Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
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Maria Carpi A POESIA ÉPICO-LÍRICA DE MARIA CARPI 2 Luiz-Olyntho Telles da Silva
13 de outubro de 2016.
Senhoras e Senhores
Cumpre-me apresentar Maria Carpi e sua poesia, desde logo uma honra e um
desafio. Pretendia fazê-la brevemente, mas é impossível! Seu currículo não
o permite.
Considerada de difícil leitura por alguns e um doce por outros, não se pode negar a profundidade de sua obra. Hoje, com quinze títulos publicados (e outros tantos na gaveta, porque ela sempre lembra a recomendação de Horácio para aguardar nove anos antes de publicar um livro), e desses quinze, um deles está em segunda edição, dois traduzidos ao francês – La flamme bleue e Le herós malgré lui –, e mais um traduzido ao italiano e publicado na Itália de seus pais como Nel dolore sconfinato. Já foi laureada com três Açorianos e também com o cobiçado Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Além disso, foi incluída em uma antologia organizada por Walmir Ayala, noutra por José Lois Garcia, em mais outra preparada por Vitor Oliveira Mateus e uma quarta estabelecida por Magaly Gonçalves, Zélia de Aquino e Zina Bellodi. Também foi transformada em verbete no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly Novaes Coelho. Na sua biografia, nós a encontramos nascida em Guaporé, no interior do Rio Grande do Sul, mas, a bem da verdade, temos de dizer que ela nasceu no interior do interior. Daí, quem sabe, sua profunda identidade com os interiores. Ao entrar em contato com sua poesia, o leitor logo percebe seu interesse pelos meandros das relações interpessoais e, sentindo-se intimamente tocado, sua alma se regozija. Se em alguns poetas, mesmo dos grandes, como Joaquim Cardoso, por exemplo, notamos nos seus versos, vestígios da formação profissional anterior (no caso dele a de engenheiro), em Maria Carpi, advogada, quase não aparece, a não ser, quem sabe, na preocupação com o outro. Agora, sua religião, melhor, sua religiosidade, essa sim é uma presença marcante em sua obra. Profundamente católica, mas, antes de tudo, cristã, tem na vida de Cristo seu exemplo maior: está sempre pronta a perdoar! E depois quero contar-lhe sua particular interpretação da negação de Pedro ao Cristo. Mas,
antes de entrar nos aspectos particulares, quero chamar a atenção dos senhores
para uma característica essencial de sua obra: ela é temática. Aliás, foi
Nayr Tesser quem primeiro lhe assinalou essa característica. Embora esse
modo do proceder poético não seja o mais comum, ela não está só. Homero,
quase mil anos antes de Cristo, foi temático, como o foram também Virgílio,
nos primeiros dias de nossa era, e Dante no século XIV; Milton marcou o século
XVII com o seu Paraíso Perdido; o nosso Castro Alves, de certo modo,
também foi um poeta temático e eu diria que o seu livro Os escravos
é uma boa marca para o século XIX. No início do século XX, T.S.Eliot, mais
exatamente em 1922, ano do modernismo brasileiro, publica o seu grande poema
Terra desolada e, nos meados do século, em 1953, Cecília Meireles
publicou seu Cancioneiro da inconfidência, tão importante que mais
tarde recebeu ilustrações de Portinari. Temáticos desde o primeiro, o seu
Nos gerais da dor, de 1990, publicado com o importante crédito
do professor e editor Paulo Appel, está composto por noventa e quatro poemas
e quero ler para vocês o de número 12:
Eu amo a tonalidade que desceu Leio
aí que alcançar o status da repartição bem poderia ser um ideal de
todos. É um livro tocante. Na sua orelha, Moacir Scliar diz que, depois
de ter a poeta percorrido o sombrio território da dor, daí retorna trazendo
uma mensagem que é, ao mesmo tempo, enlevo e encantamento. A qualidade de
cada poema, nos quais a opacidade proporcionada pelas emocionantes metáforas
e pela riqueza das alegorias estimula vivamente a imaginação do leitor, levou
Scliar a perceber, já no primeiro volume de sua volumosa obra, não deixemos
de notar, que havia uma mensagem. Nesse propósito, nunca é demais lembrar
que mensagem deriva do latim missus, a mesma raiz de missa. Quando
os padres rezavam a missa em latim, terminavam sempre com a fórmula missa
est, com o sentido de as orações foram enviadas. É essa a esperança dos
grandes autores, que a mensagem enviada chegue aos leitores. Da missa de
Fernando Pessoa poderíamos dizer que canta os valores do desassossego; a
de Camões a importância de aventurar-se por mares nunca antes navegados;
a de Dante a busca do primor da língua. Nesse sentido, a obra de Maria Carpi,
mesmo incompleta, é também uma missa.
