Luiz-Olyntho Telles da Silva
Psicanalista |
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UMA HISTÓRIA CONTADA POR ŠĀHRĀZĀD
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Apresentação Tudo começou assim: minha filha, que já mora longe, faz tempo, pediu-me para contar-lhe algumas histórias. Acreditava que assim, lendo minhas palavras, ou ouvindo uma gravação de minha voz, iria matando as saudades. Pois ocorreu-me contar-lhe um conto de As mil e uma noites. Como ela vive hoje além mar, e estou sempre sonhando atravessá-lo, lembrei-me da história de Simbad, o marujo. O conjunto dessas histórias foi escrito por vários autores anônimos, cada um deles com mil motivos diferentes para contar e passar adiante essas histórias, e isso por volta do terceiro século de nossa era, na Índia. A leitura delas são todas agradáveis, mas não por descreverem cenas amenas, não! Ao contrário, suas narrativas estão plenas de sofrimentos e mortes. Essas histórias, de fato, são contadas para salvar a vida de mulheres que, sem esses contos, certamente seriam condenadas à morte. Salvando-as, salvamo-nos todos. Tudo começou assim: havia, noutros tempos, dois irmãos, Šāhzmān e Šāhriyār, herdeiros de dois reinos orientais, bem distantes um do outro, um em Samarcanda, ao norte, acima do atual Afeganistão, e outro bem ao sul, na Índia. O primeiro deles flagrou sua esposa dormindo nos braços de um escravo, na sua opinião, um reles ajudante de cozinha e, muito ofendido, matou a ambos e jogou seus corpos para fora dos muros do castelo, como, na época, era costume fazer com o corpo morto das pessoas comuns. Depois, muito deprimido, achando que isso só acontecera com ele, resolveu espairecer viajando para visitar seu irmão. Muito bem recebido, todos ficam muito felizes, mas a depressão de Šāhzmān não passa e, inapetente, começa a definhar. Seu irmão pensa que é por saudades de casa – pois, nessa época, não era costume falar das próprias intimidades, e, a bem dizer, nem hoje –, e promete que na volta de uma caçada organizará seu retorno. Enquanto seu irmão está fora, na caçada, Šāhzmān, que os empregados pensavam estar também na caça, fica só, no palácio de hóspedes, construído ao lado do palácio de seu irmão, o sultão Šāhriyār. Certo dia, então, estando à janela, o olhar perdido no horizonte, vê a cunhada sair do palácio real, por uma porta secreta que dava diretamente no jardim, acompanhada por um séquito de vinte jovens que vinham cantando e dançando pelo vergel, muito alegres, até bem em baixo de sua janela. Aí, com toda a naturalidade do mundo, despiram-se, e ele pode ver que dez delas eram, na verdade, dez escravos núbios que logo começaram a copular com as outras escravas, enquanto a esposa de seu irmão, um pouco separada do grupo, chamava por Mascūd, Mascūd, até um escravo saltar de uma árvore e também copular com ela. Muito surpreso, Šāhzmān percebe não ser o único traído. A traição sofrida por seu irmão era até pior! A partir daí, seu apetite voltou e quando o irmão retornou da caçada encontrou-o alegre, em ótima condição física e quis saber o porquê? Não foi sem muito relutar que o irmão contou a Šāhriyār todo o acontecido. Então, perplexo, e tonto depois de ver, com seus próprios olhos, a cena repetir-se, deprimido e cheio de raiva, mesmo depois de tomar conhecimento que até um diabo, conhecido como Ifrit, também era traído por sua mulher, manda matar sua esposa e todas as escravas, trocando-as por outras. Daí por diante, encarrega seu vizir de trazer-lhe, a cada noite, uma mulher que será morta na manhã seguinte. Isso segue assim até Šāhrāzad, que era a filha mais velha do vizir, condoída com o destino dessas mulheres, oferecer-se para a cama do Sultão e começar a contar as histórias, todas elas em uma linguagem ao mesmo