Luiz-Olyntho
Telles da Silva Psicanlista |
TRADUÇÕES
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Ricardo Estacolchic
Outubro de 1994 Li, há alguns anos, um interessante
comentário acerca de uma partida de xadrez. A particularidade residia
em que a crônica estava assinada por um dos jogadores, o qual nos comunicava
não tanto os motivos estratégicos ou táticos das jogadas,
senão que preferia atender particularmente às suas reflexões
a respeito do público. Mas eis aqui que nosso jogador nos brinda a crônica do efeito que tais comentários lhe inspiram. Pois bem, ele, de estilo naturalmente agressivo, começa a partida com o sacrifício de dois peões. É uma forma bastante freqüente de começar: o jogador que sacrifica material na abertura, aposta que obterá vantagens de tempo no desenvolvimento das peças maiores. O segundo jogador, se é que aceita o convite, deverá defender-se por um tempo variável até que possa fazer valer a superioridade material. Agora então os comentários. “As pessoas estão muito entusiasmadas com meu insípido gambito”, nos relata o jogador. Com efeito, o público se lambe ante a perspectiva de uma batalha descomunal, mas à medida que a partida se desenvolve, nosso jogador compreende que a defesa vai se saindo muito bem e que quando se dissipe a bruma, o sol sairá a favor do oponente. Este é um modelo de partida bastante habitual. Quando a defesa foi eficiente, impõe-se ao primeiro jogador uma tomada de decisão: ou realiza um novo sacrifício material, a fim de reviver a força do ataque, ou então busca uma posição de resistência para tentar um empate. Há outras perspectivas, mas vou economiza-las; pois ocorre que na sala de jogo se intensifica o murmúrio e agora chega claramente aos ouvidos de nosso jogador que vários assistentes viram que sacrificando uma peça maior agora talvez o ataque possa continuar... outro sacrifício!E o que o jogador responde em voz baixa, me parece que não está mal: “com as peças alheias, todo mundo é generoso”. Temo, porém, que a aparente simplicidade da cena nos faça perder algo saboroso. Voltemos ao momento em que os aficionados “cantam” o sacrifício da peça. O jogador (se nos permitirá chamá-lo o sujeito, entre outras coisas porque o comum em um momento assim é que se encontre angustiado) está obrigado a decidir entre o que ele quer e o que demanda o público (a quem chamarei o Outro, ou melhor, a conivência Outrificada) o qual pede por mais espetáculo, mais emoção, isto é: mais gozo. De modo que nosso sujeito no caso de escolher um movimento que não corresponda à expectativa de gozo da conivência Outrificada arriscará enfrentar as mais diversas invectivas, como ser chato, covarde, etc., etc. Como se vê, estamos em plena vida cotidiana. Com as peças alheias, com o capital
libidinal ou ideativo dos demais, somos todos extraordinariamente dispendiosos,
apoiados, por suposto, nas melhores intenções. Mas eis que o menino tinha apenas os rudimentos do jogo e anotar corretamente lhe exigia muita atenção e tomava muito tempo dedicando-se, assim, a pensar mais na folha de papel que tinha em sua mão direita do que a olhar para o tabuleiro. E assim, perdia sempre. Mas anotava cada uma de suas derrotas com toda a objetividade. De novo temos ao sujeito entre sua jogada e a demanda social. Como sabem, não é raro que uma pessoa nos consulte angustiada porque deve tomar uma decisão que pode ser significativa para seu destino ulterior. Tampouco é raro que tenha consultado antes a uma grande quantidade de profissionais e a todos os seus amigos. Cada um dele indicou-lhe generosamente o que fazer, com esta mistura de temores próprios, anseios inconfessáveis conhecidos e desconhecidos, bobagens pré-digeridas, leituras feitas às pressas e coisas variadas emitidas pelos sábios da televisão, de que se nutrem sempre os conselhos. O consulente, o consulente crônico, me ocorre dizer, de modo a definir certo estereotipo de subjetividade moderna, se encontra frente a esta multidão de conselheiros crônicos, como que rebatendo sem tom nem som e, por suposto, cada vez mais angustiado, girando em falso e em aceleração contínua; nos damos conta porque fala cada vez com maior velocidade e parece que não há modo de conter essa aluvião de bobagens. Não é tão comum,
mas já os vi numa ou noutra ocasião e, na verdade, resulta
totalmente verossímil que, na entrevista seguinte, venha com um destes
aparelhos modernos que se usam um ou vários dias a fim de monitorar
o ritmo cardíaco, tendo ingerido uma pastilha receitada por um médico
e outra pastilha receitada por uma amiga, começando uma terapia floral
e outra homeopática. Entrementes já se entrevistou com dois
ou três psicanalistas mais e também com outros terapeutas de
idéias mais modernas; falou pela centésima vez com os pais
