Página de Luiz-Olyntho Telles da Silva

BARTLEBY  & COMPANHIA
a pulsão negativa e a arte de escrever

Piet Mondrian, Composição A, 1923

 

5 de maio de 2007, uma data importante para mim, como reconheceria Enrique Vila-Matas. Comecei a escrever sobre o seu Bartleby e companhia (São Paulo, Cosac Naify, 2004), um texto sobre a vida, às vésperas do natalício de Freud, falecido em 1939.

Um pouco antes havia lido o texto de Sergio Paulo Rouanet, autor de Os dez amigos de Freud, criticando em Zero Hora (Ano 44, Nº. 15.225, 2ª Ed., p. 15) o novo livro de Moacyr Scliar, O texto ou: a vida. Rouanet é discreto - afinal é colega de Scliar na mesma Academia Brasileira de Letras -, conhece bem a relação do escrito com a vida e sabe que não há alternativa: o texto é a vida. Pirandello - o do "ou se vive, ou se escreve" - que nos perdoe. Talvez ele não soubesse que sabia, mas quem descreve a história dos personagens na busca de seu autor, sabe! Mas também, como dizia Montaigne, nossa peculiar condição é sermos feitos tanto para que riam de nós como para rir.

Enrique Vila-Matas também começa suas notas de rastreador de Bartlebys (a classificação é dele mesmo) registrando a data de início: 8 de julho de 1999. De modo geral - deprendo isto da leitura do seu livro onde não registra a data de término - o importante é a data do nascimento. A morte é indizível! Da própria não há como falar. Quando muito escolher um epitáfio, e sem a menor garantia de tê-lo registrado. O mais provável, contudo, é termos um epitáfio incompleto, como aconteceu a Tolstói, morrendo em meio a uma frase, a última: Faça o que deve, acont... (187)[1]. Quem se pensa infenso ao final comum, acaba tendo um extraordinário, como Guy de Maupassant, no relato de Alberto Savinio (179): depois de sobreviver a dois tiros de pistola, fere-se na garganta com uma espátula para mostrar sua invulnerabilidade a Tassart, seu mordomo, mas a sorte não lhe acompanha e o sangue jorra aos borbotões. Depois desse mau passo, Maupassant não escreve mais, tornando-se um escritor do Não, um escritor da pulsão negativa, um Bartleby. O outono, como para Rimbaud, vem para todos.

O rastreador da narrativa, anônimo, escondido como Salinger em endereços incógnitos, como B. Traven nos seus múltiplos pseudônimos, é tão desconhecido como o personagem de sua eleição, Bartleby, de quem só sabemos onde trabalhava. Como Bartleby, nosso narrador é também um escrivão, aliás, como também Vila-Matas. Mas enquanto sabemos o nome do patrão do nosso anônimo rastreador-narrador, Bartolí, uma chave para elucidar o verhören inspirador do texto, e nada mais, do patrão de Bartleby, embora não saibamos o nome, por sua descrição do finado John Jacob Astor podemos deduzir quem era. E verdade também que a pretensão do anônimo escrivão, com um único amigo, Juan, a quem pouco vê, e que chegou a ter uma paixão, não correspondida, por María Lima Mendes, é calcada na pretensão do patrão de Bartleby, ainda que às avessas.

Enquanto o corretor de Wall Street renuncia a falar das biografias de outros escrivães para falar apenas de Bartleby, aqui, a resposta típica de Bartleby, quando se lhe pedia para fazer qualquer coisa, “Acho melhor não”, é tomada como modelo e, a contrario do chefe de Bartleby, o narrador irá ocupar-se de todos os escritores que não escrevem. Dos que não escrevem nunca, dos autores de um ou dois livros e nada mais, e também dos que, de repente, depois de muita escrita, alcançam um momento quando já não conseguem escrever, tanto faz se momentaneamente ou para sempre. A preocupação é mesmo com a pulsão negativa.

Menciono a paixão por sua colega Lima Mendes devido, aqui, a uma divergência fundamental entre o autor e o fictivo narrador, geboso sem sorte com as mulheres. Vila-Matas parece ter tido outro destino, e, reconhecido, dedica seu Bartleby à sua mulher, Paula de Parma, a quem conheceu em 1976, na flor de seus vinte e oito anos de idade.

