Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A PSICANÁLISE E A LITERATURA


Luiz-Olyntho Telles da Silva
6 de maio de 2016.


Aquilo, do homem insuspeito
Ou não percebido,
Através do labirinto de seu peito
Vaga na noite.


(JOHANN WOLFGANG VON GOETHE. Na lua.)1








PRÓLOGO

   Hoje, 6 de maio de 2016, memoramos os cento e sessenta anos do nascimento de Freud, no mesmo ano em que se memora os quatrocentos anos de Cervantes e Shakespeare. Neste artigo, minha singela homenagem.

A PSICANÁLISE E A LITERATURA

  Estará correto o título do presente artigo? Não deveria estar na ordem inversa? A Literatura e a Psicanálise? – Preocupados estivéssemos com as origens, possivelmente a segunda versão fosse a mais adequada, mas fiquemos com a primeira, e entenda-se nela o valor dado pela Psicanálise à Literatura.
    Freud. Um artigo dessa natureza precisa começar por esse nome. Pois Sigmund Freud foi um amante da Literatura. Ainda adolescente já era grande admirador de Cervantes, a ponto mesmo de criar, com seu querido amigo, Eduard Silberstein, de sua mesma idade, o que eles chamaram de Sociedade Castelhana. Seu propósito: estudar espanhol, sem a ajuda de gramáticas nem de professores, apenas com os textos literários. Como membros, adotaram para si os nomes de dois personagens retirados de uma das Novelas Exemplares de Cervantes, publicadas em 1613, O colóquio dos Cães: Berganza e Cipião. Eduard era Berganza, um narrador inveterado, e Freud, Cipião, um filósofo cínico e amargo.
    Os dois personagens são cães do Hospital da Ressurreição, em Valladolid. Estão muito surpresos por sua repentina capacidade de falar, e ademais, com discurso. Por isso não querem perder tempo, não sabem quanto tempo durará o feitiço da bruxa Montiela, e tratam de falar de si mesmos. Vejam só como se expressa Cipião:

Berganza amigo: que esta noche me cuentes tu vida y los trances por donde has venido al punto en que ahora te hallas, y si mañana en la noche estuviéremos con habla, yo te contaré la mía; porque mejor será gastar el tiempo en contar las propias que en procurar saber las ajenas vidas.

    A relação da criação da Psicanálise com essa prosopopéia cervantina, lida ainda na sua juventude, não há de parecer uma hipótese despropositada.

    Os dois amigos se correspondem por dez anos, entre 1871 e 1881, dos 15 aos 25 anos, quando Freud se assinava Tu fiel Cipión, perro en el Hospital de Sevilla. Eles revelam aí muito de suas adolescências, inclusive no engano de confundir Sevilla com Valladolid, onde se pode imaginar uma dialética do passado (os episódios relatados se passam em Sevilla) – interpretado desde o presente (em Valladolid) –, com o ideal, por definição, sempre futuro. Mas as cartas mostram também a influência sofrida por Freud da filosofia de Ludwig Feuerbach – aluno de Hegel que exerceu uma grande influência também em Marx: reconhecido por sua teologia humanista, para ele a religião é uma forma de alienação que projeta os conceitos do ideal humano em um ser supremo –, e da psicologia de Johann Friedrich Herbart. Considerado o fundador da Psicologia científica, Herbart valorizava sobremaneira a infância como período formador.
     Mas o próprio Freud, aos seus cinqüenta anos, em 1906 - exatamente há cento e dez anos (neste ano memoramos o centésimo sexagésimo aniversário de seu nascimento, em 1856) -, ainda que de uma forma sintética, dirá desse seu interesse pela literatura ao responder a um questionário de seu editor, Hugo Heller, pedindo-lhe uma relação de dez bons livros.
    Freud esmiúça a questão, perguntando-se o quê quer dizer bons livros? Certamente não serão as maiores obras da literatura mundial, nem os livros mais significativos, e nem mesmo os favoritos, argumenta ele. Bons livros são como bons amigos, e em seguida justifica:

[...] amigos aos quais devemos algo de nosso conhecimento da vida e de nossa concepção do mundo, cujo contato nos proporcionou prazer, e que elogiamos diante de outros, sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia.

    E a seguir ele relaciona os livros que logo lhe vieram à mente – como ele esclarece –, sem muita reflexão:

Multatuli: Cartas e obras / Kipling: O livro dajal / Anatole France: Sobre a pedra branca / Zola: Fecundidade / Merejkovski: Leonardo da Vinci / Gottfried Keller: A gente de Seldwyla / Conrad Ferdinand Meyer: Os últimos dias de Hutten / Macauley: Ensaios / Mark Twain: Esboços.