tempo simples e rica, emendando uns episódios nos outros, estendendo-se nas narrativas madrugadas adentro, de tal modo que tinham de ser interrompidas para continuar na noite seguinte. Embora as raízes desses contos estejam distribuídas em dois ramos, um sírio e outro egípcio, do copista que os reuniu na Pérsia, por volta do século VIII, diz-se que os escreveu para um autor que buscasse ser fluente em árabe e que as intitulou Hezar Aesaneh, Os mil contos. Depois alguém achou que os números redondos davam azar e acrescentou o um. Embora as histórias que chegaram até nós, desde esses manuscritos, tenham sido muito deturpadas, com trechos ora suprimidos, ora acrescentados por diferentes copistas e tradutores, sua essência, prenhe de ensinamentos, permaneceu. Um desses tradutores, do oriente para o ocidente, foi Antoine Galland que, por volta de 1709-10 iniciou sua tradução, diretamente do árabe, para o francês. Suas três viagens à Constantinopla haviam-no familiarizado com a cultura e a literatura dessa natureza, plena de metamorfoses, de animais fantásticos, deuses e gênios. Galland organizou as histórias como melhor lhe pareceu e as contou à sua maneira, inclusive a de Simbad o marujo, relatadas ao sultão Šāhriyār, entre as noites sexagésima nona e a nonagésima. Mais recentemente, Mamede Moustafa Jarouche traduziu As mil e uma noites, diretamente do árabe, para o português, enriquecendo seu trabalho com um infindável número de notas que ajudam a melhor compreender o texto, contendo o conto de Simbad entre aqueles do ramo egípcio, entre a centésima nonagésima nona noite e a ducentésima décima, perfazendo apenas onze noites. Essas versões mantêm muitas outras diferenças entre si, mas, quanto a mim, prefiro a versão Galland. Contudo, quando forem ler, se é que ainda não o fizeram, recomendo a leitura de ambas as versões; há detalhes que só aparecem em uma e não em outra, pois as partes que aqui lhes conto são apenas, como se diz hoje em dia, spoilers (que espero não estraguem a história). Mas nada disso importa quando percebemos estar toda a trama dominada por uma imaginação muito fértil e distanciada da realidade. Quem suportaria, v. g., passar mil noites acordado a ouvir histórias e levantar todos os dias para cumprir suas obrigações? Embora o fantástico agora faça parte do terreno restrito da ficção, o que sobrenada nas histórias de As mil e uma noites são os sub-reptícios ensinamentos que desde aí se depreendem. Eles têm encantado gerações e feito refletir sobre os fundamentos da vida... e da morte. Não obstante a ordem das narrativas ser absolutamente aleatória, quando Nicolay Rimsky-Korsakov compôs sua sinfonia, Sheherazade, em 1888, a primeira história musicada, introduzida por um solo de violino, representando as palavras da narradora, é justamente a de Simbad. Seus ensinamentos por certo o cativaram. Os originais persas, por sua vez, abrem a possibilidade dessa interpretação contando, na primeira noite, a história de outro mercador. A diferença entre ele e Simbad é que, enquanto esse outro viaja a cavalo, Simbad viaja em navio. Por isso fez sua fama como marujo. Navegando, fez sua fortuna. Para introduzir a história de Simbad, vou contar antes, então, o comecinho dessa outra, colocado como a primeira história narrada por Šāhrāzad em ambas as versões, e que se chama O Mercador e o Gênio – sobre a qual Rimsky-Korsakow sobrepôs a de Simbad –, pois ela contém uns versos que dizem da estrutura de todos os contos de As mil e uma noites, inclusive a de Simbad. Pois este mercador, muito rico, ao voltar de uma viagem, na qual fora muito bem sucedido, parou em um oásis para descansar e fazer um lanche de bolinhos e tâmaras que costumava trazer em seu alforje. Sentado à sombra de uma nogueira, deliciou-se com as