Para dar conta da pulsão negativa, ele se estende por 86 capítulos em 188 páginas.

Chamar capítulos à suas notas, talvez seja uma traição, talvez seja demasiado grandiloqüente para o gosto de nosso autor que parece preferir a discrição. Uma discrição erudita, é verdade, mas discreta - como poderia dizer Luiz Antonio de Assis Brasil. Mesmo quando reúne os duzentos e setenta e três autores – se não mais – e cerca de quarenta e sete personagens, seu relato é simples e discreto. Nem todos os escritores do Não são assim tão conhecidos que baste mencionar-lhes o nome para os leitores, mesmo os muito especializados, saberem imediatamente de quem se trata. A referência a outros tantos escritores ocupados com a negatividade de alguns se faz necessária e ajudam o leitor a ir formando a compacidade do terreno onde pisa. Afinal, como diz o narrador, tomando de empréstimo uma frase de um de seus escritores do Não favoritos, Robert Walser, Pela pradaria já às escuras passeia um solitário caminhante. Robert Walser parece falar de mim enquanto leio - às escuras - o livro de Enrique Vila-Matas! Parece assim. Mas é só aparência. Avançamos um pouco e é como se o narrador fosse um leitor secreto de Omar Kháyyám: Pisa a terra com cautela... talvez o torrão que vais esmagar tenha sido o olho terno de um belo adolescente. Aqui, os torrões são os iridescentes nomes dos diversos autores a iluminar nossa rota. Ao seguirmos suas pegadas, voltamos a ser rastreadores como o foi também Robinson Crusoe, surpreendido com os rastros deixados por Sexta-feira em sua solitária ilha. Queremos saber sua identidade como queremos saber a de Salinger, B. Traven, e mesmo a do Quinta-feira, de Chesterton (186).

Mas comecemos pelo início. A idéia do texto surge de um ato-falho, uma fehlleistungen, como diria Freud, um ato-falho de audição, um verhören: em lugar do nome do chefe, Bartolí, ele escuta Bartleby (146).

Escutar o que não estava, no lugar do que estava, é o que lhe abre a disposição de embrenhar-se pelo labirinto do Não. Não pode haver negação, não pode haver verneinung sem uma primeira bejahung, sem uma afirmação primordial. Nesse lapso consiste, poder-se-ia dizer, o seu reconhecimento do inconsciente.

Quem valsa pela pradaria, cercado de solidão, da mesma solidão da qual falava Vinícius de Morais em carta ao Tom Jobim, desde o porto do Havre (Tonzinho querido, estou aqui em um hotel, que dá para uma praça, que dá pra toda a solidão do mundo... e como sempre acontece nessas horas, escrevo para você cartas que nunca mando...), somos nós. Vinícius, escrevendo cartas que nunca envia, poderia ser arrolado como vítima da pulsão negativa. O pós-escrito de Melville, dizendo que Bartleby, em seu emprego anterior, no serviço postal, trabalhava na seção das Dead Letters, cartas que não chegam ao destino, poderia corroborar essa proposta, mas Vila-Matas não menciona autores brasileiros. Entre os mencionados, alguns Argentinos são os mais próximos de nós.  Borges é um dos que o ajudam a investigar os escritores do Não, e com várias aparições ao longo do livro.

Como Vila-Matas, escrevo ao som de Chet Baker. Encontrei um vídeo de um show apresentado por ele em Tóquio; impressionante! Ele está cantando My Funny Valentine e sente-se aí, com a plasticidade do auditório às escuras, na saudade da amada, toda a solidão do caminhante solitário.

Vila-Matas arma o texto desde o ato-falho, mas também desde um modelo proposto por Bobi Bazlen no seu Notas sem texto. Esse Bazlen, interessante, além de uma porção de outras coisas, foi o introdutor, na Itália, de Robert Musil, Kafka e Freud, o mesmo Freud que quando de sua passagem por Porto Alegre, o Scliar, confesso (apud S.P.Rouanet), perdeu a oportunidade de com ele analisar-se. (!) Mas se o narrador apóia-se amplamente em Musil e Kafka para seus argumentos, de Freud não diz absolutamente nada. A não ser que o reconheçamos na leitura do ato-falho e aí, então, sua presença será subjacente a todo o texto.

