Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
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Os suspiros do rei de Sião
Luiz-Olyntho Telles da Silva
agosto / 2013 Para Bryan Parsley One authentic sea diver
Falar da paixão, como de qualquer tema complexo, não é assunto fácil. Não esperemos acordo entre os dicionaristas. Houaiss nos dá como primeiro sentido o sofrimento de Cristo na cruz. Aurélio registra, de entrada, um sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão. Rodrigo Fontinha, no Porto, privilegia um sentimento ou afeto violento, como amor, ódio, ira, ciúme, inveja, etc. Os fatores que levam cada autor a começar por uma ou outra ponta são inextrincáveis. Sua etimologia, do latim passĭo, ōnis, em todo o caso, conota, sem dúvida, uma emoção levada a um alto grau de intensidade. São esses sentimentos que não raro marcam nossa vida! Entre os estudiosos do tema, Lacan, ao amor e ódio, acrescentou a ignorância. Verdade que, quando queremos avançar em algum tema, tomar a ignorância como premissa costuma ajudar. E não é raro que nos leve aos lugares mais inusitados. Reconheço no mergulho, desde a juventude, uma de minhas grandes paixões. Como disse Jacques-Yves Cousteau: Depois de lançar seu feitiço, o mar prende a gente em sua rede de maravilhas para sempre. O feiticeiro foi meu padrinho, ao marcar meus doze anos presenteando-me um snorkel e um par de pés-de-pato. Fui um autodidata nos mergulhos de superfície! Para começar a mergulhar mais fundo, com cilindro, frequentei uma dive school, onde começávamos mergulhando em piscinas para depois ir ao mar, e logo obtive meu C-Card. Hoje, depois de ter frequentado a maioria dos cursos oferecidos ao redor do mundo, minha licença internacional (PADI Open Water Diver) alcançou o grau de Instrutor de mergulho noturno. Três horas depois do escurecer os peixes dormem e podemos observá-los mais de perto, com maior detenção, enquanto sonham. Meu outro amor é minha mulher. Conheci-a no início dos mergulhos mais profundos. Estávamos em um barco pequeno a caminho de Molokini, distante quatro quilômetros de Maui, no Havaí; íamos descobrir o braço submerso da cratera, o famoso Reef’s End. A cento e sete metros de profundidade, uma miríade de golfinhos brincalhões e logo um casal de jamantas, cada uma com mais de seis metros de envergadura. Foi na volta, quando ela comentava, ainda no barco, sobre a dança do amor dessas mantas birostris, prévia ao acasalamento, que nossos olhares se cruzaram. Ambos entusiastas, embora de diferentes procedências - ela se dedicava a oceanografia e eu havia me tornado um especialista na construção de diques e quebra-mares -, logo nos enamoramos. Desde então, sempre mergulhamos juntos! Encantamo-nos com o balé de um polvo em Cozumel. Tivemos a sorte de mergulhar ao lado de um tubarão-baleia, em Belize, e ajudamos a desmistificar a ferocidade dos tubarões brancos, estigmatizada no clássico de Spielberg, mergulhando com eles, sem a proteção das gaiolas de ferro, em Gansbaai, na África do Sul. Uma vez, quando estava em Port Said, fazendo um trabalho para a Companhia de Administração do Canal de Suez, uns amigos nos convidaram para repartir o aluguel de uma van e ir mergulhar em Sharm El Sheikh. E lá fomos nós, sacolejando por quinhentos quilômetros em direção ao extremo sul da península do Sinai, para encontrar, no litoral da antiga Ofira, aos pés do monte onde Moisés recebeu as tábuas da lei, os mais lindos corais do mundo e cardumes e cardumes dos mais variados peixes coloridos que se possa imaginar. Na volta, o motorista maluco, como parecem ser todos eles naquela parte do mundo, ainda inventou de nos levar a Petra, na Jordânia, mas isso, como costumava dizer o bartender do memorável Irma, la douce, já será outra história. Agora, uma coisa temos de dizer: de todos os lugares que já estivemos, incluídos as paredes de Fernando de Noronha, os naufrágios em Pirapama, no Recife, e também em New Providence, nas Bahamas, as cavernas de Bonito, o multicolorido fundo de Bonaire, o lago aquário de Bora Bora, o parque marinho Baie Ternay, nas Ilhas Seychelles, com seus exóticos camarões-gafanhotos, peixe palhaço e cavalos marinhos, Santorini, onde ainda se pode caçar um mero, e outros lugares que já não lembro, nada se compara, para nós, ao mergulho na Tailândia. Faz-se aí todo o tipo de imersão, dos mais simples, na protegida ilha de Ko Tao, dentro do golfo, aos mais complexos, como na ilha de Ko Phuket, por exemplo, no Mar de Andaman, por entre uma variadíssima fauna, desde os coloridos corais duros e moles, até, digamos, a cardumes de tubarões-leopardo, que se não são enormes, são lindos, e ainda arraias, tubarões-baleia, os destroços do ferry King Cruise, uma jubarte, com sorte, sem falar nos infindáveis peixinhos multicoloridos. Mas não é só isso! A doçura