzida por Domingos Arouca, de onde retirei o verso da dedicatória. Para comparar a tradução com o texto inglês, tomei uma edição de Wordsworth Classics, de 1995.

Mas a questão da data de sua publicação não é sem importância. Há algo aí a falar da própria contextualização. Assis Brasil comenta a preocupação da época com os conspiradores escoceses e irlandeses em busca da independência de seus respectivos países, e é verdade, mas não só. Se no texto está aludida a relação entre ingleses e escoceses, é antes porque contando a história de sua aldeia conta-se a história do mundo. E há uma preocupação com a história do mundo, na verdade, com todos os dias de sua história. Mas temos de lembrar que a inquietação com o Anarquismo começava a preocupar o mundo. Talvez o nervosismo tenha começado com o assassinato do Presidente [Marie François] Sadi Carnot, da França, em 24 de junho de 1894, quando participava de uma cerimônia pública em Lyon. O fato chamou muito a atenção na época porque seu assassino, o anarquista italiano Sante Geronimo Caserio, depois de tê-lo apunhalado até a morte, com uma sica de cabo vermelho e negro – as cores da anarquia –, em vez de fugir, começou a correr em torno da carruagem do Presidente, enquanto gritava Viva a Anarquia! Viva a Anarquia! Depois, em 8 de agosto de 1897, ocorreu o assassinato do Primeiro-Ministro Espanhol, Antonio Cánovas, por outro italiano, Michele Agiolillo, como forma de vingança pela morte de anarquistas detidos em Barcelona pelo atentado à Procissão de Corpus Cristi, no ano anterior. Em seguida, houve a morte da inesquecível Sissi, a Imperatriz Elizabeth da Baviera, casada com o Imperador Francisco José, também chacinada por outro anarquista italiano, desta vez Luigi Luccheni, em 10 de setembro de 1898. Em julho de 1900, o Rei Humberto I, da Itália, também foi morto por um conterrâneo seu, o alfaiate Gaetano Bresci, com um tiro de pistola. E não está demais lembrar que em setembro de 1901, senão no dia 11, no dia 14, William McKinley Jr., vigésimo quinto Presidente dos Estados Unidos da América, foi assassinado pelo jovem anarquista de origem polonesa, Leon Czolgosz, inspirado em Bresci, também com um tiro do mesmo tipo de pistola. A correção da data da primeira edição de O Homem que era Quinta-feira me parece importante porque foi em 1907 que aconteceu o famoso Congresso Internacional Anarquista de Amsterdã, com a presença dos principais pensadores Anarquistas da época. Isso nos dá o direito de suspeitar que essa reunião tenha servido de inspiração para o seu Supremo Conselho do Anarquismo, cuja finalidade consistia no assassinato do Czar, quando ele se encontrasse com o Presidente da República Francesa, em Paris (p.56). Certa coincidência precisa ser lembrada: o assassinato, senão do Czar, e senão em Paris, do Príncipe Francisco Ferdinando da Áustria e de sua esposa, em Sarajevo, no dia em 28 de junho de 1914, estopim do início da Primeira Guerra Mundial.

Mas não nos preocupemos, aqui estamos em uma comédia (p.10). É o gênero ao qual um pesadelo, um nightmare, mais se aproxima.

A história parece intrincada, mas na verdade não o é tanto assim. Seus traços oníricos têm mesmo a intenção de nos confundir e é preciso levá-los em consideração para melhor compreender a história. Sabendo que Chesterton foi Jornalista, temos de dar especial atenção às suas primeiras linhas. Os jornalistas as consideram tão importantes que as designam com um nome especial, batizando o primeiro parágrafo de um texto como lead. Trata-se da raíz de leader, o que faz a função de guia que, nesse romance, estende-se por mais alguns parágrafos do primeiro capítulo, até entrar no sonho. A tradução em apreço, aliás, dividiu o primeiro parágrafo em dois, mas, fora ter descaracterizado o sentido de lead, continua sendo uma boa tradução! Os capítulos seguintes tratarão de ir desglosando-os até alcançar o final, em uma espécie de coda, no décimo quinto capítulo.