O valor do texto não está em procurar no que está o que não está? Pois o que está, são as notas, estas que chamei, ex professo, de capítulos. O que não está, pelo menos de modo visível, é o texto. As notas são comentários a um texto invisível! Tal como a afirmativa primordial, deduzida da negação: um texto invisível. Gabriel García Márquez, abre o seu Viver para contar com a seguinte epígrafe: A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la. Sem as marcas deixadas por Sexta-feira na areia da praia, nem Robinson nem nós nunca saberíamos dele, mas estes significantes - para utilizar a expressão de De Saussure - permitem ir além, assim como Lacan diz dos hieróglifos encontrados no deserto: eles fazem, antes de tudo, supor um sujeito. O autor da Roseta conseguiu o anonimato desejado por muitos, mas sabemos que alguém fez aquilo. Sem o que a gente lembra, não há como saber o que não se lembra. A memória segue sendo a primeira comprovação da vida, mas sabemos tão pouco da memória como da própria vida. Então temos de escrever, quem sabe assim como a vida se escreve (ou inscreve) em nós. De posse das peças, temos de tentar armar este impossível puzzle, a afirmativa primordial, o texto invisível. Porque o visível, como diz Anaxágoras, é só uma parte do invisível.

Acredito seja por isso, depois de situar a importância e a origem de Bartleby, as notas comecem por Robert Walser, um escritor que terminou seus dias nos manicômios de Waldau e Herisau, depois de vinte e oitos anos interno. Roberto Calasso destaca em sua atitude uma tendência à negação do mundo. Está bem, não é o mesmo que negar-se ao mundo, mas é uma suposição presente.

Mas Walser, em todo o caso, escreveu, além de nove romances, mais de mil contos. Um escritor prolífico! Quem escreveu quase nada, dois romances e mais nada, foi Juan Rulfo, este sim um escritor do Não, com todas as letras. E escreveu uma obra tão importante que hoje um dos principais prêmios de literatura do México, senão o principal, leva seu nome.

Juan Rulfo nos ensina uma característica importante dos escritores do Não: a importância diminuta da autoria. Rulfo escrevia como quem copiava. Quem escreve o que lhe ditam as Musas, não passa de copista. Seja a poesia épica ditada por Calíope, a tragédia ditada por Polímnia ou a comédia assoprada por Talia, o escritor é sempre um copista. A musa de Rulfo foi seu tio Celerino, com suas histórias sempre mentirosas. Morto o tio, morta a inspiração.

Por seu valor, tio Celerino passa a ser, para o narrador, um personagem com o qual vai justificando a parada de muitos escritores.

Entre os incluídos como tendo uma justificativa tão forte como a de tio Celerino, está Felipe Alfau que, como Walser, também faleceu em um sanatório. Alfau no de Queens, em New York. Alfau parou de escrever porque aprendeu inglês! Viram só? Goethe dizia que só se conhece a própria língua depois de conhecer outra, e depois de conhecer bem a língua já não se pode escrever qualquer coisa, nem de qualquer jeito. Isso sem denunciar que a língua materna, a qual supomos ser nossa língua, é na verdade - ipsis literis - a língua tomada de empréstimo de nossa mãe.

Nesse propósito, seu amigo Juan, seu duplo, tal qual um boneco de madeira como aqueles que os ventríloquos fazem sentar no colo e dizer montaignes de bobagens, ri a valer enquanto repete a frase: - De modo que o inglês complicou-lhe demais a vida (19). Lembro de um episódio, quando alguns colegas foram, em Buenos Aires, convidar J.L.Borges para falar sobre o espanhol: surpreendido, Borges perguntou - Que es eso, un tipo? Para rir tanto, Juan também tinha de ouvir no “inglês” um duplo sentido; era a língua e também um outro sujeito.

Para Jordi Llovet, por sua vez, o tio Celerino foi sua absoluta falta de imaginação (69).