do povo tailandês é demais. Não é a toa que é conhecido como o país dos sorrisos. Nunca nos sentimos tão bem recebidos como aí! Sua história é também um convite ao mergulho. Quem não se lembra de O rei e eu, de Walter Lang, com Yul Brynner imortalizado no papel do autocrático rei Mongkut? Habitado desde dez mil anos antes da nossa era, é bem provável tenha sido aí, no vale do rio Mekong, que tenha começado a agricultura. Quatro mil anos a.C., já cultivavam arroz; menos de mil anos depois, conheciam a metalurgia do bronze. A pujança desse rio é incrível. Recentemente foi pescada nele uma raja gigante de duzentos quilos, a maior do mundo encontrada em água doce. Na sua foz naufragou Camões junto com os manuscritos de Os Lusíadas. Uma vez fomos assistir no teatro Siam Niramit, em Bangkok, ao balé Nora, típico da zona sul do país. Elegante, gracioso e animado. Seu ritmo alegre levou-nos a esticar a conversa durante o jantar. Era uma noite muito agradável e fomos caminhando ao Khinlom Chom Sa Phan, não muito longe do centro, junto ao rio Chao Phraya. Enquanto nos deliciávamos com caranguejos, depois de uma entrada de vieiras, com aquela pimenta bem deles, impressionados com uma certa pompa, de influência inglesa?, começou clarear para nós a diferença entre o balé que tínhamos acabado de assistir e os bailados do norte. Nora conta uma história de amor. Em um momento são muitos pares, mas depois é só um que importa. Os movimentos, o ritmo, a alegria, uma descrição de seu modo de amar! Era nosso aniversário de casamento e pedimos duas taças de champanhe para brindar. Fomos tomá-la no terraço. Apesar de já ser bem escuro, as luzes de uma ponte high-tech, logo ao lado, permitiam ver o vai e vem dos grandes e lentos barcos. Pareciam as danças do norte. Elas são mais suaves, celebram o trabalho agrícola e os ritos religiosos. Mas não se pode negar que são todas encantadoras. Reencontramos os mesmos movimentos nas esculturas das paredes em estuque dos santuários, e também em bronze. Aliás, havíamos recém comprado uma miniatura em uma loja no interior do teatro, antes do espetáculo, e seu movimento gracioso, sobre a mesa do jantar, inspirava nossa conversa. A influência de Buda vê-se por todas as partes. Em um templo em Borabu, por exemplo, no interior de Khon Kaen, muito parecido com o Wat Chedi Luang, situado no centro histórico de Chiang Mai, embora menos visitado, em algumas noites quentes, os homens honestos podem ver, passeando por seus frisos externos, a deusa Tara, toda nua. A fama do lugar era tanta que muitos vinham na esperança de contemplarem tão bela e fugaz visão. As descrições da deusa superavam-se umas às outras. E os homens, talvez buscando para si essa inencontrável beleza, casavam-se com uma mulher depois da outra, formando infindáveis haréns. O rei atual, Rama IX, há mais de sessenta anos no poder, tem apenas um filho com sua esposa, mas alguns de seus antecessores, quando o país ainda se chamava Sião, como o rei Nagklao, Rama III, teve cinquenta e um filhos com diversas consortes, um costume tanto mais comum quanto mais antigo. Margaret Landon, quando nos conta o sufoco vivido por Anna Leonowens, na corte de Mogkut, em Ana e o rei, dá-nos a entender que o olhar do monarca determinava a cada vez uma nova amante. Ah! Não deveria ser fácil ter que escolher a companheira de cada noite! E naquelas, então, que só queria dormir, como fazer? Por certo haveria de dar longos suspiros. Machado de Assis contou uma vez que as estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vaga-lumes cor de leite, costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião que se divertia com suas trezentas concubinas. Tratava-se por certo do período Ayutthaya, cuja prosperidade ajudou a definir o país de hoje. Uma noite, suspirou tanto o rei Kalaphangko, e foram em tal quantidade os vaga-lumes, que as estrelas, de medrosas, refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço onde se fixaram para sempre com o nome de Via-Láctea. Fascinados, minha mulher e eu, hoje, mergulhamos nas estrelas |
Bryan Parsley: Peixes e corais, Koh Bon, Tailândia - Fev. 2005 CRÔNICAS DO AUTOR: 07.07.2013: Transitoriedade @ 11.03.2013: Amor sem fim @ 05.03.2013: O engano de Calvero @ 06.02.2013: Garrafas ao mar @ 27.11.2012: O belo gesto do maestro @ 03.08.2012: A Messias @ 26.07.2012: Maria e Herodes @ 23.12.2011: Ler é uma grande aventura @ 05.12.2011: Iluminura turca @ 12.08.2011: O rapto de Lucrecia @ 13.06.2011: Shirin Ebadi e o exílio @ 1º.06.2011: Música, Maestro! @ 25.03.2011: Almas à venda @ 31.07.2010: Corra como um coelho @ 28.05.2010: Um tablao flamenco @ 15.03.2010: Os vizinhos @ 15.01.2010: Tsuru @ 31.12.2009: Pombo de papel @ 30.12.2009: A quebra-nozes @ |
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Fortuna crítica:12.08.2013 13.08.2013 |