Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A anosa Porta

Dulcinea Santos
                 Recife, 16/01/2016
Enquanto você sonha,
alguém desperta
e mata seus cachorros
e suas rosas

Enquanto você sonha
a porta de seu jardim
se cerra, enterrando
o segredo nunca revelado.*
(Paula Berinson)




   







 
Como todos aqueles contos afiliados às histórias curtas tchekovianas, A Porta revela  extraordinário poder de concisão, com imagens potencializadas numa breve narrativa, revelando grande força expressiva no campo da fantasia, da imaginação. É curioso saber que ainda hoje há quem espere encontrar, na prosa literária, recursos técnicos sofisticados e só por aí dotá-la de literariedade; caso contrário, dirão do escritor que é apenas um bom contador de histórias... Sim, claro, é preciso, inequivocamente, que o seja também! Não, não se trata  apenas de contar uma história, quando se quer fazer literatura, mas de saber contá-la: o modo de contá-la é o que faz a diferença!

Se A Porta é um conto do gênero maravilhoso, vai depender justo do modo como o leitor vai lê-lo: se é um leitor ingênuo, para o qual o mundo se resume naquilo que vemos, aí encontrará uma história sobrenatural; escapar-lhe-á aquela camada invisível, oculta, profunda que constitui a linguagem. Esse é o modo unívoco de ler o texto, que não se abre à riqueza das significações do espaço ficcional. Diferentemente desse tipo de leitor, o leitor crítico atribuirá ao elemento sobrenatural do conto o sentido alegórico.
Após a não muito fácil leitura do livro de Dany-Robert Dufour, Os Mistérios da Trindade, por meio da qual fiz uma longa viagem através de seus relatos, desde Santo Agostinho, passando por Tomás de Aquino, até Hegel e Lacan, entre tantos outros, veio-me à mente esse conto do livro Incidentes em um ano bissexto, de Luiz-Olyntho Telles da Silva - A Porta -, o qual me parece poder estabelecer-se como um bom paradigma de uma das formas do pensamento trinitário. Trata-se de uma alegoria do universo linguageiro, traduzindo a realidade psíquica constitutiva de nossos desejos inconscientes.
Transcrevo-o para efeito de análise:

A Porta

Eu jamais conseguira adentrar aquela porta. Aliás, eu sequer tentara!
Os antepassados dos meus avós já não entravam ali e ninguém ousava se lembrar de seus guardados. Mas naquela tarde ousei! Aproveitando o ruído da rua,  forcei-a. Com muita dificuldade a abri e o silêncio imperou na escuridão. De trás da anosa porta, um orelhudo diabo mignon saltou sobre meu pescoço e, dolorosamente, me sufocou.

                          
É por meio desta cena – a dita cena primitiva, de conteúdo sexual, matriz da angústia da criança, incapaz de compreendê-la -, que o autor, recorrendo a uma entranhada rede de operadores semióticos, apresenta-nos o complexo drama da linguagem constitutiva do sujeito implicado com o saber. Trata-se, pois, de uma tragédia: a tragédia do saber. Quem não se lembra da cena de horror que mostra Édipo cegando os olhos, arrancando-os e jazendo-os ao chão?! Esse desejo indestrutível de saber é o mesmo desejo que move nosso narrador, graças ao qual é (simbolicamente) morto! Numa construção engenhosa, acompanhamos o desenrolar dessa narrativa. Os adjetivos, empregados com precisão, criam a pesada e significativa atmosfera sombria.
Na anosa porta, está assinalada a noite dos tempos, por onde cruzaram os avoengos. Por trás dela, há o narrador - Eu, aqui, agora -, que deseja desvelar o segredo do quarto - , quando é surpreendido pelo orelhudo diabo mignon, que o asfixia. Esta figura é a representação da morte, a metáfora da morte. É o oculto. É esclarecedor este comentário de Lacan no seminário Os não-papalvos erram (Lição 2) sobre os fenômenos ditos ocultos: isso não quer dizer, de modo algum, que estejam ocultos, que estejam escondidos, porque ... o que está escondido é o que está escondido pela forma do próprio discurso. Mas o que não tem nada a ver com a forma do discurso não está escondido, está alhures. Refere assim a estrutura do inconsciente. Porém, há ainda algo de curioso, caracterizando a figura do diabo mignon, para o qual devemos estar atentos: mignon, palavra alienígena, significa bonitinho, o que nos leva a supor que o diabo apresente uma feição pueril; entretanto, o termo orelhudo, que significa de grandes orelhas, leva-nos a imaginar logo a figura do Lobo Mau, de Chapeuzinho Vermelho, com suas enormes orelhas feitas para bem escutar! Sim, a morte espreitava Chapeuzinho Vermelho, que desviara o curso de seu passeio, em direção à casa da vovó...                          
A morte, na aventura da linguagem! Ausência, ausência de relação a dois, para onde o sujeito inevitavelmente se dirige! Isso, pela via da matemática, bem nos explica Dufour: para ser um é necessário ser dois, mas quando se é dois, de imediato se é três: três em um: eu-tu-ele! Tal é o mistério da trindade. Ou seja: o tempo e o lugar em sua evidência se apagam, e o eu torna-se um tu, habitado de um certo saber. É aí que se chega aos limites da interpretação: o sentido sexual. Isso fracassa sempre (Lacan).
Bonito esclarecer com a literatura esse movimento natural que todos nós fazemos quando falamos. Com Riobaldo, narrando sua trajetória pelas veredas do Grande Sertão, lugar onde os ventos fazem seu redemoinho, temos outro belo exemplo dessa forma trinitária da linguagem. Narrando sua errância, ele compreende: O demônio se vertia ali, dentro viajava. Era a briga dos ventos, assim: o quando o um esbarra com outro e se enrolam, o dôido espetáculo!


* Esse poema foi inspirado pela leitura desse conto.




DULCINEA SANTOS é escritora e crítica literária.


   


Comentarios de:
- Maria Carpi



  
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