Kafka, um dos autores a quem o narrador recorre a cada tanto para melhor entender as vítimas da pulsão negativa, também se tornou sua vítima. Para Kafka, seu tio Celerino - pasmem! - foi Goethe: o entusiasmo ininterrupto com que lia Goethe (71). Além disso, Giles Deleuse também identifica um personagem de Kafka, o Solteiro dos Diários, a Bartleby. Não fosse prova suficiente, ainda teríamos o Artista da Fome, que se via forçado a jejuar, o Artista do Trapézio que, por não colocar nunca os pés no chão, ficava sempre no trapézio como Bartleby em seu escritório, outro Odradek cafkiano, embora esse fosse risonho e sem um lugar próprio para morar. E não se pode deixar de mencionar o inseto em que se metamorfoseou Gregor Samsa, morto também por inanição.

- Por que tanta recusa? Pergunta-se o narrador plantado em uma banca de revistas e inquirindo aos passantes: - por que não escrevem? A primeira entrevistada contrapõe-lhe uma lógica arrasadora: - Por que eu deveria escrever?

Mas o narrador não é um tipo obcecado que só vê o que está no primeiro plano de seu escopo. Também percebe a existência do avesso da síndrome de Bartleby. É o caso de Carlo Emilio Gadda: tal qual a pintura de Mondrian, seu texto vai transbordando por todos os lados, em direção ao infinito, ao ponto de obrigar-se a interrompê-los, caindo, a cada vez, em um indesejado silêncio.

Quer dizer, o motivo, a razão mesma pela qual se pára de escrever, embora nem sempre visível, tem também sua importância. Aí está uma sutil alusão às quatro modalidades aristotélicas do contingente, do necessário, do impossível e do possível, respectivamente o que pára de não se escrever, o que não pára de se escrever, o que não pára de não se escrever e o que pára de se escrever, possibilidade a permitir Gadda continuar escrevendo depois de um tempo.

A separação das notas em capítulos numerados tem também essa função de parar e recomeçar. Mas chega a ser surpreendente o modo como ele vai continuando. E então vejo na numeração dos capítulos, além de uma possível alusão à idade de um homem, uma função matemática: o equilíbrio. Tomemos, por exemplo, o capítulo justamente intermediário, o 43. Aí o narrador se apropria das palavras do escritor argentino Fogwill. Rodolfo Enrique Fogwill, nascido em 1942 e dedicado à literatura e à política cultural, autor de Los Pichiciegos, sobre a guerra das Malvinas, aparece apenas neste curto capítulo dizendo: Escrevo para não ser escrito. É o modo como o narrador conta dominar seu destino: escrever para não ser escrito. Não deixemos de notar, contudo, que assim fazendo ele está se identificando ao texto do outro, alçado por sua vez ao lugar do grande Autre - para usar um conceito lacaniano.

Além deste tipo de identificação, constituinte, centrípeta - conforme a classificação de H. Wallon - há também uma outra identificação, centrífuga, da qual se utilizam a grande maioria dos escritores. Seus personagens – as personas gregas – servem para dizerem o que pensam. Assim o Bartleby de Melville, Jakob von Gunten e Simon Tanner de Robert Walser, os Artistas da Fome e do Trapésio, Solteiro, Odradek e Gregor Samsa de Kafka, Pedro Páramo e o tio Celerino de Juan Rulfo, Bouvard e Pécuchet de Flaubert, Shirley Lestes de Felipe Alfau, Lorde Chandos de Hofmannsthal, Törless de Robert Musil, Watt de Samuel Beckett, em quem o narrador se inspira para criar o seu próprio Quase Watt (54, 56, 63, 146, 147), Francesco de Hoffmann, Fanil de Robert Wilcock, Otelo e Imogen de Shakespeare, Enderby de Anthony Burgess, Barão de Teives, Bernardo Soares, Álvaro de Campos e Ricardo Reis de Fernando Pessoa, Monsieur Teste de Paul Valéry, Quinta-feira de Chesterton, Wakefield de Nathaniel Hawthorne, amigo e vizinho de Melville nas redondezas de Pittsfield, na Nova Inglaterra, e também Alonso Quijana, o Quixote de Cervantes, Nagel de Knut Hamsun, Paranóico Pérez de Antonio de la Mota Ruiz, Emilia e Vicente de Virgilio Piñera, Tristram Shandy de Laurence Sterne, sem deixar de mencionar, claro, Maigret, de Georges Simenon. Os personagens são o outro do escritor, através do qual parece mais fácil dizer certas coisas.