Iniciemos a leitura tomando em consideração o fenômeno de plurideterminação dos sonhos. Iluminada a cena, com uma luz vermelha filtrada pela mesma nuvem da dedicatória, essa que encobre a mente dos homens, a preocupação do autor é com a arquitetura. A minha também, como de resto também a de todos. Queremos entender a construção. Não só os prédios requerem uma estrutura, os textos também, sejam poesia, prosa, ou mesmo de teatro. Viram como ele oscila entre os estílos elizabetano e Rainha Ana? Será um jeito de pedir a proteção de Shakespere para essa nova comédia de erros? Pode ser, mas é também um modo de dizer que no horizonte está sempre a mulher a ditar moda.

E em seguida ele diz que a cena é toda ela muito agradável, desde que considerada como um sonho (p.9). Os personagens aí reunidos, mais que poetas, são poemas; mais que filósofos, objetos de filosofia; mais que cientistas, criaturas biológicas a serem estudadas. Iniciado o sonho veremos a multiplicação desses personagens a ponto de ficarmos com uma primeira impressão de serem muitos. Na verdade, nomeados, não alcançam uma dúzia inteira! Além dos dois poetas de Saffron Park, dentre os quais sairá Quinta-feira, está a irmã do outro e os colegas semanários, aos quais, ao final, juntar-se-ão o Coronel Ducroix e o Dr. Renard. Os personagens do ramo londrino do Supremo Conselho não contam.

Mas ainda é cedo para entrarmos no sonho. É preciso registrar alguns acontecimentos preliminares. O sol ainda está se pondo. Embora seja inverno, ainda há tempo para tertúlias, e o recém-chegado Gabriel Syme logo quer ter um lugar aí; o rosto meigo sob os cabelos ruivos de Rosamond Gregory cativaram-no.

Saber ou não saber para onde se vai é a questão. Melhor saber que a próxima estação será Vitória e nada mais, ou ao contrário, suprender-se sempre e, inesperadamente, dar em Baker Street, como quer o poeta anarquista? Vejam só! As rainhas outra vez, e agora a Rainha Vitória, clássica metáfora da repressão! A alternativa: encontar-se com Sherlock Holmes em Baker Street. O certo e o enigmático? Para o ordeiro Syme, melhor que os poemas pessimistas de Byron, o guia dos horários de trens organizado pelo cartógrafo George Bradshaw.  Sim, melhor isso; Rosamond, nem pensar.

Há um momento intermediário, entre a vigília e o sonho: um perfume de lilás, a música de um realejo ao longe  – que voltará a insinuar-se a cada tanto, como para marcar a continuidade do sonho –; as palavras parecem ressoar, ou ressonar, acima ou além do mundo (p.15). Há uma sensação de champanhe na cabeça, e a moça já não aparece mais, embora esteja sempre na música e a cor de seus cabelos venha impregnar todas as cenas daí por diante. E então Chesterton escreve: o que se seguiu foi tão improvável, que poderia muito bem ter sido um sonho (p.15). Em seguida, em um silêncio mais vivo do que morto, atravessa um portão... e já está no campo do sonho. Fantástico, não é mesmo?! Assim não é difícil entender por que Alice se via nos pais das maravilhas!

Lembremos que a característica primeira de um pesadelo é a sua imagem de realidade. É tudo tão real que o sujeito não aguenta, quer parar e não consegue. Aqui, há uma continuação da discussão: Gregory, o poeta anarquista, bate com sua bengala em um poste e em uma árvore, representando cada um, respectivamente, a ordem e a anarquia, um magro, feio e despojado e outro rico e vivo, reproduzindo-se esplendidamente em verde e ouro. O argumento de Syme é simples: agora só se vê a árvore graças à luz do poste! A teoria dos fractais determinante das formas da natureza ainda não estava disponível na época. Mas o que importa é que o poeta anarquista, ofendido em sua seriedade, resolve provar que não está para brincadeiras e, colocando Syme sob juramento, não apenas
lhe segreda, como ainda o leva a participar de suas atividades políticas.

