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O BURLADOR DE SEVILHA
p/ Manoel Conde
Tradução e
estabelecimento:
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Setembro de 2024.
PREFACIO
A história que lerão
a seguir é insólita e surpreendente. Ela foi relatada por Manuel
Conde, em um encontro, ainda ao final do século passado, em Barcelona,
e surgiu porque estávamos falando justamente do inesperado. Ele é
psicanalista, em Sevilha, aliás o palco de sua narração.
Atentem às suas palavras.
A DESCOBERTA
Sei que não acreditarão
no que me aconteceu durante um de meus plantões no antigo manicômio
de Miraflores. Verdade que as casas de loucos são lugares extraordinários,
mas extraordinário mesmo foi o que encontramos em um antigo pavilhão
do Hospital, fechado ninguém sabe há quantas décadas,
em uma prateleira toda empoeirada. Pois em uma dessas noites, um dos auxiliares
de enfermagem, um rapaz muito curioso que andou por lá, bisbilhotando,
trouxe-me um maço de papéis cuja procedência indicava
a antiga Casa de Loucos e Inocentes de Sevilha, e, ao término
do plantão, ao desempoeirar e desatar aqueles documentos amarelados
pelo tempo, cheio de curiosidade e cada vez mais surpreso, encontrei escrito,
em um envelope colado à sua capa, a seguinte recomendação:
Abrir
somente quando Deus tenha recolhido a alma de Dom Isidoro de Bobadilla, médico
do Real Hospital de são Cosme e São Damião, chamado pelo
vulgo de Os Inocentes, da colação de São Marcos.
Sevilha, no mês
de novembro do ano do Senhor de 1555.
A aparência dos
papéis dava a entender que, até aquele momento, ninguém
havia tocado neles e era indubitável que o Doutor Don Isidoro de Bobadilla
já falecera há mais de quatrocentos anos. Embora cansado de
uma noite em que os internos pareciam mais agitados, abri-o e o li, todo,
de uma só vez. As surpresas não cessaram. E foi isso que me
levou a transcrever o conteúdo que agora publico. Pareceu-me imperativo
dar seu conhecimento aos historiadores, e também aos leitores em geral,
pois são páginas a iluminar a realidade de um personagem literário,
o qual, ao que tudo indica, foi de carne e osso.
AS ANOTAÇÕES
Na caligrafia característica
de nossa profissão, a qual lembra muito os caracteres árabes
(que quando não entendemos chamamos de algaravia), desenhada sobre
um papel sem pautas, como disse antes, bem amarelecido e com alguns pontos
roídos por traças, constava a seguinte declaração:
Eu, Isidoro
de Bobadilla, escrevo rompendo o segredo a que me comprometi. Faço
isso por acreditar que meu dever com a história e com a ciência
me obrigam a deixar assentado, por escrito, os fatos que me aconteceram, faz
agora mais de vinte e cinco anos, e que a autoridade do Rei e da Igreja quiseram
que esquecesse.
Estando já
recolhido em minha casa, pois, naquele dia de outono, já anoitecera,
um secretário do Hospital acudiu com a mensagem de que me apresentasse
rapidamente, uma vez que me chamava o administrador Dom Pedro Contreras com
a recomendação de que não desse conta de minha saída
a ninguém, nem mesmo à minha governanta.
Cheguei tão
rápido quanto pude pois a ocasião era extraordinária.
Em todo o tempo que trabalho nesse Hospital, e isso há mais de trinta
anos, jamais me acontecera algo assim. Ao chegar, Dom Pedro logo me contou,
muito assustado, de uma visita ao Alcázar, onde havia sido levado,
cercado de grande sigilo, e que o Rei estava em Sevilha com a Corte recém
chegada e ainda alvoroçada pelo translado desde Madrid. Por isso ele
acreditava, que com muito cuidado e de modo incógnito lhe fizeram entrar
pela pequena porta, chamada de São Sebastião, a qual dá
para os jardins. Aí, recebeu-o uma alta autoridade que, sem se apresentar,
sem dar seu nome, avisou-lhe que receberia um doente, uma internação
programada pela autoridade real, cabendo-lhe trancá-lo até ser
examinado pelo médico, devendo este avaliar se havia enfermidade ou
se era são, e se houvesse, dizer qual o tipo. A recomendação
frisava que de nenhum modo poderia sair de sua cela nem falar com ninguém,
nem com enfermos, nem com enfermeiros, apenas com o galeno. Dom Pedro, como
administrador, ficaria responsabilizado por tudo, sob pena de morte.
Esperei, pois
não me restava outro remédio, embora confesse que muito assustado.
Contudo, venceram-me a curiosidade e o interesse em conhecer a estranha enfermidade
daquele personagem tão singular de que o Rei e a Corte haviam se ocupado.