tâmaras, jogando os caroços para a direita e para a esquerda. Depois fez suas abluções em um riacho que por ali passava e rezou. Terminava ele suas últimas preces quando surgiu um gênio enorme, cujos pés estavam na terra enquanto sua cabeça atravessava as nuvens. Vinha com a espada desnuda, pronto para matá-lo. Era sua vingança pela morte de seu filho. O mercador o matara acertando-o com um caroço de tâmara. Que tivesse sido inadvertidamente e sem ver o menininho, não interessava. Foi então que o mercador, invocando o misericordioso, chorou e disse; — Não há poderio nem força senão em Deus Altíssimo e poderoso, e recitou os seguintes versos: O tempo é composto de dois dias, um seguro, outro ameaçador, Essa será a estrutura de base de todos os contos, um dia bom, seguro, inspirador de confiança, e outro inseguro, trazendo à tona a ameaça e o medo. Para não cansar-lhes, antes que comece o dia, farei uma interrupção e, logo a seguir, veremos ainda mais alguns antecedentes da história de Simbad, o marujo... Antecedentes Vamos então à história de Simbad, o marujo. Eu havia mencionado duas versões, a de Gallland, cujos contos disponho em tradução ao português por Alberto Diniz, para a Ediouro, em um volume de oitocentas e vinte e seis páginas, com letrinhas bem pequenas, e a de Mamede Moustafa Jarouche, traduzida para a Ed. Globo, em quatro volumes. Da versão de Antoine Galland, tenho também uma edição, na tradução de Alessandro Zir, para a L&PM Pocket, que lhe dedicou um volume exclusivo, ocupando oitenta e oito páginas. Existe também uma tradução ao inglês, desde os originais, feitas no século XIX, por Sir Richard Francis Burton, em 16 volumes, uma verdadeira enciclopédia, aos quais intitulou simplesmente de Pederasty, mas não conheço nenhuma versão em português. Essa obra, diga-se de passagem, é considerada o primeiro estudo sério sobre a homossexualidade. Note-se, contudo, a data de sua realização, praticamente cem anos após a tradução de Galland. A ordem em que este colocou os contos, parece-me estar apoiada no mesmo direito do copista persa do século VIII. Minha hipótese, a propósito, é a de que um desses copistas, talvez um chamado Almascūdī, valendo-se, em uma das histórias, da menção ao vizir, à sua filha e à sua serva, Šīrazād e Dīnāzād, resolveu aproveitá-la para ser o ponto de convergência de todas os contos à sua disposição; um recurso, aliás, depois utilizado por escritores como Boccaccio e Geoffrey Chaucer, no século XIV. Quanto a mim, escolhi a história de Simbad para lhes contar, praticamente pelo mesmo motivo que Simbad a contou. Se não foi para adiar a morte, foi para justificar a vida. Estes dias de reclusão e isolamento social, provocados por esta nova peste, têm nos mostrado o valor da vida, tão esquecido por um considerável número de políticos, parecendo até, entre outras desatenções, que nos dias de hoje o homem já não tem lugar, como se pagar impostos fosse apenas uma obrigação do cidadão e não um esforço pelo bem social a ser usufruído por todos. Contudo, examinemos ainda mais uma importante afinidade do relato de Simbad com as outras histórias contadas por Šāhrāzad: a definição do leitor, ou melhor, no caso, a eleição de quem vai ouvir a narrativa: o ouvinte. Com Šāhrāzad, é assim: suponho que, em certo momento, ela tenha começado a se angustiar. Tinha uma relação bastante próxima com seu pai e o via, todos os dias, preocupado em encontrar uma mulher para o sultão. Passavam as noites e as mulheres do reino diminuíam. Não seria difícil imaginar que algum dia esse papel lhe coubesse, pois de algum modo parecia identificar-se com essas desventuradas. Foi aí que tomou a iniciativa para cuja realização precisou insistir muito, mas muito mesmo, com seu pai. Era imperioso que ele permitisse sua ida