A influência de Lewis Carrol faz-se sentir. De um restaurantezinho qualquer, à beira do cais, surgem as melhores comidas e as melhores bebidas. Lagosta e champagne Pommery. Syme, a propósito, faz uma brincadeira: Não é sempre que tenho a sorte de ter um sonho semelhante. É uma novidade para mim passar de um pesadelo a uma lagosta. O contrário é que costuma acontecer (p.20). Essa é a primeira das cinco vezes que aparece a palavra pesadelo no texto. Aparecerá novamente uma vez no capítulo V e também nos capítulos VII, VIII e X, sempre apenas uma vez. O tradutor faz uso da mesma palavra ainda em uma outra ocasião,1  de uma forma que não é de todo inadequada e provavelmente por não ter captado a intenção de reservar a característica de hápax para a palavra, dando-lhe, assim, maior força. Eles estão ali, conversando, e em seguida caem, despencando tal qual Alice, por uma espécie de chaminé, até encontrar-se diante de uma porta e da exigência de uma senha para passar: Mr. Joseph Chamberlain (p.21). Não por acaso senha e nome se sobrepõem. O nome próprio, embora aqui não seja exatamente o caso, tem sempre o valor de senha: se reconhecido, as portas se abrem, se não, não! Aqui, a presença do nome de um dos mais importantes políticos ingleses de todos os tempos pode nos confundir, mas vejam como separando a palavra chamberlain, veremos tratar-se do próprio sonhador. Reconhecemos aí duas palavras, chamber, câmara, quarto, e lain, o particípio passado do verbo to lie, estar deitado. Assim, podemos escutar na senha da resposta aquele que está deitado no quarto, sonhando. E se tomarmos em consideração a primeira conotação do verbo to lie, logo veremos que alguma mentira está em jogo.

Desde os primeiros embates sobressai o pensamento dualista. Essa é a base dos paradoxos que marcarão todo o romance. Sobre o estofo anarquismo versus ordem, vemos, em seguida, o tema da queda: atirar-se de um rochedo ou apaixonar-se (p.22). Lembremos que, em inglês, a expressão para apaixonar-se é to fall [in love], i.e., cair! A ideia parece ser a de não haver muitas alternativas. Como diz Nietzsche, ao final do seu Assim falava Zaratustra: o destino do equilibrista é cair.

Será para fugir do inexorável destino que se usa tantos disfarces? E o melhor disfarce revela-se naquele em que o sujeito finge ser exatamente aquilo que é, bem como diz Fernando Pessoa do poeta: um fingidor que finge ser dor a dor que deveras sente. Mas aqui importa a introdução do Conselho Central de Anarquistas sob o signo do disfarce, do qual seu chefe é o especialista maior; quando ele fala é sob a forma de epigramas (p.23). Tal qual o nome Chamberlain, todos são disfarces, e, introduzindo os demais membros do Conselho, todos conhecidos pelos sete dias da semana; o chefão será conhecido como Domingo, e pelos seus admiradores como Domingo de Sangue (p.24). Sob disfarce, as pessoas podem circular livremente. Aprisionadas ficam quando aparece a verdade. Revelados os segredos (pp.25-6), as pessoas tornam-se prisioneiras umas das outras. No país do Carnaval, precisamos de Backtin para nos dizer como isso funciona. Talvez por isso o pensamento cartesiano goze de tanta simpatia. Como dizia Pascal, o homem não é senão um caniço, mas é um caniço pensante (p.34).

É preciso então constituir o personagem, despi-lo dos trajes à Dickens e Bulwer-Lytton (p.38) e transformá-lo no elegante inspetor da Scotland Yard. As marcas, contudo, ficam. Se as implicações andrajosas de Dickens são conhecidas, temos de dar atenção ao resto propiciado por Edwar Bulwer-Lytton, autor de Pisani, um romance ocultista, inspirado nos princípios dos Rosa-Cruzes. O cheiro lilás das coisas secretas impregnará toda a obra, seja pelo segredo das tramas, seja pela inteligência empregada para deslindar enigmas escondidos em triolés (p.40). Reconhecer tratar-se aí de estrofes de oito versos com duas rimas, em que o primeiro, o quarto e o sétimo são iguais, enquanto o oitavo é uma repetição do segundo, sempre ajuda.

