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Os Suspiros do Rei de Sião
Dulcinea Santos
Ao
concluir a leitura de Iluminura Turca, ocorreu-me pensar, especialmente,
na estrutura narrativa da sua última crônica, cotejando-a e aproximando-a
à estrutura narrativa dos famosos contos árabes de As Mil e Uma Noites.
Ora, Os Suspiros do Rei de Sião são uma crônica-conto e, como tal,
sofre os limites impostos pelo gênero a que pertence. Ela exige de seu cronista
a perícia de um mestre, a fim de manter o equilíbrio entre o lírico e o real,
entre o lírico e o fantástico. Sendo conto, essas histórias árabes têm, ao
contrário, os recursos bastantes para desenvolver a forma da narrativa que
pretendo aproximar a dessa crônica, que é a narrativa de encaixe (embedding).
Nesta, o nome que aparece numa história provoca uma nova história que se encontra,
dessa maneira, potencializada, em graus diversos. No exemplo abaixo, uma
das histórias de As Mil e Uma Noites (Khawaanm, I), citada por
Todorov (As estrutura narrativas), encontra-se a quinta história, em
quinto grau:
Sherazade conta que
Dja'far conta que
o alfaiate conta que
seu irmão conta
que
Outro bom exemplo dessa estrutura temos com a Quadrilha,
de Drummond:
João amava Teresa
que amava Raimundo
que amava Maria
que amava Joaquim
Mas, como nos contos árabes, Os Suspiros do Rei
Sião apresentam essa estrutura narrativa em forma mais sofisticada. Com
extremo poder de concisão, o cronista revela seu gênio: a última história
que conta é retomada em outra narrativa, não mais constituindo a narrativa-encaixante,
assim marcando sua natureza atemporal, conforme veremos.
Essa crônica abre com a palavra paixão, que um dos
lexicógrafos conota, segundo narra o cronista, etimologicamente, como uma
emoção elevada a um alto grau de intensidade... (registremos a alusão
â potência). Paixão significa, pois, um profundo mergulho psíquico!
Daí, seguem as várias histórias, narradas por meio da estrutura formal do
encaixe. Assim ele a conta [os grifos não são dele]:
Reconheço no mergulho, desde a juventude,
uma de minhas grandes paixões.
Fui um autodidata
nas imersões de superfície!
Meu outro amor
é minha mulher. Conheci-a no início dos mergulhos mais profundos.
Mas não é só isso!
A doçura do povo tailandês é demais. (...) Sua história é também um convite
ao mergulho.
São
todas histórias novas que se encaixam uma às outras. Mas a última não tem
a estrutura que se assemelha às da narrativa-encaixante, ela assim é retomada:
entra um novo personagem, pela narrativa do eu lírico da crônica, é Machado
de Assis, que dizia que as estrelas, quando viam subir, através da noite,
muitos vagalumes cor de leite, costumavam dizer que eram os suspiros do rei
de Sião, que se divertia com suas trezentas concubinas. E o cronista aqui
retoma a narrativa:
Uma noite suspirou tanto o rei Kalaphangko,
e foram tal quantidade os vagalumes, que as estrelas, de medrosas, refugiaram-se
nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço onde se fixaram
para sempre com o nome de Via Láctea.
E
conta que:
Fascinados, minha mulher e eu, hoje,
mergulhamos nas estrelas.
Ora,
nitidamente, percebemos o movimento circular dessa narrativa, é simples:
os suspiros do Rei de Sião, metáfora para os vagalumes, por sua vez, metáfora
para gozo do rapport, também, são, por sua vez, a metonímia para as
histórias potencialmente elevadas ao infinito, que faziam o rei de As mil
e Uma Noites e, evidentemente, o de Sião, rodeado de suas concubinas,
tanto suspirar: elas não cessam de se escrever! E a obra não se fecha... Mas,
para obter esse efeito, é necessário esclarecer melhor: o cronista deve apropriar-se
do segredo do Um. Sobre essa questão, esclarece-nos bem Kierkegaard, em O
conceito de angústia: o primeiro é a determinação qualitativa, pois
que da continuidade de uma determinação quantitativa não surge uma nova qualidade,
visto que ou várias vezes querem dizer cada uma por si tanto quanto a primeira,
ou todas reunidas valem até menos. E a ilustra narrando uma história
infantil muito conhecida, em que as crianças se divertem contando assim:
um faz; dois fazem; três fazem... nove fazem; des-fazem!
Ora, poderíamos, à busca de significação, perguntar
o que pretende nos dizer essa narrativa do Rei de Sião. Mas, como nos diria
W. Iser: aqui, a significação tem a estrutura de um evento! Não há significação,
só efeito de sentido! Com o mergulho para o voo absoluto – o salto qualitativo
do enigmático – fascinados, vão os amantes se deslocando em direção aos espaços
siderais, enquanto nós, leitores, ao mesmo tempo, alumbrados, vemo-nos removidos
para esse universo vário, circular, de férteis e indeterminadas perspectivas.
Eis aí um mestre da narrativa.
Concordemos com Todorov, pois, em seus estudos sobre
As estruturas narrativas, fonte desses comentários, quando
discorre assim: o homem é apenas uma narrativa; desde que a narrativa
não seja mais necessária, ele pode morrer. É o narrador que o mata, pois
ele não tem mais função. E nos dá, adiante, o que consideramos um rico
aforismo: Contar é igual a viver.
Recife, 10 de novembro de 2015.
DULCINEA SANTOS é
escritora e crítica literária.
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