para a cama do sultão. Pois quando seu pai aceitou, não sem antes fazer o que podia para dissuadi-la, inclusive contando uma história em que praticamente a compara com um burro, ela chamou, em particular, sua irmã menor, Dīnārzād, e pediu-lhe para vir dormir embaixo de sua cama. Depois de perceber que o sultão já estivesse satisfeito, Dīnārzād deveria chamá-la, perguntando-lhe se não estava dormindo e se podia contar uma história, como aquelas que costumava narrar, pois assim poderiam se despedir. Não sabiam o que aconteceria no dia seguinte. Então, com autorização do sultão, Dīnārzād vai para debaixo de sua cama, faz tudo como Šāhrāzad lhe pediu, e depois, também com autorização do sultão, Šāhrāzad começou a contar sua história. — Percebem seu estratagema para enganar o sultão? Ela contará as histórias simplesmente para responder à demanda de sua irmã, e ninguém dirá ter sido para convencer o sultão a abandonar a ideia de matar as mulheres. Contudo, não se pode esquecer de um pequeno detalhe: a história precisa fisgar o Sultão! Em Simbad, o marujo, a eleição do ouvinte é um tanto mais sutil. Sabemos que o herói, Simbad, era muito rico e morava em um palácio, em Bagdá. Certa noite, um pobre carregador que por ali passava, inebriou-se com o perfume de rosas exalado de suas janelas, acompanhado por uma música suave, como que de rouxinóis. Himbad, chamava-se esse carregador e, comparando-se a Simbad, cujos nomes diferençavam-se apenas por uma letra (na versão de Jarouche, ambos têm o mesmo nome), exclamou-se perguntando aos céus: — Poderoso criador de todas as coisas, considerai a diferença existente entre Simbad e eu. Sofro todos os dias mil penas e mil perigos, tenho dificuldade para alimentar a mim e a minha família com pão velho de cevada, enquanto que o feliz Simbad desperdiça com profusão imensas riquezas e leva uma vida cheia de delícias. Que fez ele para obter de vós um destino assim tão agradável? Que fiz eu para merecer um tão rigoroso? Pois Simbad, tendo ouvido, de uma das janelas, as queixas de Himbad, mandou chamá-lo e convidou-o a participar da festa, servindo-lhe de todas as comidas e bebidas. A hospitalidade era uma qualidade nesses tempos, e mesmo de outros mais antigos. Quando Homero conta as aventuras de Ulisses, por exemplo, destaca-se a hospitalidade dos reis: primeiro recebem o visitante, com todas as honras, e depois é que perguntam de quem se trata. Simbad também fez assim, e mais, depois de ouvir suas queixas, ele quer que Himbad conheça suas aventuras para saber quanto lhe custou sua fortuna. — Percebem? Com esse pequeno truque o narrador determina as condições do ouvinte: ele precisa estar identificado como aquele que quer saber do caminho percorrido pelo outro. Quem não faz esta identificação, abandona a leitura. Mas quem a faz, ganhará uma fortuna! Outra característica a aproximar este conto aos outros relatados por Šāhrāzad, é ser narrado em diversas noites. Para contar as aventuras de Simbad, teriam sido três semanas para Galland e onze noites para Jarouche. Simbad, em todo o caso, relata as sete viagens em sete noites. Šāhrāzad, a narradora, vai relatando as difíceis situações enfrentadas pelo personagem até criar um momento de suspense, coincidente com o nascer de um novo dia, o que lhe dá pé para interromper a história deixando o ouvinte curioso por sua continuação. E assim, sem que se note, o barco vai andando. Para que tenham uma ideia do humor, do suspense e da persistência de Simbad, contarei agora algumas peripécias de sua primeira viagem. Nosso marujo foi-se ao mar para fazer negócios, mas não sem antes lembrar o aforismo de Salomão: É
menos triste estar no túmulo
Armado desse dístico, seguiu
viagem, desembarcando em diferentes ilhas, sempre em busca de mercados rendosos.
