Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
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TRANSITORIEDADE
Luiz-Olyntho Telles da Silva
julho / 2013
Uma das marcas dos anos setenta, para mim, foi o livro de Alvin Toffler: O choque do futuro. O tema me sensibilizara na leitura de um texto de Freud, escrito em 1915. Era o começo da primeira guerra mundial e ele comentava desde a transitoriedade do encanto da natureza, no verão, vencido pelos rigores do inverno, até o destroçamento das realizações da civilização. Freud se assegurava na esperança de que, assim como, vencido um período normal de luto, nossa libido fica livre para um novo investimento, também isso aconteceria em relação às perdas causadas pela guerra: depois, reconstruir-se-ia tudo, em terreno ainda mais firme. Toffler, por sua vez, para dizer da crescente velocidade do futuro caindo sobre nós, depois d’A morte da permanência, abordava A transitoriedade. A partir de uma observação sobre as constantes atualizações da bonequinha Barbie, a mais vendida de todas, em todo o mundo, em todos os tempos, o autor nos alertava: os relacionamentos do homem com as coisas estão se tornando cada vez mais temporários, efêmeros. A boneca de trapo, companheira de sempre de tantas amiguinhas, já não teria mais lugar. A estabilidade aprendida na infância, em casa, desmoronava. As profissões tornavam-se passageiras, umas dando lugar a outras. Os valores mudavam! Talvez Freud estivesse, então, demasiadamente próximo da guerra para avaliar seus efeitos. As palavras de Mao Tsé-Tung, quando lhe perguntaram, duzentos anos depois da revolução francesa, sobre seus efeitos, ainda se fazem ouvir: - É muito cedo para uma avaliação precisa! E recém vamos completar cem anos da primeira grande guerra, sem esquecer que logo depois tivemos uma segunda, ainda mais devastadora. Nascido quase ao final da segunda guerra mundial, aprendi, ainda na escola, o valor da casa alicerçada na rocha, mas vejo proliferarem, agora, as construções na areia. Era preciso estudar muito, até para alcançar uma nota média, e hoje tendem a aprovar os alunos, mesmo sem aprender, gerando uma população de analfabetos funcionais. Isso tudo já me parecia um lugar comum quando, dias atrás, tirando-me da alienação comum, uma exposição de arte levou-me de volta ao tema: Marília Bianchini expunha o seu Elogio da transitoriedade. Representava-o uma bengala alçando voo sustentada por quatro balões, impresso sobre um papel artesanal, feito de fibra de bananeira, arroz e algodão, provisório como as metáforas pintadas. Passageira, a vida do homem tem na bengala, a terceira perna anunciada a Édipo pela enigmática esfinge, uma figura apropriada. Os balões de gás, transitórios como a própria vida e inflados como um ego narcista, podem ser lidos como aquela expressão latina, não raro aparecida em relógios de parede: Tempus fugit. Coloridos, os balões levaram-me ao padre Aderlir Antônio de Carli que, não faz muito, ficou conhecido por sua autodenominação de Padre Voador. Sustentado por mil balões de hélio fez-se aos ares, desde o porto de Paranaguá, contra a opinião de todos os seus paroquianos, contra o tempo encoberto, ventoso e prometendo chuva, e até contra a força do significante. Nada o dissuadiu de seu voo em direção ao interland. Suas últimas palavras, pelo celular de bateria fraca, três minutos e poucos segundos depois de ser levado pelos ares, já perdido entre os úmidos nimbos, foi um pedido de ajuda para operar seu GPS. A tormenta próxima pode tê-lo feito escutar, nos trovões, as notas wagnerianas do Holandês voador, cuja visão é sempre trágica. Dias depois, um pedaço de seu corpo, ainda preso aos cordames de um pára-quedas, foi encontrado no litoral do Rio de Janeiro, possivelmente levado pela mesma corrente fria que não raro arrebata pinguins do polo sul. Vida, projeto e viagem, todos rápidos; um absoluto despreparo. Nós já sabemos, pelo menos desde quatrocentos anos antes de Cristo, por Hipócrates, de um contraponto: se a vida é breve, a arte é longa; mais longa que o sonho de voar. Dédalo - artista mítico de diversas artes -, sabia: para