Paradoxalmente, contudo, os criminosos realmente perigosos são os instruídos (p.41). Como diz Dostoievski, em Notas do subterrâneo, os sanguinários mais refinados quase sempre foram cavalheiros refinadíssimos, muito mais do que os Átilas e os Stenka Razin,2  como era chamado o líder cossaco que viveu entre os anos de 1630 e 1671.

É assim que nosso herói, ainda ao estilo de Dostoiévski, trazendo o subterrâneo consigo, vai subindo o Tâmisa, por cerca de nove quilômetros e meio, para desembarcar um pouco depois de Charing Cross. Hoje quase ninguém lembra o significado de Charing Cross e, mesmo para alguns londrinos, como pude verificar, não passa de uma das importantes estações do seu Underground; verdade que estação sempre foi, embora com outro sentido, desde o século XIII, quando um dos reis Plantagenetas trouxe os restos mortais de sua esposa para descansarem em Westminster, como nos conta Freud.3  Nos lugares em que os carregadores precisaram parar para descansar, largando o esquife no chão, o rei mandou erguer cruzes góticas para marcar o caminho por onde passou o cortejo, as quais, no decorrer dos séculos, foram desaparecendo. Restou a de Charing Cross, já próxima de Westminster, a marca da saudade de um amor, do amor do Rei Henrique Plantageneta por Eleanora d’Aquitânia. Uma história, aliás, muito interessante: filha e herdeira de Guilherme X, Duque de Aquitânia, um amante das belas-artes, como já o fora seu pai, dono de um castelo sempre frequentado por poetas, trovadores, bailarinos, homens de ciência, filósofos e atores, Eleanora foi educada nesse meio, chegando a dominar oito línguas. Quando se casou com Delfim de França, levou esses costumes para a Corte, e quando seu marido se tornou Rei, Luís VII, ela organizou uma cruzada para ele, desenhando roupas mais adequadas para montaria, com malhas de proteção contra as frechas, criando corpetes para as mulheres e mesmo os decotes generosos que deixavam à mostra a parte superior dos seios. Contudo, sob pretexto de uma consanguinedade entre ela e o Rei, o casamento foi desfeito em 1152. Menos de um ano depois ela se casa novamente, agora com o Rei da Inglaterra, Henrique II Plantageneta. Onde ela se estabelecia, brotava a música dos trovadores, soava a poesia e instalava-se o amor cortês, ao que tudo indica criado por ela.

Conto-lhes essa história por acreditar que Chesterton a tinha em mente ao escrever. Ele aprendera com Huxley a consultar a Enciclopédia Britânica, e Eleanora d’Aquitânia é uma linda substituta para Rosamond Gregory que no sonho não pode aparecer.