do que na indigência. Depois de terem visitado umas quantas, eis que avistam uma outra, bem pequena, mas com uma relva muito bonita, bem rente ao mar. Movidos mais pela curiosidade do que por outra coisa, muitos mercadores e marinheiros desembarcaram e logo resolveram fazer um fogo para aquecer alimentos. Ora, o relvado não passava do dorso de uma gigantesca baleia adormecida que, sentido o calor em suas costas, deu uma rabanada, sacudindo-os tão longe que muitos deles, tendo o navio saído às pressas, não conseguiram alcançá-lo. Simbad foi um desses e, levado pelas ondas, foi dar em uma ilha na qual as éguas do rei, para sua surpresa, eram emprenhadas por cavalos marinhos. Levado à presença do rei, que era muito poderoso e se chamava Mihrage, esse, depois de ouvir sua história, compadeceu-se de sua tragédia e mandou dar-lhe roupa, casa e comida. Bem recebido pelo rei, todos lhe trataram condignamente e logo travou boas relações. Dias depois, tendo aportado um navio, verificou ser justamente aquele do qual tinha se perdido e conseguiu recuperar todos os seus pertences. Escolheu, então, entre eles, as melhores peças e foi presenteá-las ao rei que, por sua vez, retribuiu-lhe com dádivas ainda mais valiosas. Antes de voltar para casa, de passagem por outra ilha, trocou todos os seus bens por diferentes especiarias as quais lhe renderam cem mil cequins. Quanto valia isso? Bem, façam as contas: os cequins eram moedas de ouro cunhadas na Itália, com aproximadamente dois centímetros de diâmetro e pesando cerca de três gramas e meia. No total, nada menos que trezentas e sessenta quilos de ouro. Uma grande fortuna, em qualquer tempo! No valor de hoje, seriam mais de cem milhões de reais. Vejam agora o interessante final deste capítulo: Simbad, ao terminar o relato de sua história, oferece ao seu visitante, Himbad, um generoso regalo de cem cequins, uma quantia que o pobre carregador por certo levaria muitos anos para ganhar com seu trabalho, isso se ganhasse, e o convida também para comparecer ao jantar do dia seguinte, quando contará sua segunda viagem. Só posso pensar que Simbad queria muito a presença de Himbad, tanto quanto um escritor precisa de um leitor, pois ao final da segunda noite, após o jantar e o relato da segunda viagem, volta a presenteá-lo com outros cem cequins, quantia que repete após cada jantar, durante uma semana inteira. É como se ele quisesse enunciar aquela celebre ária de My fair lady: With a little bit of luck; e parece ser verdade, um bocadinho de sorte pode mudar a vida de uma pessoa. — Uma boa leitura constitui-se em verdadeira fortuna. As aventuras Na noite seguinte, Himbad já chega de banho tomado, com outra cara e outras roupas que, se não eram as mais adequadas, eram pelo menos mais limpas, e também muito curioso para ouvir o relato da viagem seguinte. Terminado o jantar, todos sem nenhuma pressa, servidos como paxás, Simbad iniciou a descrição da segunda viagem dizendo tê-la feito por já não suportar o ócio e conta como escolheu um bom navio, com mercadores honestos e já conhecidos para embarcar junto. Como se vê, o valor dos carteis vem de longe. Ora, nós, leitores ocidentais, temos de pensar que a história estava sendo relatadas para comensais conterrâneos que, por certo, conheciam bem a geografia e os costumes do lugar. Mas nós, aqui, tão distantes daqueles meridianos, nem sempre temos uma noção clara das distâncias envolvidas e nem mesmo dos traçados geográficos que foram sendo mudados ao longo dos séculos. Samarcanda, por exemplo, cuja pronuncia vem da língua sogdiana, com o significado de Cidade de pedra, que na época fazia parte de uma região do antigo Irã, no vale do rio Zarafexã, hoje está situado no Uzbequistão e é uma cidade encantadora, construída em um vale muito fértil. E quando se diz que o