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ANUNCIAÇÃO
I
MARIA E HERODES
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Porto
Alegre, 26 de julho de 2012
In mense autem sexto missus est angelus
Gabrihel a Deo in civitatem Galilaeae cui nomen Nazareth, ad virginem desponsatam
viro, cui nomen erat Ioseph, de domo David et nomen virginis Maria. Et ingressus
angelus ad eam dixit: have gratia plena Dominus tecum benedicta tu in mulieribus.
Quae cum vidisset turbata est in sermone eius et cogitabat qualis esset ista
salutatio. Et ait angelus ei: Ne timeas Maria, invenisti enim gratiam apud
Deum ecce concipies in utero et paries filium et vocabis nomen eius Iesum.
(LUCAS, I :26-31.)
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O Papa Gregório
X voltara da nona cruzada a São João de Acre, junto com o rei Eduardo I,
da Inglaterra, de quem era conselheiro, preocupado com a conquista de Jerusalém.
Era difícil e caro, motivo suficiente para convocar um Concílio. Tomadas
as providências, dois anos depois, em 1274, instalava-se em Lyon, na França,
o décimo quarto Concílio da Igreja Católica.
Quem também queria ir
a essa reunião era o Cardeal Bertoldo Stefaneschi. Seria uma bela oportunidade
de encontrar-se com Tomás de Aquino, convidado especial do Concílio e amigo
comum, tanto dele como de Teobaldo Visconte, mesmo antes de ser elevado ao
setial de São Pedro. Mas resolveu não ir. Verdade que Tomás de Aquino, que
não andava bem de saúde, fazia tempo, tendo morrido no caminho, faltou ao
encontro. Assim que a resolução de ficar, no final, pareceu acertada ao
Cardeal. Estava ocupado com a construção da Basílica de Santa Maria, no
além Tibre, e isso lhe dava muito trabalho. Maria, a mãe de Jesus, era um
tema comovente para ele. Sentia-se enternecido com sua história, a qual,
não raro, ocupava suas conversas com o Papa. Certa feita precisou visitá-lo,
no Acre, por assuntos eclesiásticos, e aproveitou uma folga, nas entrevistas
com Sua Santidade, para visitar Nazaré, em busca de algum indício que o ajudasse
a decidir sobre qual dos dois lugares, segundo se apontava, teria ocorrido
a Anunciação. Visitou o Poço de Maria, santuário em homenagem à Virgem, alguns
sítios arqueológicos, mas um dos lugares, aquele no qual os católicos acreditavam
ter havido a Anunciação, já estava ocupado com a Igreja da Anunciação, e
o outro espaço, o que os ortodoxos acreditavam, já estava ocupado, por sua
vez, com a Igreja Grega Ortodoxa da Anunciação. Contudo, mesmo não tendo
encontrado nenhum indício material, não estava frustrado! Ainda que vagamente,
pairava sobre sua cabeça a ideia de que o importante era a Anunciação propriamente
dita. Havia aí algo que parecia ir além do óbvio.
De volta a Roma, ocupado
com os planos de decoração das cúpulas da igreja, deparou-se com antigos
projetos para o campanário, cuja construção fora autorizada ainda pelo Papa
Inocêncio II, há mais de cem anos. E, então, inteira-se de que aquele local fora escolhido
porque, cerca de quarenta anos antes do nascimento de Cristo, aí começara
a brotar um óleo, e esse fenômeno fora interpretado, na época, como um prenúncio
da vinda do Messias. - Da vero, exclamou o Cardeal estupefato! O tema
da Anunciação o perseguia. E as associações que em seguida lhe ocorreram
cada vez mais lhe reforçavam a importância do episódio. Se de um lado havia
descrédito na história da concepção de Maria, sem pecado - singelo eufemismo
para sem coito -, por outro, havia gente que havia lhe dado muito crédito,
talvez até crédito demais! Herodes, o grande, por exemplo.
Se São João de Acre,
quando estivera em Jerusalém, não passava de um porto fortificado, imagine-se
o tamanho da vila de Nazaré mil anos antes! Como num lugar pequeno não há
como guardar segredos, alguém ouviu dizer que por aqueles dias ia nascer
o Rei dos Judeus e foi logo levar a notícia quentinha para o paranoico Rei
de Israel, o odiado idumeu Herodes, o qual, sem muito pensar, mandou matar
todos os primogênitos. Se alguns dizem que foram milhares, enquanto outros
dizem que não passou de poucas dúzias e haja até quem diga que isso não
aconteceu (sempre há destes, não é mesmo?), o que importa é que ele deu
crédito. E que não se diga que esse sujeito, pai do outro tarado que mandou
cortar a cabeça do João Batista, não sabia como se fazia filhos. O que Herodes
percebeu - que burro não era! -, é que alguém, como estava acontecendo com
ele, podia mesmo ser fecundado pelo ouvido.
Tomado pelo valor subversivo
da ideia, Bertoldo chama seu amigo Pietro Cavallini para conversar. Gregório
X por certo havia se dado conta da alegoria e, esperto, fora-se à França:
é pelo ouvido que se pode plantar uma ideia na cabeça de outro; espere-se
um tempo e, se plantada na cabeça certa, ela germinará!
Bertoldo Stefaneschi
não era tão prático. Pensava mais longe. Não tinha deixado de observar que,
na meia cúpula da abside, Maria aparecia, pela primeira vez na arte cristã,
ao lado do Cristo, no trono celestial, usando roupas e uma coroa de rainha.
Tinha sido aí, na sua igreja, que a Virgem se tornara a Rainha do Céu. Devaneava
assim quando recebeu o já renomado Cavallini: que planejasse uma série de
mosaicos para a abside retratando a vida de Maria, começando por seu nascimento
e terminando por sua morte. A Anunciação deveria ser o segundo, posicionado,
com discrição, depois do primeiro, para dizer, sim, mas sem chamar demasiadamente
a atenção. Fecundado pelo ouvido pode-se alcançar o topo do mundo!
De Santa Maria in
Trastevere, cujos mosaicos foram concluídos em 1291, a ideia espalhou-se,
aparecendo logo em Pádua, na Capela Crovegni, o afresco de Giotto; em Florença,
na Basílica da Santa Cruz, a escultura dourada de Donatello, e, na Basílica
de Santa Maria Novella, o afresco de Ghirlandaio. Logo depois, Leonardo Da
Vinci, Boticelli e tantos outros também renderam homenagens ao tema da Anunciação.
Em seu devaneio, o Cardeal
Stefaneschi ainda pensava nos teóricos da Igreja que, para justificar a gravidez
de Maria, haviam recorrido à antiga teoria egípcia de que só havendo abutres
fêmeos, eles eram fecundados pelo ar: - Certamente não tinham entendido
nada!
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