voar é preciso muito cuidado! Ícaro não o ouviu e caiu no mar. Leonardo da Vinci, na Idade Média, gastou muito de seu precioso tempo projetando uma estrutura apropriada para voejar; se não voou, nos legou princípios importantes a serem considerados na sustentação do mais pesado do que o ar. O padre Bartolomeu de Gusmão, o legítimo Padre voador, estudioso da arte do voo, subiu aos ares, no princípio do século XVIII, o primeiro aeróstato, a sua Passarola. Dois séculos depois, Santos Dumont voou. Os balões foram o sonho do padre Carli, desde a juventude. Seu interesse, porém, recaiu sempre no aspecto lúdico. Suas tentativas de voar fracassaram quase todas, com exceção da última, um mês antes da fatídica experiência, quando disse ter superado os 3.900 m. do americano Ken Couch, recorde de altura nessa categoria de voo. Os 5.337 metros, supostamente ascendidos por Carli, não mereceram, contudo, o crédito do Guinness Book. Marcio Lichtnow, instrutor de parapente, o havia expulsado de sua escola, por indisciplina e exibicionismo, classificando-o como um pretensioso que pensava saber tudo, mais parecendo um playboy; desgostava-o, sobremaneira, a teoria, e não aprendeu nada de meteorologia. Incensado por seu movimento em defesa dos moradores de rua, pretendia, com seu voo temerário, angariar dinheiro para prosseguir com seus projetos sociais, mas, como um novo Ícaro, agiu sem ouvir a orientação de seus predecessores. Aderlir de Carli foi uma vítima, pelo menos em parte, desses tempos quando só o dinheiro parece ser o remédio para todos os males. O direito ao consumo é o equivalente, hoje, a um tíquete de ingresso ao paraíso, e quase esquecemos que todo homem é mortal. No lugar do reconhecimento dessa verdade, desconfiamos do homem. Freud nos alertara de que no inconsciente ninguém se acredita mortal. Por isso temos de fazer um constante esforço para valorizar o fugaz instante da vida, dando-lhe uma transcendência. O Vaticano havia tomado para si esse papel, mas desde o abandono da Coroação papal, substituída pela Inauguração do pontificado, após a elevação de Paulo VI, em 1963 - quatro anos antes de Aderlir vir ao mundo -, deixaram de lado também as três paradas rituais, durante a procissão, quando o mestre de cerimônias recitava, com todas as letras, três vezes seguido, enquanto queimava uma mecha de estopa: Sancte Pater, sic transit gloria mundi (Santo Padre, assim passa a glória do mundo). O que parece perfunctório, muitas vezes não o é! Ao alertar o Papa, alertava-nos também. Se a vida e as honras terrenas são transitórias, algumas o são mais que as outras. O gesto de Aderlir de Carli, digno apenas do ominoso prêmio Darwin, está hoje praticamente esquecido, enquanto a dedicação de Bartolomeu de Gusmão, inventor precoce, se não recebeu nenhum prêmio, nunca foi olvidada; seus estudos e invenções prestaram um grande serviço à humanidade. Se tudo é transitório, temos de deduzir da transitoriedade sua permanência. O aforismo de Hipócrates, por exemplo, continua vivo! A arte transcende os tempos. Podemos manter a esperança de ver o sonho freudiano realizado: passados os efeitos devastadores das doloridas perdas da humanidade, cumprido um luto, talvez ainda por duzentos anos, mesmo já não sendo os mesmos, mais maduros, poderemos voltar a uma relação estável com os objetos e, inspirados em Thiago de Mello, conseguiremos confiar no homem, como um menino confia em outro menino. |
Marília Bianchini: Elogio da transitoriedade Fortuna Crítica: - Dulcinea Santos - Sidnei Schneider - Arthur P. De La Mea CRÔNICAS DO AUTOR: 11.03.2013: Amor sem fim @ 05.03.2013: O engano de Calvero @ 06.02.2013: Garrafas ao mar @ 27.11.2012: O belo gesto do maestro @ 03.08.2012: A Messias @ 26.07.2012: Maria e Herodes @ 23.12.2011: Ler é uma grande aventura @ 05.12.2011: Iluminura turca @ 12.08.2011: O rapto de Lucrecia @ 13.06.2011: Shirin Ebadi e o exílio @ 1º.06.2011: Música, Maestro! @ 25.03.2011: Almas à venda @ 31.07.2010: Corra como um coelho @ 28.05.2010: Um tablao flamenco @ 15.03.2010: Os vizinhos @ 15.01.2010: Tsuru @ 31.12.2009: Pombo de papel @ 30.12.2009: A quebra-nozes @ |