reino de Šāhriyār era na Índia, temos de lembrar que isso foi há muitos séculos, quando seu território alcançava até onde hoje está o Paquistão, mas isso séculos antes de os ingleses e norte-americanos interessarem-se pelo petróleo dessa região. Bagdá, onde morou Simbad, hoje está no Iraque e o porto onde ele costumava embarcar, para suas viagens, ficava em Baçorá, distante mais de quinhentos quilômetros de Bagdá. E daí, até alcançar o golfo pérsico, era preciso navegar pelo rio Xatalárabe, por cinquenta e cinco quilômetros, antes de atingi-lo. Era um recurso de defesa militar. O porto de Sevilha, na Espanha, construído aí pelos árabes, pelo mesmo motivo, também está a setenta e cinco quilômetros do Oceano Atlântico, por sobre o rio Guadalquivir. De modo que o trajeto de quinhentos e tantos quilômetros, tanto para ir, quanto para voltar, entre Bagdá e Baçorá, tinha de ser feito a cavalo ou em lombo de camelo, a passo, durante vários dias, com toda a caravana e abrigando-se, à noite, em caravançarás. Observemos que o relato não diz nada sobre o percurso desse trajeto, o qual não havia de ser assim tão fácil. Pois se Simbad nem o menciona, imagine-se o quanto considerou difíceis e exóticos os episódios narrados. Um deles, o primeiro dessa nova série, foi seu encontro com um ovo de roc. Foi assim: tendo seu navio alcançado uma ilha deserta, enquanto os marinheiros desceram para abastecer o barco com água potável e frutas, Simbad aproveitou para espairecer e fazer um lanche nas sombreadas margens de um rio, de onde se avistava uma plácida paisagem. Distraiu-se tanto com o panorama que, ao dar por si, já não havia nem rasto do navio. Havia partido! Foi então que, ao examinar os recursos da ilha, avistou, ao longe, uma grande bola branca e, ao aproximar-se, logo percebeu tratar-se de um ovo de roc. Do modo como ele conta, pareceu-me que esse ovo deveria ter entre quatro e seis metros de altura; era muito grande, imenso. Imagine-se então o tamanho das aves! E se me perguntarem como ele logo adivinhou ser um ovo do pássaro roc, responderei que ele provavelmente já ouvira falar dessa ave mítica. Sua existência não deveria ser nenhum segredo. Marco Polo, que viajou por aqueles lugares, percorrendo a rota da seda muito tempo depois, no séc. XIV, mais precisamente, cuja capital era Samarcanda, ainda ouviu falar dessa ave. Do mesmo modo, o padre jesuíta Martino Martini, que morou na China por muitos anos, no século XVII, também conta dessa ave capaz de carregar, com suas garras, elefantes e rinocerontes. Naqueles tempos, elas não deveriam ser raras, pois o mesmo Simbad, em outra viagem, voltou a encontrar-se com um desses ovos, e esse último já estava começando a descascar. Pois os marinheiros que o acompanhavam terminaram de quebrar a casca a machadadas, mataram, assaram e comeram o filhote. Os pais dessa cria, que voltavam para terminar de chocar o ovo, chocados e enraivecidos com a cena, pegaram enormes rochedos e jogaram no navio, partindo-o ao meio. Mas lá está Simbad, junto ao primeiro ovo, quando vê a mamãe roc aproximando-se para chocar. Esconde-se então bem junto ao ovo e quando a roc se acocora para chocar o ovo, ele se amarra com seu turbante à perna da ave que, ao levantar voo, leva-o junto pelos céus até um vale muito profundo, com paredes tão escarpadas que daí é impossível sair. Parecia que aquela história de o tempo ser composto de dois dias, um seguro, outro ameaçador, não era bem assim, pois acabara de pular da frigideira para cair no fogo. Em todo o caso, explorando o local, como era seu costume, reparou que o chão estava coberto por diamantes, rubis, esmeraldas, topázios e toda sorte de pedras preciosas, mas também viu enormes serpentes, iguais àquela desenhada pelo Pequeno Príncipe, capaz de engolir um elefante. A vantagem