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12 VIII
2011:
O RAPTO DE LUCRECIA
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Lucrecia
tinha trinta e seis anos quando procurou ajuda, e isso só depois de muita
insistência de seu marido. Minha colega a descrevia como uma pessoa desbotada.
Deveria ter tido seus dias, mas agora, tão descuidada, pálida, mais parecia
um fantasma! Três anos atrás fora atacada sexualmente por um primo de
seu marido, um homem que na verdade nunca tinha visto na vida a não ser
em uma fotografia na qual aparecia, junto com seu esposo, em uma caçada
de marrecos. Seu nome costumava vir à tona quando o assunto fosse caça.
E nada mais! Até que um dia, sem ser esperado, justamente quando o marido
estava de viagem, aparece o primo com armas e bagagens; enganara-se em
uma semana da data de uma nova expedição e terminou ficando para passar
a noite. Jantaram, seus dois filhos estavam encantados com as histórias
contadas pelo primo, e depois se recolheram todos.
Enquanto minha colega
começava a contar os detalhes de como o primo se aproveitara do sono da
casa para invadir o quarto de Lucrecia, outras lembranças começaram a invadir
minha mente. Esboçaram-se na forma de uma pintura de Ticiano, representando
Sesto Tarquínio e Lucrecia, no momento em que ele, armado de adaga, a obriga
a entregar-se a ele. Entremearam-se às lembraças as primeiras linhas de um
poema de Shakespeare a ela dedicadas:
From the besieged Ardea all in post,
Borne by the trustless wings of false desire,
Lust-breathed Tarquin leaves the Roman host,
And to Collatium bears the lightless fire
Which, in pale embers hid, lurks to aspire
And girdle with embracing flames the waist
Of Collatine's fair love, Lucrece the chaste.
Era a história de outra
Lucrecia, descrita por Tito Lívio, um poeta romano que viveu nos dias do
nascimento de Cristo. Quando nos relata a história da constituição da república
romana e fala do último rei, Tarquínio, o Soberbo, Tito Lívio conta-nos que
o mesmo tinha um filho absolutamente desagradável, justamente esse Sesto Tarquínio
de Ticiano. O episódio envolvendo Lucrecia deu-se no sexto século a.C., durante
o assédio a cidade de Ardea, um porto fortificado no litoral do Lácio, quando
os filhos do rei, junto com outros nobres, para matar o tempo, divertiam-se
voltando a Roma, às escondidas, para espiar suas próprias mulheres.
Entre os nobres traquinas,
Lucio Tarquínio Collatino – que depois, junto com Bruto foram os
primeiros Cônsules da República –, sabia que nenhuma mulher seria mais
calma, trabalhadora e fiel que a sua Lucrecia. E foi com essa convicção
que levou os amigos, entre eles seu primo Sesto Tarquínio, no meio da noite,
para espiá-la! Como constataram, lá estava Lucrecia pacatamente tecendo
suas lãs, junto de suas criadas, enquanto as noras do rei se divertiam em
um orgíaco banquete.
Mas isso de espiar
as mulheres nunca deu certo! Heródoto já havia nos contado alguns desastres
resultantes do voyeurismo. O jovem Werther não se apaixonou por Lotte ao
vê-la passar manteiga no pão? Pois Sesto Tarquínio, cunhado de Lucrecia, também
ficou fascinado e preso ao desejo de possuí-la. Tanto que poucos dias depois,
escondido do marido, retornou a casa deles, a Vila Collazia, com um só homem
de escolta, e é recebido com grande hospitalidade. Mas depois do jantar,
adormecida a casa - tal como na história que eu agora escutava -, ele se
introduziu nos aposentos de Lucrecia que, acordada de sobressalto, viu-se
agredida por um homem armado de uma grande adaga. Ela ainda tentou rechaçá-lo,
mas Sesto, muito mais forte, a ameaçou: se ela não consentisse em satisfazer
seus desejos, ele a mataria e ao seu lado poria o corpo mutilado de um escravo,
sustentando depois tê-la flagrado em flagrante adultério.
Chegada a este ponto,
antes que deixar enxovalhar eternamente seu nome, Lucrecia foi constrangida
a ceder aos desejos do filho do rei de Roma. Mas assim que Sesto partiu,
ela enviou um mensageiro à Roma, para seu pai, e outro à Ardea, para o marido,
suplicando viessem correndo junto com um amigo de confiança porque uma grande
infelicidade havia acontecido.
Quando chegam os
parentes, suas lágrimas até então contidas explodiram! E quando o marido
lhe pergunta se está tudo bem, Lucrecia lhe responde: - E como poderia
andar tudo bem para uma mulher que perdeu sua honra? Na tua cama, meu amado
Collatino, estão as marcas de outro homem. Mas quero te dizer que só meu
corpo foi violado, o meu coração permanece puro e eu o provarei com minha
morte. Jura-me que o adultero não ficará impune. Foi Sesto Tarquínio! Foi
ele que ontem à noite veio aqui e, retribuindo hostilidade em troca da
hospitalidade, armado com a força, abusou de mim. Se forem homens de verdade,
fazei com que esse relato não seja fatal apenas para mim, mas também para
ele.
Um depois do outro,
todos juraram, procurando consolá-la como este argumento: antes de tudo,
a culpa recai sobre o autor dessa ação abominável e não sobre ela que tinha
sido a vítima, e depois, não é o corpo que peca, mas a mente e, logo, se
falta a intenção, não se pode falar de culpa. E ela replica: - Vocês podem
estabelecer quem a merece. Quanto a mim, mesmo que me absolva da culpa,
não significa que não terei punição. E de hoje em diante, mais nenhuma mulher,
após o exemplo de Lucrecia, viverá na desonra! Depois, agarrada ao punhal
que trazia escondido sob o vestido, plantou-o no coração e, dobrando-se sobre
a ferida, entre os gritos do marido e do pai, tombou exânime por terra, como
corpo morto cai.
Assim que o marido
de Lucrecia soube do episódio – continuava o relato de minha colega –,
processou o primo que foi imediatamente preso e logo solto por falta de
provas, aguardando ainda o julgamento em liberdade.
O marido da outra
Lucrecia, junto com o pai e o amigo Lucio Giunio Bruto expulsaram toda a
família do rei, obrigando-os a refugiarem-se na Etruria, atos que possibilitaram
a criação da República Romana no ano de 509 a.C. Dante, vinte e um séculos
depois, colocou-o no primeiro giro do sétimo círculo do inferno, junto com
Pirro, o filho de Aquiles, e não o rei de Epiro.
E Lucrecia, essa
de hoje, vinte e sete séculos depois, não se suicidou, mas, tão desbotada,
nunca mais foi a mesma!
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Ticiano: Sesto Tarquínio e Lucrecia
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