Assim, por exemplo, Lorde Chandos possibilita Hofmannsthal prometer não escrever uma única linha nunca mais (23). Só uma única, não! – poderíamos dizer. Como o infinito conjunto cósmico do qual fazemos parte não pode ser descrito por palavras - diz lorde Chandos -, a escrita é um pequeno equívoco sem importância (33). Em carta a Francis Bacon, lorde Chandos esclarece seus motivos para parar de escrever: já que um regador, um rastelo abandonado no campo, um cão ao sol (...), cada um desses objetos, e mil outros semelhantes, sobre os quais o olho normalmente desliza com natural indiferença, pode, de repente, a qualquer momento, adquirir para mim um caráter sublime e comovente que a totalidade do vocabulário me parece pobre demais para expressar (98). A crise de lorde Chandos leva-o, por fim, a perceber as palavras como um mundo em si mesmas e que não expressavam a vida (140). Alternativa que possibilita a identificação de Chandos com Pirandello e Scliar.

Mas a alternativa pirandelliana, “ou se vive, ou se escreve”, insisto, é ilusória! Escrever, assim como ler, também são modos de viver a vida. Esperar que “viver” ou “escrever” dêem conta de tudo, raia a alienação. Escrever é uma atividade simbólica sem a qual não há sequer como perceber a vida, já não digo entendê-la. Sem o simbólico nada podemos dizer nem do real, nem do imaginário.

Além de Bartolí, o chefe do narrador, e de Juan, seu amigo rarefeito, Vila-Matas tem ainda outro personagem, o escritor Robert Derain, autor de Eclipses littéraires, aliás absolutamente desconhecido do narrador, o que não lhes impede a relação epistolar. O narrador é modesto como Juan Rulfo e não quer todas as glórias para si. Então, ventríloquo, faz Derain, colecionador como ele de autores de um único livro, sugerir-lhe nomes para seguir trabalhando.

Entre as sugestões de Derain, estão frases de outro personagem, o Monsieur Teste de Paul Valéry. Monsieur Teste - diz Valéry - não era filósofo, nem nada no estilo. Nem mesmo era literato. E, graças a isso, pensava muito. –  Então conclui: Quanto mais se escreve, menos se pensa (101). Um apotegma bem ao gosto do novo livro de Scliar lido por Rouanet, onde o pensar parece ser mais próprio da vida. Sua paráfrase seria: quanto mais se escreve, menos se vive! Como diz o ditado, quem diz o que pensa, ouve o que não pensa. (Acho que o ditado não era bem assim! Era?) Em todo o caso, esse é o tipo de coisa que costuma nos dar dor de cabeça - o mal de Teste, de Valéry, trocadilhado com o mal di testa dos italianos. Mas não nos preocupemos, ex falso sequitur quod libet, como lembram os escolásti­cos. Aqui, o que importa é a identificação do narrador com Monsieur Teste. Como ele, o narrador não foi feito para romances, pois suas grandes cenas chegam-lhe como míseros estampidos, estados rudimentares em que toda necessidade se desata, nos quais o ser se simplifica até a estupidez. Nosso rastreador, assim como a Judith, de Bartok, é um explorador que avança pelo crepúsculo em direção à noite, em direção ao vazio (158). É sua maneira de explorar o absurdo!

Quando cita Rimbaud, por desistir tão jovem da literatura, poderia ter incluído também Raymond Radiguet que publicou, na Paris de 1923, Le Diable au corps e Le Bal du Comte d’Orgel, morrendo na mesma data, aos 20 anos, célebre e rico, na opinião do nosso José Guilherme Mendes. E assim, tantos outros cuja ausência nos faz pensar nas interrupções de Carlo Emilio Gadda. Em algum momento há que parar.

Preparando-se, por sua vez, para terminar, Vila-Matas lembra ao narrador Simenon, a energia “insensata” (174) de Georges Simenon. Simenon é o anti-bartleby por excelência. Apropriou-se de um método e o foi especializando até chegar, segundo seus dados, a impressionante cifra de 190 romances escritos com diversos pseudônimos, além de 193 em nome próprio, fora os mais de mil contos e artigos diversos, etc., etc. Verdade que boa parte disso corresponde ao gênero policial e este gênero tende a não ser reconhecido pela literatura erudita. Embora lide com crimes, a novela policial não é uma crime story, como  em Sófocles, Eurípides e Shakespeare, para citar apenas os clássicos; a novela policial é antes uma história na qual o herói é sempre o detetive. E esta característica da detective story é que parece colocar o romance policial fora da literatura.