é que elas não saíam durante o dia, por medo do roc, e durante a noite ele abrigou-se em uma caverna, cobrindo a entrada com uma pedra para poder descansar. Então, na manhã seguinte, ele vê enormes pedaços de carne crua caírem sobre as pedras preciosas. Eram caçadores que as jogavam do alto das montanhas; as gemas grudavam-se nelas e águias enormes vinham apanhá-los para alimentar seus filhotes. Simbad, como se lembrasse de Louis Pasteur dizendo que a sorte favorece a mente bem preparada, aproveitou a oportunidade, encheu seu alforje com as preciosidades e enrolou-se em um grande naco de carne, sendo logo levado por uma das maiores águias diretamente para os filhotes. Lá nos ninhos, os caçadores espantavam as águias, recolhiam as pedrarias e deixavam a carne para os bichos. Simbad pode assim negociar com o caçador do seu ninho – porque cada caçador tinha o seu –, e ambos ficaram com uma boa fortuna. Na sequência, Simbad tem de enfrentar, como se fora um novo Ulisses, um gigante negro com um só olho no meio da testa e um gosto especial por espetinhos de pessoas gordinhas, do qual se livra do mesmo modo que o herói da Odisseia livrou-se de Polifemo, queimando seu olho com uma vara em brasa. Na fuga, sua improvisada jangada é apedrejada e quebrada pelos outros ciclopes da ilha, ficando ele a deriva no mar, jogado pelas ondas de um lado para o outro até dar em uma ilha, quase morto, em cuja praia deve ter ficado desacordado por um bom tempo. Despertou-o o ruído de uma enorme cobra que trocava sua pele. Anoitecia e, para proteger-se, ele e um camarada de infortúnio buscaram abrigo em uma alta árvore, mas a cobra escalou-a também e comeu seu companheiro. Pela manhã, ainda horrorizado com o acontecido, correu para a praia, pensando em afogar-se; melhor morrer assim do que estraçalhado pela víbora. Uma vez aí, avistou um navio que passava ao largo, fez vários movimentos com seu turbante, foi visto, salvo e a sorte, sorrindo-lhe mais um pouquinho, fez desse navio aquele do qual havia se perdido enquanto olhava a paisagem, possibilitando-lhe recuperar todos os seus bens e voltar para casa ainda mais rico. Em nova viagem, novo naufrágio leva os náufragos, agarrados a uma prancha de madeira, depois de alguns dias no mar, a uma ilha de negros antropófagos. Aí são bem alimentados com o intuito de engordarem e serem comidos. Como Simbad percebe o jogo, come pouco e vai ficando para trás, enquanto os canibais devoram os outros. Isso segue assim até conseguir fugir e ser salvo por uns colhedores de pimenta que o levam para sua ilha e o apresentam ao rei. Acontece de esses ilhéus serem exímios cavaleiros. Contudo, montavam em pelo, sem arreios, por absoluto desconhecimento. Pois Simbad os fabrica, dando desenhos de buçal para os ferreiros, arreios para os serigueiros, enquanto ele mesmo faz selas ajaezadas com folhas de ouro para presentear ao rei, seus ministros e outros membros da corte. Imaginem só! O rei gostou tanto, ficou tão feliz que quis casá-lo com uma de suas mais lindas, inteligentes e ricas súditas; e casou-o. Mas ah! Como diz o ditado, dia de muito, véspera de pouco. Depois de um tempo feliz, a moça adoeceu e morreu. Por um costume intransigível da ilha, o consorte tinha de ser enterrado junto, e lá se foi Simbad, como se fora um pobre Jó muçulmano, direto para o túmulo, um grande buraco ao qual faziam descer o caixão da falecida e depois o dele, acompanhado de um jarro de água e sete pãezinhos. Que fazer? Desconsolado, comeu sua ração com parcimônia, procurando fazê-la durar o quanto dava. Mas eis que, depois de alguns dias, tendo morrido um ilhéu, desceram-no com a esposa ainda viva e Simbad, armado com um grande osso, deu-lhe tal pancada na cabeça deixando-a como morta. Tomou para si a água e os pãezinhos, e assim foi indo, até