Além de Charing Cross, ao descer do barco, a grande construção onde o
guia de Syme o espera para levá-lo ao Conselho Central de Anarquistas parece-se a uma pirâmide deserta. Ela só guarda a morte, em seu aspecto de pesadelo (p.47). Mesmo a Anarquia requer preparativos. Os que trazem o subterrâneo no peito sabem que a melhor camuflagem é a do camaleão. Vamos pois conhecer de perto os demais membros do Conselho para discriminá-los do meio ambiente onde se escondem, pois de perto tudo é terrível, a começar por Domingo, um homem tão enorme que perto dele os outros parecem anões; seu rosto, grande demais, lembra a máscara de Memnon, cuja fotografia do Colosso ele vira no Museu Britânico. O Secretário do Conselho, chamado Segunda-Feira, muito magro e vegetariano, com um cavanhaque triangular, sorrindo de um lado só, provoca mais terror do que qualquer outra coisa! O lugar de Terça-Feira era ocupado por alguém cujo olhar lembrava a tristeza de um servo russo, embora fosse polonês e se chamasse Gogol (p.51), como o escritor ucraniano de Almas mortas.4 Acima de seu colarinho branco sobressaía uma cabeça indócil, com barba e cabelos hirsutos, como bem poderia ser a cabeça de um gato ou de um cachorro. Em cena, a crítica de Domingo à estultice de Terça-Feira que parecia não prestar para nada! Mas a verdade é que todos eram muito parecidos, não só no sorriso unilateral e na flor de lapela, mas também na burrice. Um tal Marquês de St. Eustache era Quarta-Feira. Nele, casava bem uma cuidada barba francesa com uma sobrecasaca inglesa, ambas quadradas e pretas de tão azuis. Lembrava, contudo, os poemas sombrios de Byron e Poe, com seus fumadores de ópio. Seus lábios vermelhos e cruéis lembravam os dos tiranos caçando, nas pinturas persas (p.52). Sexta-Feira é o Professor de Worms, um pálido, mas inteligente cadáver ambulante ao qual, parecia, só faltava morrer. O Sábado era representado por um médico, dono de uma bem dosada grosseria, que, de trás de óculos opacos de tão escuros, atendia pelo nome de Bull. Se fôssemos traduzir os nomes, teríamos um Doutor Touro e um Professor de Vermes. E começam as revelações. Com a música do realejo insiste um verso da velha canção de Rolando:
Paiens ont tort et Chrétiens ont droit.5
O primeiro a ser desmascarado, na frente de todos, é justamente aquele que parecia ser o mais russo deles, o incompetente Terça-Feira Gogol. Desmascarado, apareceu, com seu sotaque cockney, a face de um inspetor de polícia. Depois, um a um, todos vão se revelando serem também espiões da polícia infiltrados naquele Conselho imaginário. Para revelar-se, o Professor precisa perseguir Syme por quadras e quadras até conseguir confessar-lhe, por ter desconfiado que Syme era policial, ser também ele um policial. Lembrei-me do apólogo dos três prisioneiros, apresentado por Lacan, em seu artigo de 1945, O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada.6  O diretor de uma prisão oferece a três detentos a possibilidade da liberdade, com a condição de eles descobrirem, entre três discos brancos e dois pretos, qual a cor do que foi colocado em suas costas, sendo que eles têm a possibilidade de olhar o disco dos companheiros, mas não o seu. Depois de um curto momento de hesitação, os três se apressam em dizer ao Diretor como tinham resolvido a questão. De certo modo, esse apólogo é o inverso do que aparece no romance: para nos conhecermos, parece mais fácil partir do conhecimento do outro para saber quem sou eu.

Mas o reconhecimento, embora mútuo, entre Syme e o Professor, parece não ser suficiente, e buscam o Doutor Bull, como se soubessem não haver dois sem três, mas não fazem isso antes de um bom copo  de Mâcon (p.79) e uma noite de sono. Como se vê, os eflúvios do champanha ainda se fazem sentir por meio da lembrança do delicado vinho branco da região de La Gorenne, embora no sonho o Professor que, de um lado quer discernir claramente o West End, dos teatros eu presumo (que na edição mencionada diz West Place – um lugar em New York, EEUU), do East End das docas, confunda o mencionado vinho branco com um Borgonha (p.83), sempre tinto.

E é então que Syme tem uma intuição, tão positiva quanto o apaixonante cabelo ruivo de uma bela mulher (p.90), e tão infalível como a de Pope (p.91) 
ele acrescenta, em clara referência ao poema The rape of the lock, de Alexander Pope, em homenagem à sua amada Belinda: Bull, por trás dos óculos escuros, é também um inspetor da Scotland Yard. Juntos, precisam tentar impedir o assassinato do Czar por St. Eustache.

Agora, Syme pode declarar suas armas: goles e asnas prata com três cruzetas recruzadas no campo (p.96). O esmalte vermelho dos goles garante a continuidade da tonalidade de todo o sonho, e, enquanto lembrava a Revolução Francesa (p.87), outra revolução, anterior, imiscuía
-se: a liderada pelo escocês Robert Bruce contra Edward II da Inglaterra, em 1314, no vale de Bannockburn e talvez, ainda antes, a batalha de Roncesvales, no século IX, na qual morreu Rolando. Quando Syme está planejando o ataque ao Marquês de St. Eustache, ao embalo de uma garrafa de Saumur, muito possivelmente do bom Anjou-Saumur do vale do Loire, entoa, com seu próprio escudo, o avesso da canção de Rolando: Gosto de ser justo para com o meu inimigo (p.97).