    Com um pouco mais de reflexão, ele justifica sua hierarquia: Entre as maiores obras da literatura mundial, não poderia deixar de incluir Homero, nem as tragédias de Sófocles, o Fausto de Goethe, nem o Hamlet e o Macbeth, de Shakespeare. Entre os livros mais significativos, teria de incluir os trabalhos científicos de Copérnico, do velho médico Johann Weir, sobre a feitiçaria, de Darwin, sobre a origem do homem, e muitos outros – ele acrescenta. Tivesse que citar seus favoritos, ele não deixaria de mencionar o Paraíso Perdido, de Milton, nem o Lazarus, de Heine.
    Antes de terminar sua carta, Freud alude ainda à importância da relação do autor com sua obra, nem sempre tão óbvia como no caso de Kipling com o Livro da jângal. Mas no caso dos outros autores, ele poderia ter escolhido outras obras, pois como ele nos diz: o mesmo homem que nos presenteou com um bom livro muitas vezes também nos deu de presente vários bons livros. Assim, em Zola, poderia ter escolhido ainda O Doutor Pascal, etc.
    Essa relação de livros certamente há de refletir os valores daquele seu momento de vida, mas sem dúvida mostra seu interesse de sempre na Literatura. Em 1928, quando escreve sobre o parricídio, ele inclui, entre as obras-primas de todos os tempos, junto à Édipo Rei e Hamlet, Os Irmãos Karamazovi, de Dostoievski, por exemplo.
    Quanto a mim, desde cedo fiquei fascinado por esta lista. Conhecê-la certamente me ajudaria a melhor compreender as influências sofridas pelo mestre e cujo resultado foi a criação da Psicanálise.
    Ler O Livro da jângal2  foi fundamental para minha compreensão da importância da lei. Merejkowski mostrou-me Leonardo como um adolescente inquieto a remexer nos palimpsestos da loja de seu tio. Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), revelou-me o valor do Humor. Isso para citar apenas algumas descobertas. Algumas fáceis, pelo menos aparentemente fáceis, como a de Kipling, um escritor notório que ganharia o prêmio Nobel no ano seguinte da citada carta, em 1907; Merejkovski, fora publicado pela Globo, em 1947. Outras, nem tanto. Mark Twain, já não foi tão fácil: Esboços é um título muito amplo e não coincide exatamente com nenhum de seus livros de contos. Mas encontrei, por pura sorte, em um sebo de Montevidéu, um livrinho editado por Tor, de Buenos Aires, em 1942, com o título de Cuentos Humorísticos, o qual havia pertencido a ninguém menos que ao nosso querido Maestro Pablo Komlós, de saudosa lembrança. Possivelmente se trate da mesma coletânea mencionada por Freud, pois aí estão muitas das bem humoradas histórias contadas pelo humorista. Anatole France e Zola sempre se podia ler em francês; difícil, mas não impossível. Mas depois começaram outros muito difíceis, e empaquei em Multatuli. Cheguei a descobrir seu verdadeiro nome: Eduard Douwes Dekker; e também que seu pseudônimo em latim queria dizer sofri muito. Em uma livraria de Amsterdã encontrei um romance seu, em holandês. Mais nada! Das cartas, nem falar. Pedi ajuda a alguns livreiros, mas foi tudo em vão.
    A luz veio, enfim, com a publicação, no final de 2003, de Os dez amigos de Freud, de Sergio Paulo Rouanet, pela Companhia das Letras. Uma edição em dois volumes nos quais ele toma os autores da lista, um a um, examinando-os sob o ângulo da relação vida e obra, da relação com a psicanálise e examinando ainda a obra mencionada, além de outras também relacionadas. Um livro, enfim, que me ajudou a esclarecer muitas dúvidas e que me levou a pensar mesmo em coisas ainda não pensadas. O livro da jângal, v.g., era na verdade o título de dois livros, e a edição da Companhia Nacional não deixara entrever nada disso, embora depois de Rouanet eu tenha passado a ver na mencionada edição a reunião dos dois títulos em um só. Além do mais, Rouanet se mostra aí um profundo conhecedor da obra de Freud. Suas relações são pertinentes e esclarecedoras de vários pontos da obra do mestre. Um livro para se recomendar, sem dúvida.
    Digno de menção, a propósito, foi também a participação desse autor na nossa Feira do Livro, no ano de 2004. Rouanet veio responder a dois convites: uma entrevista sobre esse seu livro e uma sessão de autógrafos. A entrevista, bastante concorrida, me pareceu um sucesso. Conduzida pelo Dr. Moacyr Scliar, ambos Acadêmicos, a entrevista transcorreu com excelente desenvoltura, provocando grande e interessante participação do público. No horário seguinte seria a sessão de autógrafos aos seus Os dez amigos. Como eu estaria ocupado naquele horário, durante o intervalo solicitei-lhe seu autógrafo, o que ele concedeu com carinhoso abraço. No outro dia, para minha surpresa, soube que durante a hora inteira colocada por Rouanet à disposição dos interessados, ninguém lhe procurou para pedir um autógrafo sequer. Mas meu informante certamente deve ter abusado de uma força de expressão. Em visita posterior, soube também, o público se recuperou.

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1.  An den Mond (J.W.Goethe):
Was, von Menschem nicht gewusst
Oder nicht bedacht,
Durch das Labyrinth der Brust
Wandelt in der Nacht
. – Tradução do Autor.
2. O título desse livro aparece sempre – desde a minha conhecida edição da Companhia Editora Nacional, de 1941, na tradução de Monteiro Lobato – grafado como Livro da jângal. Lembremos, contudo, que jângal, palavra de origem hindu, tanto em inglês, como em português, é do gênero masculino.