e os irmãos que somaram conselhos com o arrojo que os caracteriza. Espero que o que digo evoque a experiência da cada um. Quando se liga o rádio, não há programa que careça de “especialistas” que nos digam tudo acerca de tudo, eles nos mantém a par dos enormes conhecimentos que existem agora, graças a Deus, de modo que muito cedo nenhum de nós se atreverá a fazer nada, mas absolutamente nada, sem ser previamente assessorado por um ou vários especialistas. E assim andamos. A cabeça em outra cruz.2 O livro “Desde o jardim” mostrou brilhantemente como, provendo-se de quatro ou cinco slogans polissêmicos, e manejando-os com um mínimo de habilidade, é suficiente para triunfar na pantomima atual de palavras vazias. Vejamos agora um outro lado. A cada tanto eu me pergunto por estes psicóticos estabilizados que vemos nas cidades pequenas. Eles se vestem de modo bizarro, certamente; costumam carregar um instrumento musical ou outro artefato qualquer e por vezes se nota rapidamente que gostam de representar algum pai histórico, como por exemplo, Napoleão ou Julio Cezar, com um humor admirável e pouco comum e se pode notar que as grandes medalhas e insígnias que brilham são tampinhas de Coca-Diet. Acredito entender que não devemos exagerar a significação de tais casos isolados, mas não me privarei de dizer que sempre me chamou a atenção sua espontânea estabilização que, até onde averigüei, parecia duradoura. Vale a pena interrogar-se um pouco, porque tal estabilização duradoura e espontânea, com um laço social compatível com não estar encerrado, não tomar medicação alguma nem estar vigiado permanentemente por especialistas, é algo muito melhor que a enorme maioria dos resultados que se obtém nas grandes cidades que contam com o auxílio de toda classe de especialistas e eruditos. Então, o quê? Não
será que aí simplesmente se os aceita como Outros? E o quê é aceitar um sujeito como “Outro”? Diria que é entender que esse sujeito se enfrenta a um Real que não é o nosso. É um modo de dizer que ele vive em seu próprio mundo. Mas se cada um de nós vive em seu próprio mundo (Freud chamava a isso “realidade psíquica”)! Assim podemos dizer, com Safouan, que o que a sociedade reprime não é a sexualidade, senão a verdade. Qual verdade? A de que cada um tem seu próprio Real e a neurose supõe um voto de repúdio sobre este Real não compartilhado. Ainda que certamente se compartilhe a neurose. Explico-me: podemos chamar a esse Real, como se faz hoje em dia em meios lacanianos, “não há relação sexual”, ou mesmo “radicalismo da falta”, etc. O fato é que cada sujeito deve
elaborar artesanalmente, artificialmente, o modo de embarcar nele, nesse
Real, e esse modo vale exatamente para ele e só para ele. Porque é certo que ao movimento depredatório da alteridade que vem da chamada “cultura”, o sujeito contesta usualmente com uma demanda de ser instrumentalizado, objetalizado, enfim, liberado de si mesmo, o que tem levado muitas vezes a exclamar, com razão, que provavelmente não haja ninguém que se alegre de respirar livremente.3 Como entender isto? Recorrerei uma vez mais a exemplos concretos e freqüentes. Sabemos que não é nada
raro que nossos analisantes consultem de vez em quando a um futurólogo,
a um sujeito suposto saber o que virá. Neste contexto, ela traz um sonho: viaja de trem e quando o inspetor lhe solicita seu tíquete, ela responde: “meu bilhete está com outro”. Creio que isto nos esclarece um pouco as coisas. No lugar mesmo do Real, cada um demanda um Outro que tenha seu bilhete, e este bilhete funciona como um véu sobre aquilo que vale como Real para o sujeito. Nesse momento o sujeito pede a gritos um Amo do mal-estar que o narcotize pelo menos um pouco, que o libere do peso da falta. A prática analítica se orienta para o coração do Real. Parece que os gregos consultavam oráculos de vez em quando. Já vimos que o estado atual é de consulta permanente de todos a todos sobre todas as questões. Contudo, creio que a própria proliferação de “especialistas” vai nos dando um índice de que essa solução está começando a mostrar seu inevitável fracasso. Os “livros” que te dizem os procedimentos para eliminar tuas zonas errôneas já são milhares e logo será preciso interrogar-se sobre o quê fazer afim de não morrer aplastado por tanto papel escrito com amor e conselhos úteis. A situação atual me lembra a exclamação de um bom jogador de futebol, faz umas três décadas. Era o momento em que começava o auge dos diretores técnicos, a mecanização do jogo, os quadros-negros, os espiões e tudo isso. Então, o jogador comenta para um grupo de amigos: “esta é a primeira vez em minha vida que tenho a bola nos pés e não sei o que fazer!”. A desdita deste homem estava dada por uma certa defasagem temporal. Hoje em dia há para ele muitos modos de “aumentar sua auto-estima” ou de “gostar de si tal qual se é”, etc. A cultura, hoje, propõe mudar
o mal-estar, transformá-lo em debilidade mental.
Notas:
1. Apresentado no 10º Recorte de Psicanálise. Tradução de Luiz-Olyntho Telles da Silva. 2. Esta frase está inserida à mão no originas à minha disposição. 3. Por exemplo, Jean Paulham, no prólogo a “A história de O”, de P. Reague. |