Enquanto aguardava, impacientemente, em meus aposentos do Hospital, reli,
do grande Maimônides, o tratado sobre a alma .
Não demorou
muito, ouvi o ruído de uma carruagem e, em seguida, o porteiro abrindo
a porta rápido e prestativo. Depois, sem mais tardança,
tocaram em minha porta e, abrindo-a, entraram um enfermeiro e a Madre Superiora,
ambos inquietos, anunciando-me a chegada daquele enfermo tão especial.
Dom Pedro, que os acompanhava, disse-me da importância das pessoas que
estavam chegando; agora elas haviam se apresentado, mas tudo sob o mais fechado
segredo.
Eram o pai do enfermo,
Don Juan Tenório, o velho, Primeiro Camareiro do Rei; seu tio, Dom
Pedro Tenório, embaixador em Nápoles; o suposto enfermo, Don
Juan Tenório, membro de uma das mais ilustres famílias sevilhanas,
os Tenórios que estiveram presentes quando da conquista da cidade
aos mouros.
Sem nenhuma introdução,
o pai começou a relatar-me o motivo e as circunstâncias de sua
visita:
— Trago-lhe meu filho para ser examinado
por vós para que possais dizer-me qual o tipo de sua enfermidade.
Esta é a única esperança de que possa escapar da morte
a que o Rei lhe condena por seus enganos e más façanhas. Chamam-no
O Burlador de Sevilha!
Eu já tinha
notícias desse personagem, mas ele me confessou que, como pai, preferia
pensar que era loucura e não gosto pela burla o mal de seu filho, e
caso assim fosse, seria a salvação de ambos. E então,
dirigindo-se ao filho, surgiu o seguinte diálogo:
Tenório, o
pai:
Ver-te mais cordato
queria,
que fosses bom, e
com melhor fama.
Será possível
que procures
Aa toda hora a minha
morte?
Don Juan:
Por que me vens com
essas palavras?
Tenório,
o pai:
Por teus modos e
tuas loucuras.
Pois não te
venço e castigo
com tudo o que faço
e quanto digo.
A Deus teu castigo
deixo.
Ai, filho, que mal
me pagas o amor
que por ti tenho
tido.
Em seguida se
foi, deixando-me a sós com Don Juan. Pois não perdi tempo e,
conforme a indicação de minha arte médica, prossegui
com o interrogatório. Perguntei-lhe por seu nome que até aquele
momento não havia sido mencionado por ele.
Don Juan:
Quem sou? Um homem
sem nome.
Evitei ser conhecido.
Mas já me
tens diante de ti,
diz logo o que queres
de mim.
Perguntei-lhe
por que o trouxeram ao Hospital.
Don Juan:
O que se há
de ser?
Um homem e uma mulher.
Sevilha às
vezes me chama
o Burlador, e o maior
gosto que em mim
pode haver
é burlar uma
mulher
e sua reputação
vencer.
O motivo era bem
claro: tratava-se das mulheres burladas, e algumas eram figuras importantes
da Corte. Interessei-me em saber como repetia tantas vezes tão má
ação e com tantas classes diferentes de mulheres, nobres, plebeias,
e como havia conquistado tão má fama.
Don Juan:
Se burlar
é um hábito
antigo meu,
que me perguntas,
sabendo
minha condição?
O amor é rei
que iguala com a mesma lei
a seda e o burel.
Perguntei-lhe
se não tinha medo quando enganava as mulheres, ou quando tinha que
salvar-se pela espada, ou agora que se encontrava preso.
Don Juan:
Isso dizes? Eu, temor?
Se fosses o próprio
inferno
a mão te iria
oferecer.
Para que se admire
e espante
Sevilha de meu valor
e ao covarde faça
tremer,
e tudo há
de ser fazer,
e tudo há
de ser dizer.
Servindo, julgando
estás,
e se queres ganhar
logo,
faz sempre, porque
no jogo
quem mais faz, mais
ganha.
Perguntei-lhe
como não o haviam levado preso antes.
Don Juan:
Se é meu pai
O dono da justiça
E da confiança
do Rei,
Que temer?
Perguntei-lhe
se não temia a morte e o castigo de Deus.
Don Juan:
Se confias em mim
por tanto tempo
Que venham os enganos.
Terminada a conversação,
enviei-o à cela do andar de cima, cumprindo assim com a recomendação
do administrador embora estivesse certo de não entender sua detenção
por loucura tratando-se de um cavalheiro tão correto em seu trato,
tão galhardo e oportuno.
Não via nele
nem desatinos, nem delírio, com ou sem febre, nem demência; não
há melancolia, nem periódica nem pontual, nem ímpetos
furiosos, ainda que, sim, despropósitos e caráter incorrigível.