ouvir um ruído no fundo da caverna, segui-lo e encontrar uma saída para o mar. Levou para esse lugar todas as joias que pode recolher dos defuntos e logo foi salvo por um navio. Na primeira ilha que aportaram, trocou esses bens por chumbo, cana-da-índia e cânfora, aumentando ainda mais sua fortuna. Depois enfrenta ainda o ancião dos mares, afunda na pior de todas as tempestades, perde todos seus companheiros, os quais enterra, um a um e, depois de ter cavado a própria cova, contando que a morte seria certa, decidiu enfrentar um rio que entrava terra adentro, em uma jangada com todos os bens auferidos na última viagem e que também tinham dado naquela praia intransponível. Para sua surpresa, o rio passava por baixo de uma montanha e refluía em uma planície de gente muito simpática que, acreditando ser sua história fantástica, pedem para ele contá-la diretamente ao rei. E aqui quero chamar a atenção para um detalhe da história, pois ele me pareceu similar a um costume que nos acompanhou quase até nossos dias. Esse lugar ao qual chegou chamava-se Serendib. Era o antigo Ceilão, e hoje é a Tailândia. O nome do rei era também Serendib. Pois ele ficou tão encantado com o relato de Simbad que quis saber de onde ele era e, quando quis partir, pediu-lhe para levar um presente para seu califa: muitas joias, aloés, cânfora, uma escrava coberta de pedras preciosas e uma carta que dizia assim: Chegando em casa, a primeira coisa que Simbad faz, é levar a carta, os presentes e a escrava ao Comendador dos Crentes que, muito impressionado, pergunta-lhe se esse rei era mesmo assim tão rico. Simbad confirma, dizendo que ele o é ainda mais, passando a descrever seu séquito quando sai à rua, entre os quais destaca a presença de um oficial, por sobre o mesmo elefante do rei, sentado à sua frente, segurando uma lança de ouro e repetindo, a cada tanto: — Eis o grande monarca, o poderoso e temível sultão da Índia, cujo palácio é coberto por cem mil rubis, e que possui vinte mil coroas de diamantes! Eis o monarca coroado, maior que o grande Salomão e o grande Mihrage. Por trás dele, equilibrando-se em pé, outro oficial, levando uma grande coluna de ouro, encimada por enorme esmeralda, em seguida, grita: — Este monarca tão grande e tão poderoso deve morrer, deve morrer, deve morrer, enquanto o da frente responde: — Louvado seja aquele que vive e nunca morre.Do rei da Índia, diante de quem marcham mil elefantes, que mora num palácio cujo teto brilha com o esplendor de cem mil rubis, que tem em seu tesouro vinte mil coroas cravejadas de diamantes, ao califa O que me chamou a atenção foi o símil com um ritual da igreja católica, praticado na coroação dos papas, até 1963. Acompanhando a procissão, um sacerdote ia recitando, enquanto queimava uma mecha de estopa: Pater sancte, sic transit gloria mundi, Santo padre, assim segue a glória do mundo, e a estopa ia se desfazendo em fumo. Era uma maneira de dizer, como no Eclesiastes, que tudo passa, e ajudava as pessoas a serem mais modestas. A verdade é que o califa ficou tão impressionado e agradecido a ponto de pedir a Simbad para fazer nova viagem para agradecer e retribuir os presentes. Não tendo como não aceitar, volta à Serendib, entrega os presentes, recebe outros e, ao voltar para casa, novo naufrágio do qual se salva, porém, vendido como escravo. Contudo, como não há nada como um dia depois do outro, sua sorte muda, consegue ser liberto, voltando para casa ainda mais rico e, como se viu, cheio de histórias para contar. Tendo ouvido as histórias, Himbad reconheceu que, perto dos sofrimentos de Simbad, os seus eram quase nada. Agora, depois de terem percebido que na vida nada vem fácil, já podem ler a história inteira, em qualquer versão disponível. Bom dia! |
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