O planejamento para abordar o Marquês é platônico. Syme elabora todo um diálogo de alfinetadas, até o Marquês, ofendido, desafiá-lo para um duelo. E, afinal, decide-se pela brincadeira infantil de tirar o nariz do outro (p.99). Inspira-o a elegância animal do Marquês de St. Eustache, qual a de algum tisnado déspota, meio grego, meio asiático (p.98). Depois da alusão aos Diálogos de Platão, agora só pode estar brincando com Alexandre, aluno de Aristóteles, que, ao querer conquistar o Oriente, levando para aí os valores ocidentais, terminou assimilando os valores orientais. O ápice do capítulo se dá no tinir das espadas. No confronto com a morte iminente todos os temores o abandonam, como os sonhos abandonam um homem que acorda em seu leito (p.103). Os medos, o autor explicita, são tirânicos acidentes do pesadelo. O sangue que não mancha seu florete fará nascer no prado onde esgrimem um jardim de flores vermelhas. O duelo tem algo de sobrenatural. Ele parece lutar com o Diabo. Salva-o a lembrança dos cabelos ruivos da moça no jardim (p.105). Talvez, como em Roncesvales, ele tivesse sido escolhido para ser o campeão daquela bela dama! E o Marquês desiste do duelo confessando-se também um membro da Scotland Yard, seu perfeito disfarce escondia o Inspetor Ratcliffe – lembremos que Rat também se traduz por vira-casaca.

E nesse momento, como que tirando um coelho da cartola, Chesterton faz sair da boca do Dr. Bull as seguintes proféticas palavras, à guisa de um pedido de desculpas aos padrinhos do Marquês: Uma sociedade secreta de anarquistas nos está caçando, uma rica, poderosa e fanática igreja de pessimismo oriental quer destruir a humanidade como uma praga (p.108).

É aqui que um dos padrinhos, o Coronel Ducroix, o Coronel Dacruz, poderíamos dizer, simpatizando com a ideia, adere à luta contra os anarquistas que já os vinham perseguindo, agora nas proximidades de Calais, liderados muito possivelmente pelo grandalhão Domingo, parecido a um elefante branco (p.111), desembarcados há pouco do trem de Paris (p.106), vindo diretamente de... de Londres, já naquela época!

A perseguição e a fuga, em direção a Paris, são sui generis: quanto mais se afastam dos perseguidores, mais próximos os perseguidores estão. Seria um absurdo não lembrássemos que os perseguidores são criados pelos perseguidos. Os que ajudam na fuga, em seguida aderem aos perseguidores. É nesse estilo que, na cidade portuária de Lancy, o Dr. Renard adere à luta. A dificuldade de andar no escuro é resolvida pelo Coronel Ducroix que encontra uma lanterna com uma cruz (p.122), e quando Renard aparece na linha dos perseguidores, o Dr. Bull pensa que está dormindo em casa (p.126), ou louco. A perseguição dá-se agora por diques e quebra-mares e há um último desses em que ainda podem se defender, como o fez Públio Horácio Cocles (p.129), o caolho, que defendeu sozinho a ponte que levava à cidade de Roma, impedindo assim que ela fosse tomada pelos etruscos de Porsena. Os camponeses que os atacavam agora eram como aqueles etruscos do século VI a.C., dispostos a acabar com os últimos representantes da humanidade. E então o Professor de Worms se lembra dos últimos versos do poema Dunciad:
Tua mão, anarquia, desce o véu
E as trevas cobrem o espaço sob o céu.
(p.130)
Trata-se de um poema satírico de Alexander Pope, publicado em três versões diferentes, em diferentes momentos. Seu título deriva de dunce, estúpido, burro, ignorante. Noutra versão, ele terminará assim:
Thy hand great Dulness! Lets the curtain fall,
And universal Darkness covers all.
Tua grande mão Estupidez! Deixe as cortinas cair,
E a universal Escuridão cobrir tudo.