E então lembro de uma outra exclusão para nossa discussão. A de Dashiell Hammett, que depois d’O falcão maltês escreveu mais dois livros e nada mais. Sua importância? Foi o renovador do romance policial. Se os eruditos não consideram o romance policial literatura, por outro lado, eles a adoram! Otto Maria Carpeaux afirma que Bertrand Russell e T.S.Eliot eram apaixonados por essa espécie de leitura e que Brecht, ao morrer, deixou uns 500 volumes do gênero. Josué Montello, ocupante da cadeira 29 da mesma Academia de Rouanet e Scliar, também escreveu romances policiais, e bons como O camarote vazio, de 1990, cujo título, por si só, já o aproxima do narrador de Vila-Matas; minha última notícia literária dele, é um ensaio sobre Memórias póstumas de Machado de Assis, de 1997, de lá para cá faz 10 anos que não publica nada. A A.B.L. promete novas publicações, mas até agora nada. E por quê?

W.(Wystan) H.(Hugh) Auden - de cuja erudição ninguém duvida -, falando sobre o romance policial, propunha considerar os livros de Raymond Chandler, talvez o melhor discípulo de D. Hammett, como obras de arte. Nascido em 1894, Hammett escreveu apenas durante onze anos, renunciando à escrita nos últimos 33 anos de sua vida. Depois d’O Falcão maltês, ainda publicou The Glass key, em 1931, e, depois de casado, The Thin Man, em 34, e nada mais. O tio Celerino de Dashiell Hammett  - se Vila-Matas me empresta o personagem de Rulfo - foi sua mulher, Lillian Hellman, quando ela mesma se tornou escritora. Dois escritores na mesma família era demais, lhe parecia. Mas depois de renunciar, enquanto copidescava os livros da esposa, não podia se conter e acrescentava uma coisinha aqui, outra ali. Algo parecido com a participação de Marianne Jung (180-2) nas poesias de Goethe incluídas no seu Divã. A diferença é que Goethe queria explicitamente assim!

Embora a literatura de Simenon não consistisse apenas nas detective storys, se o narrador tem de lembrar de um anti-bartleby, não recorre a ele, preferindo pensar em Jack London, máscara atrás da qual se esconde John Griffith Chaney, por sua vez um duplo do aventureiro Melville pelos mares da vida.

Mas há que parar. Vila-Matas sabe: escrever é sair de casa, mostrar-se, e em algum momento é preciso recolher-se, como Carlo Emilio Gadda, como B. Traven; é preciso eclipsar-se para retomar a vida, como Perséfone, Joyce, e também como Vico pensou na sua Scienza Nuova. Depois da perilampsis, depois da emanação, a epístrofe, o recolhimento, como diria Plotino. Verdade que a vida se impõe, e por vezes nos interrompe em meio a uma frase, como aconteceu com Tolstoi - com quem comecei -, o que determina dizer esta verdade: vivamos como vivamos, terminemos como terminemos, seremos sempre incompletos.

Pois para concluir, como Vila-Matas abriu com Herman Melville, vou fechar com ele. Será minha maneira de perguntar: - quando termina a vida de um homem?

Melville (nascido a 1º de agosto de 1819), depois de ter sido famoso por volta de seus cinqüenta anos e encontrar hoje uma nova valorização de seus textos e personagens, teve publicado no New York Times, poucos dias depois de sua morte, ocorrida a 28 de setembro de 1891, a seguinte nota: “Numa idade avançada, morreu e foi enterrado nesta cidade, a semana passada, um homem tão pouco conhecido, mesmo de nome, das gerações atuais, que só um jornal publicou a notícia de seu falecimento: e esta não tinha senão três ou quatro linhas”.

 

Luiz-Olyntho Telles da Silva



[1] Os números entre parênteses correspondem ao número da página na edição mencionada. (Faça o que deve, aconteça o que acontecer - Fais ce que dois, advienne que pourra)


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