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MEU NOME É NINGUÉM
LENIR DE MIRANDA
Catálogo de sua exposição no Museu de Artes do Estado do Rio Grande do Sul
Ado Malagolli.
Abas 1 e 2.
Nasce um novo dia anunciado
pelos róseos dedos da aurora. É a força plástica de Homero a iluminar os
percalços do retorno de Ulisses. Para casa? Não! Para uma nova aventura.
A figura de Ulisses é forte.
Ocuparam-se dela poetas como Eurípides, Horácio, Dante, Shakespeare, Pope,
Tennyson, Eliot e Joyce. No nosso continente, lembra o crítico Burucúa, o
mexicano José de Vasconcelos escreveu um Ulisses Criollo e o nosso
Haroldo de Campos criou Finismundo: a ultima viagem. Na pintura, depois
das negras figuras da cerâmica grega, chama-me a atenção, entre outros, o
neoclássico John William Waterhouse com o seu impressionante Ulisses e
as sereias. Em comum entre todas as figuras, seu caráter ilustrativo.
Lenir de Miranda faz aí
um corte epistemológico – usando uma expressão de Bachelard. Sua arte já
não é mais ilustrativa – como as aquarelas de William Blake feitas para ilustrar
a Divina Comédia, numa das quais se pode ver Ulisses, junto com Diomedes,
ambos condenados ao oitavo círculo do Inferno – e sim, recorrendo a uma expressão
da artista, um atordoamento de imagens diversas. Linda expressão!
Pode ser tomada, se não como tradução, todavia como umdichtung, como
transcriação do caráter polítropon, multifacetado, de Ulisses, tal
como aparece no primeiro verso da Odisseia. Lenir de Miranda– surpreendida
pelos róseos dedos da aurora, alongados pelos luminosos e extensos mananciais
pelotenses –, depois de ter reconhecido Ulisses na trama original de seus
recortes, já não pode, como outros, senão retornar ao homérico poema.
A arte escolhe seus autores.
Ulisses escolheu agora Lenir e, conforme ao seu estilo, sedutor, arrasador,
tomou-a por inteiro, eroticamente, sem piedade, fazendo-a produzir à exaustão.
Miguel de Unamuno dizia
que o homem é a sua circunstância. A ideia do conceito de retorno é esta:
voltar às origens com os recursos da sua circunstância, com os recursos contemporâneos.
Assim retornou Ulisses a Ítaca, Sou uma parte de tudo que tenho encontrado,
diz o herói nos versos de Tennyson, cujo poema foi reconhecido como o primeiro
retorno moderno ao tema. Assim retornou também Ariadne, fazendo do fio desenvolvido
a elasticidade de sua memória. Assim retornaram os renascentistas, com os
novos recursos de perspectiva e claro-escuro, ao classicismo Greco-romano
– para alguns, a angústia de Fausto é um renascimento do descontentamento
de Ulisses. Assim retornou Althusser, com os novos estudos sobre a linguagem,
a Marx. Assim retornou Freud aos abandonados mitos e também Lacan – linguística,
estruturalismo e topologia mediante – a Freud. Assim retornaram Bloom e Stephen,
através da música, da literatura, da Irlanda, de Dublin, de Paris, da amizade,
da mulher, da prostituição, da influência da luz-de-gás ou da luz de arco
e de descentes lâmpadas incandescentes sobre o crescimento das árvores heliotrópicas
até o desfalecimento do heliotrôpego Stephen. Diferente de uma regressão
ao status quo ante, o retorno é um reestudo da memória histórica,
com os recursos de hoje.
Lenir de Miranda retorna
ao Ulisses Homérico com sua circunstância: Joyce, Eliot, Gerard de Nerval,
Duchamp, Mallarmé, carbono, restos metálicos do sambaqui quotidiano, e, também,
da singela e organizadora cera de todos os tempos. Sua Ítaca é o mundo interior.
Precisa retornar, com vontade, para, desde aí, ulissíaca, explorar novos
mundos. Em nostos, o retorno grego, Lenir lê nostalgia, nostos
+ algia. É seu modo de nos avisar que nenhum retorno é sem dor.
A angústia do Ulisses em
todos os nós é o nome. Estou tornando-me um nome, diz o personagem
no verso 11 de Tennyson. A conquista é difícil. Mais fácil ser Ninguém! Mais
fácil e mais difícil! Mais fácil pela irresponsabilidade tática frente ao
monstruoso ciclope: - Quem te ataca? /- Ninguém me ataca! /- Então não incomode.
Difícil por denotar uma renúncia à pressuposta grandeza do nome de batismo:
Udi é Ninguém, diferente, mas homófono a Odi, o ódio
anunciado pelo avô Autólico. O poeta Juarroz diz que se deve escrever o nome
com minúsculas. E então a presente série Meu nome é ninguém.
Seus críticos destacam,
no caminho de Lenir até ela, a passagem pelos livros de artista, e,
entre eles, o Passaporte de Ulisses. É verdade! A marca primeira de
uma viagem é um passaporte. Ninguém viaja sem ele. Leia-se a frase em toda
sua polifonia. Em tempo nenhum, ninguém viajou sem ele. Senhas e contrassenhas
sempre foi um requerimento de fronteira, de qualquer fronteira! É necessário
algum índice de reconhecimento para a travessia desta no mans land,
deste nada situado entre um lugar e outro. Observemos, justamente no seu
imenso Meu nome é ninguém, a presença de restos de ferros de construção,
destes que os pedreiros usam para firmar uma forma de concreto; aqui, sem
as formas, pinçam o vazio! Já não há a forma para atravessar de um lado ao
outro. Tal a fotografia requerida pelo Passaporte, é preciso colocar-se
no vazio para criar. Cada um tem de criar suas próprias sinapses.
A arte de Lenir de Miranda
é efervescente, criativa e criadora: atesta-o as Boas vindas de Cézar
Prestes, Diretor do MARGS; confirma-o, entre outras, as críticas de Maria
Amélia Bulhões que, retomando a relação de Lenir com Ulisses, por meio de
Joyce, desde 1977, destaca seu empenho em afirmar a vida contra os terrores
do inconsciente. Icleia Borsa Cattani, desde o Passaporte, diz, com
todas as letras, sermos, cada um, timoneiros de nosso próprio regresso e
que vagamos no exílio dos dias até o retorno a nós mesmos; Walter de Queiroz
Guerreiro valoriza o aspecto heráldico, no qual as cores têm sempre uma outra
conotação; o argentino José Emílio Burucúa, depois de situá-la no concerto
das obras dedicadas a Ulisses, analisa-a quadro a quadro; enquanto para o
francês Jean Lancri, o valor de sobreposição palimpséstica está presente
nas obras: o mar, como no Joyce de Finnegans Wake, é também a mère,
a mãe, esse mar de muitas vozes, como dizia Eliot em The dry salvages.
Para efetuar o nostos, há que cruzar esse mar!
Esse é o Ninguém
de Lenir de Miranda, sempre uma volta para o recomeço, tal como nos últimos
versos de Alfred Tennyson, aliás inscritos em uma cruz, na Antártida, em
homenagem ao seu desbravador Robert Falcon Scott, que aí morreu:
Um igual ao
temperamento dos corações heroicos,
Tornado fraco
pelo tempo e pelo destino, mas forte em decidir
Lutar, buscar, encontrar, e não se
render.
Luiz-Olyntho
Telles da Silva
Porto Alegre, Novembro
de 2009
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Nostos - Lenir de Miranda, 2009.
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