É só quando Segunda-Feira, o Secretário, revelando-se detetive da Scotland Yard, dá voz de prisão aos seus colegas por não saber ainda que também eram espiões da polícia, que cai a ficha para o Dr. Bull, possibilitando-lhe a enunciação: Nunca houve Conselho Supremo Anarquista coisa nenhuma! E sai para beber à saúde de todos (p.133).

Resta saber agora quem é Domingo. E quando se dirigem para o Breakfast, antes que a pergunta de seis homens para saber quem o homem é, o que se arma é a pergunta ao homem para saber quem eles são (p.137), uma pergunta que bem pode ter inspirado o Pirandello, de 1921, Seis personagens em busca de um autor. E não podemos deixar de notar como, mesmo depois de denunciados os disfarces, todos continuam agindo em nome dos disfarces.

Se Domingo não responde diretamente à pergunta, diz o seguinte: Desde o começo do mundo, todos os homens me caçam, como um lobo. Perceberam a sutil ambiguidade da frase? Trata-se de que todos os homens o caçam, como se ele fosse um lobo, ou que todos os homens, como um só lobo, o caçam? Moral da história, homo homini lupos, o homem é o lobo do homem! E em seguida: Mas ainda não fui apanhado, e o céu desabará antes que eu tenha sido acuado (p.138), diz Domingo ainda sob a nítida influência de Alexander Pope. E, antes de começar sua fuga, ele ainda confessa ser o homem do quarto escuro que fez com que todos virassem policiais (p.139).

A fuga do Presidente se dá no melhor estilo policialesco, com uma perseguição de carros e carroças pelas ruas de Londres, subindo por Edgware Road, até o Jardim Zoológico, onde ele, como um cornaca acostumado, sai montado no elefante com o qual já se parecia, descendo pela Albany Street e contornando o Park Square Gardens até Baker Street, e jogando de quando em quando uma bola de papel em seus perseguidores, cada uma delas com um recado enigmático particular. Durante a perseguição, Syme ainda tem tempo para observar a fauna do Zoo, chamando-lhe a atenção um pássaro bicudo, o pelicano, símbolo maçônico da caridade (dizem que ele é capaz de romper o peito com o bico para dar de comer a seus filhotes),7  que o faz lembrar um calau, imaginando um bico muito maior do que na verdade tem o Buceros rhinoceros.

O enigma dirigido ao Secretário veio por meio de um bilhete, em um poema ao estilo dos clerihews, que aqui transcreverei na tradução de Laurêncio de Mello, bem melhor justamente por respeitar a rima da primeira com a segunda linha e da terceira com o quarto verso:
Quando o arenque vai na corrente,
O Secretário ri contente;
Quando o arenque voa e pinota,
O Secretário bate a bota.
8
Depois disso, o Presidente abandona o elefante, voa em um balão tão gordo e leve como ele mesmo, deixando cair sobre o chapéu de Syme um papelzinho com a frase: A sua beleza não me deixou indiferente – Da FLORZINHA (p.145). Chesterton havia assinado o bilhete como Little Snowdrop. Verdade que não é fácil traduzi-la, pois nem todos os dicionários a mencionam. Trata-se de uma Galanthus Nivalis e o Houaiss a registra como fura-neve. Com esse dado, e entendendo o relato como um sonho, poder-se-ia ler, no lugar da assinatura, uma continuação do bilhete escrito todo ele pelo próprio Syme: sua beleza furou a neve do meu coração.

A leveza do Presidente é admirável, digna mesmo de um Calvino que a reconheceu no Perseu matador de górgonas e no mineiro de Kafka que sai pelos ares com seu carrinho de carvão. É um elefante que salta como um gafanhoto, como na piada de português, mas também como no Salmo 68:16 que a frase original nos deixa reconhecer:
Why leap ye, ye high hills?
Quare contenditis montes excelsi adversum montem quem dilexit Deus ut habitaret in eo siquidem Dominus habitabit semper
Ó montanhas elevadas, por que invejais
a montanha em que Deus quis habitar?