O seu, parecia um mal natural, um mal da honra masculina: — que se há
de ser? Um homem e uma mulher, ele me dissera. Ainda que eu nunca tenha lido
em nenhum tratado, poderia ser um furor pênis, por comparação
ao furor uterus que tão escandaloso resultava, mas que era tão
bem admitido. E, pelo que se sabia, nunca forçou nenhuma com violência,
foi sempre por enganos e elas consentiam com isso.
E lá estava
eu, tomando minhas notas nesta agitada noite, quando, novamente, escutei uma
carruagem e logo uns passos rápidos em direção ao meu
aposento, e bateram na porta. Um oficial entregou-me um sobrescrito com o
selo real no qual dizia para ser entregue, no mesmo instante, ao suposto enfermo
e que se esquecesse tudo o que havia acontecido; que ficasse tudo em segredo
sob pena de morte. Cumpri com isso até hoje, dia em que, vinte e cinco
anos depois, voltei a reler minhas notas que havia mantido escondidas. Até
agora, quando uma hidropisia me faz pensar no que, naquela noite, me disse
o senhor Padre, pároco de São Marcos, Dom Carlos Retina, encarregado
do auxílio religioso do Hospital ao participar-lhe a história
dessa noite:
Advertiram os que
de Deus
julgam os castigos
tarde,
Que não há
prazo que não chegue
nem dívida
que não se pague.
Ainda que sua
enfermidade não fosse loucura, alguma havia enquanto prejuízos
feitos aos outros e a si com suas ações, tanto que estava preso
por essas ações que o prenderam.
Pouco tempo depois
daquela entrevista ouvi que o Burlador havia sido morto pelas mãos
de um defunto burlado, de um comendador que ele matou e que, dizem, vingou-se
desde a outra vida. Quanto a mim, com o que vi e ouvi, penso se não
terá sido a justiça do Rei a que acabou com sua vida e a enviou
a outra, e depois, um artista desses, tão fantasiosos – creio que
se chama Claramonte –, trouxe-o a esta outra vida literária e conta
o final da história culpando os mistérios do além, ao
convidado de pedra, mais ao gosto do público do que as verdades deste
mundo.
CODA
É com essas palavras
que termina o artigo publicado no Boletim nº 31-32, de julho/dezembro
de 1998, de Jornada Freudiana – Asociación Psicoanalítica de
Madrid e que naquele encontro Manuel Conde leu para nós. Como podem
ver, trata-se, nada mais, nada menos, que do nascimento da história
de Don Juan. Eu sabia tratar-se de uma dessas histórias recolhidas
do repertório popular, como também é o caso do Fausto,
de Goethe. Sua origem, eu a atribuía, até então – por
confiar em Pedro Henriquez Ureña –, a Fray Gabriel Tellez, nascido
uns poucos anos depois do episódio acima relatado, em Madrid (talvez
em um ramo distante de minha própria família), porque foi ele
quem, com o pseudônimo de Tirso de Molina, nos brindou com as aventuras
de O Burlador de Sevilha. Pois agora temos outro autor do mesmo título
a pesquisar: Adrés de Claramonte.
Obrigado.
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DConheça a
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Fortuna Crítica:
É um texto épico, moderno,
curioso e importante, implicando a questão da criação
artística, ou, como dito no agudo foco da coda: como podem ver,
trata-se, nada nenos, que do nascimento da história de Don Juan.
Essa fábula leva-me a evocar o prefácio de Pirandello
ao seu drama Seis personagens a procura de um autor. Pirandello confessa
aí que há muito tempo dispõe de uma empregadinha
muio ágil e conhecedora de seu trabalho, que se põe a seu
serviço, e que se chama Fantasia. Seu divertimento preferido,
diz, é trazer para dentro de sua casa as pessoas mais infelizes do
mundo, e todas envolvidas nos casos mais estranhos. E assim argumenta: é
ela, essa empregadinha, quem lhe alimenta, não o prazer de
representá-los historicamente, mas o que decorre de uma necessidade
mais profunda, de natureza mais propriamente filosófica. É
graças a ela, pois, que ele recusa ser o autor dos dramas que essas
pessoas desejam que ele represente, pois esses dramas, como diz, não
lhe interessam. Essa necessidade, esclarece, não se origina de um
conceito, mas sim de uma imagem que deve permanecer
totalmenta viva e livre em sua expressão, buscando por um sentido
que lhe confira valor.
Eis aí um fundamento para o drama de Don Juan por Andrés
de Claramonte, que, conforne a penetrante conclusão, o trouxe a
esta outra vida literária e conta o final da história
culpando os mistérios do além, ao convidado de pedra, mais
ao gosto do público do que as verdades deste mundo. Ou seja: o
que vale é a ficção, com sua estrutura de verdade (Jeremy
Bebthan).
Aí jaz o mistério da criação artística,
DULCINEA SANTOS
Crítica Literária,
Recife, 14 de setembro de 2024.
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