Se ela prega um amor à natureza, o que se dá muitas vezes sob a forma de um diálogo prosopopeico, como no poema 7 do primeiro canto de Os cantares da semente, Pondo-me grávida esse
amor que ela prega, embora telúrico, não corresponde a um retorno à natureza,
como em Rousseau, ou em Thoreau. A natureza, para Maria Carpi, antes que
objeto de imitação, é um lugar que se conquista! Sua figura, por excelência,
é a da Árvore. Por certo essa árvore é a do Paraíso, a que, por ser do mal
e do bem, protagonizou a queda de Adão e Eva, mas é também aquela onde Beatriz
espera Dante, às margens do rio Lete. Em Vidência e Acaso, ela – inspirada
em Homero –, diz assim, no poema 74:
Esta árvore que eu escrevo, E no 75 continua: Metade quis ser barca A
natureza, para Maria Carpi, é um lugar para onde se ascende, mas não sem
esforço, não sem luta. Não por nada, em As sombras da vinha, tal
uma bandeira desfraldada, ela anuncia, no poema 19:
Quero ser, da poesia, Essa
luta, contudo, não deixa de ter seu lado erótico, como ela confessa ao Vinhador,
no poema 13 do mesmo texto:
Tu que me tens no dentro, A
Poeta reconhece a importância do outro, mas não como apoio para a alienação,
antes tanto para servir como para ser servida. Para ela, como diz no poema
5 do segundo canto de O herói desvalido:
o disforme Seguindo
a proposta de Cristo – como voltou a fazer o Papa Francisco –, cada um deve aventurar-se mar
adentro, Duc in altum, em busca de águas mais profundas; o homem
deve buscar ser o protagonista de sua própria história. O
fruto está na semente e a semente está no fruto.
Maria Carpi é uma poeta que se constrói a cada poema. Escutem, nesse propósito, um poema inteiro do seu O herói desvalido, um dos tantos, no meu entender, a condensar sua mensagem, uma mensagem, em cadência franciscana, dirigida – conforme à expressão de Lacan –, ao desser: Minha insuficiência ainda Em
sua última publicação, O desvario do pólem, em um poema escrito há
mais de cinquenta anos, Maria Carpi, abre uma fresta para sua infância. No
poema 35, ela nos conta um pouco do que aprendeu com seu pai e sua mãe:
Meu pai tinha pressa; A
pressa do pai é o trabalho interminável do homem e os pães da mãe são seus
poemas, alimento para a alma.
Essa é Maria Carpi. Aguardando o leitor em cada um de seus livros, ela, como Heráclito em sua cozinha, poderia dizer: Entrai, entrai, aqui também há deuses! Temos, então, O cego e a natureza morta, que me compete apresentar, publicado agora pela Ardotempo, com capa de Giberto Perin, ilustrado com desenhos em tinta china de Alfredo Aquino, que também assina as orelhas. É um poema dividido em três partes. A primeira chama-se As brasas da escuridão, e, no prefácio, digo que os poetas nos levam a mundos diferentes do nosso cotidiano. É um grande favor que nos fazem, pois, como diz Eliot, a raça humana não suporta muita realidade. Ao iniciar, com um poema de Hölderlin – O rei Édipo tem talvez um olho a mais –,
Mari Carpi estabelece uma dialética entre o cego, Édipo, e a vidência, sua
filha Antígona. E, no fogo da fermentação universal, uma simples gota, nos
avisa, pode romper o casco. Um relâmpago ilumina as cachoeiras e, aí, no
sacrário, no lugar mais sagrado, no cioso das noites, aí, ela diz:
eu vi que vias. Para
a poeta, noite alta é a cena propícia ao reconhecimento do desejo.
Nasce aqui o anúncio da segunda parte do poema, Noite em claro, que abre assim: Antes da cegueira, estava Escutem
se não é o eco do primeiro terceto de A divina comédia:
E Maria Carpi continua:Nel mezzo del cammin di nostra vita Guiado por Beatriz Repete-se
aqui, com diferença, a epigrafada dialética de Édipo e Antígona: agora trata-se
de Dante e Beatriz que o guia por onde Virgílio já não pode entrar, e antes
de passar seu papel a São Bento. No último verso de Noite em claro,
como em um êxtase, a poeta assim enuncia:
A encarnação do verbo é desfigurar-se. Enquanto
eu lia aí uma lição de escrita, Maria conta-me tê-lo composto inspirada na
negação de Pedro a Jesus. Com uma interpretação absolutamente particular
e distinta dos quatro Evangelhos, que situam a cena momentos antes do julgamento
do Mestre, Maria Carpi acredita que isso aconteceu com Jesus após a palavra
de Pilatos. E, aí, ao negá-lo, mesmo por três vezes, Pedro estava sendo verdadeiro,
disse-me ela: depois de tê-lo visto pleno de luz, aquele Cristo destituído
de sua força pulsante, humilhado e desfigurado, ele não conhecia. E mais
tarde, lendo a história de Pedro, compreendi que ele, mesmo tendo sido perdoado
por Cristo, também três vezes, custou a se dar conta de que mesmo na humilhação
pode haver dignidade. Foi quando, aprisionado e condenado, em Roma, teve
diante de si a possibilidade da fuga que, já a meio do caminho, surgiu-lhe
a luz. E ao dar-se conta dessa verdade, em vez de prosseguir na fuga, entrega-se
e, condenado agora também à cruz, pede que o crucifixem de cabeça para baixo.
– A conquista do paraíso é sempre particular e por méritos próprios.
O terceiro canto foi batizado de Ausência ardente e a fala feminina e não encontrei forma melhor de caracterizá-lo senão como um hino às relações amorosas. Como diz um poeta do gosto de Maria Carpi, Eugênio Montale, o argumento de toda a poesia possível é a condição humana considerada em si mesma; se ela não entra nos detalhes dos acontecimentos históricos, isso não significa alheamento ao que acontece no mundo; significa apenas a consciência e a vontade de não trocar o essencial pelo transitório. Obrigado. |
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