Embora cada um dos membros do suposto Conselho tivesse do Presidente uma imagem diferente, todos o comparam com uma só coisa: o universo. Para Bull, ele é a terra na primavera; para Gogol, o sol do meio-dia; para o Secretário, o protoplasma informe; para Ratcliffe, a despreocupação das florestas virgens; para o Professor de Worms, uma paisagem mutável; e Syme pensa em Domingo como pensa no mundo inteiro (p.151), como pensa no mistério do mundo (p.152).

Aproximando-se do final, o grande balão desce por entre umas sebes e, ao procurá-lo aí, Syme sente-se transportado ao país das maravilhas (p.154). Um mordomo indica-lhes lindas e ricas carruagens, como nos melhores contos de fadas, e eles são levados para um baile à fantasia em que cada um veste uma alegoria correspondente à primeira semana, quando Deus iluminou o mundo com o seu fiat, todos convidados do Presidente. Além deles, lá estavam o elefante, o balão, o poste, a árvore e até o calau. Eles estão ali, com Domingo, tentando entender o que lhes aconteceu, quando surge Lucian Gregory, o anarquista de verdade (p.164). O ódio e o não ódio em discussão. Por que cada coisa tem que ser contra outra coisa? Por que sempre os paradoxos? Parece uma descrição do inconsciente, no qual os contrários convivem paradisiacamente.

Então Domingo, com sua enorme cara de Memnon, que já lhe fizera chorar quando criança, pergunta a Syme: - Você já sofreu alguma vez? E depois, já ao longe, uma pergunta banal: - Podes beber da taça em que bebo?

Já não há mais Saumur, nem Mâcon, nem Borgonha, nem champanhe nenhuma, só o gramado de Saffron Park em que Syme está caminhando, agora desperto do sonho, ao lado de seu amigo Gregory, tramando uma conversa banal, iluminado pela aurora de longos dedos que está fazendo suas primeiras experiências com o amarelo e o cor-de-rosa, até o jardim onde Rosamond, com seus cabelos ruivos e dourados, colhia lilases, antes do breakfast, com a grande e inconsciente gravidade de uma donzela.

Porto Alegre, 17 de novembro de 2010.
  Gilbert Keith Chesterton


Fortuna Crítica:

















































































































































































1.  No cap.XI, p.113, como tradução para evil dream.


























































2.  DOSTOIÉVSKI, F. M., Notas do subterrâneo. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro, Bertrand, 2008, 6ª ed., p.33.







3. FREUD, S., Cinco lições de Psicanálise: Primeira lição. Rio de Janeiro, Imago, Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XI, p.19, 1970.





































4. Nikolai Vasilievich Gogol (1809 - 1852).
















5.  Vs. 1015, do final da primeira parte. É Rolando quem canta: Aos pagãos a injustiça e aos cristãos o direito.







6. In Jacques Lacan, Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, pp.197 e ss.







































































































































7. Há um hino atribuído a Tomás de Aquino em que toma a lenda do pelicano fazendo dele um símbolo cristão: o Pie Pellicáne!
 

 
Pie pellicáne, Iesu Dómine,
Me immúndum munda tuo sánguine.
Cuius una stilla salvum fácere
Totum mundum quit ab omni scélere.

Iesu, quem velátum nunc aspício,
Oro fiat illud quod tam sítio;
Ut te reveláta cernens fácie,
Visu sim beátus tuae glóriae. Amen.

 
Senhor Jesus, terno pelicano,
lava-me a mim, imundo, com teu sangue,
do qual uma só gota já pode salvar
o mundo de todos os pecados.

Jesus, a quem agora vejo sob véus,
peço-te que se cumpra o que mais anseio:
que vendo o teu rosto descoberto,
seja eu feliz contemplando a tua glória.


8.“When the herring runs a mile,
    Let the Secretary smile;
    When the herring tries to fly,
    Let the Secretary die.”

Com outra rima, eu o traduzo assim:    Quando o arenque uma milha andar,
Deixe o Secretário sorrir;
Quando o arenque tentar voar,
Deixe o Secretário cair.































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