Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A CRIAÇÃO LITERÁRIA

mesa redonda
realizada em Recife, no dia 16 de de junho de 2009,
no auditório da Livraria Cultura
em homenagem a

INCIDENTES
EM UM ANO BISSEXTO
de Luiz-Olyntho Telles da Silva

com a participação de

CARLOS EDUARDO CARVALHEIRA
DULCINEA SANTOS
FÁTIMA QUINTAS
LOURDES RODRIGUES
RAIMUNDO CARRERO


Eros, o logos das grandes e belas Obras 

Dulcinea Santos

Queridos colegas e amigos, amigos da Psicanálise, amigos da Literatura, amigos da arte de viver a vida na fruição do belo:

É com grande satisfação, e sentindo-nos honrados, que estamos reunidos, aqui, hoje, apresentando o livro do escritor gaúcho, Luiz-Olyntho Telles da Silva, que estreia na ficção literária. Ele se encontra aí sentado, junto a vocês, ouvindo-nos, comemorando este momento especial para todos nós, colegas, amigos e cativos leitores.  
  
Luiz-Olyntho Telles da Silva é psicanalista. Desenvolve seu trabalho institucional junto à Biblioteca Sigmund Freud. É autor de diversos livros nessa área, com publicações na América e na Europa. Incidentes em um ano bissexto é seu livro que nos reúne em torno do tema a criação literária. E aqui poderão nos perguntar: - Mas por que essa escolha?  Por que Luiz-Olyntho? Por que o livro Incidentes em um ano bissexto?

Bem, ao convidá-los, dissemos ser Luiz-Olyntho um amigo. Mas podemos perguntar: -a amizade fundamentaria por si só nosso encontro? E é claro que não. Precisaria, para nos congregarmos num encontro literário, do literário, e aqui teremos de relacionar, portanto, a Amizade à Literatura. Falemos então desse enlace.

Primeiro, a Amizade. Em O Banquete, Platão elege o tema do Amor – Eros - para discussão, pedindo para que cada um tecesse elogiosamente a fiação amorosa. Deu a palavra, inicialmente, a Fedro, o pai da idéia, como o designa - e aqui ouçamos a homofonia com a palavra Paidéia. E é com a fala de Fedro que quero justificar nossa homenagem.  Fedro diz que à vergonha do que é feio e ao apreço do que é belo é no que consiste o tema do Amor. E assim enuncia: Não é com efeito possível, sem isso, nem cidade nem indivíduo produzir grandes e belas obras. E é por aqui que começamos a traçar o perfil de nossa Amizade com o escritor Luiz-Olyntho Telles da Silva.

Foi por meio do colega e amigo, o psicanalista Paulo Medeiros, um dos membros fundadores do Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise – que hoje é saudade, saudade da querência, como escreve Guimarães Rosa, um outro modo de podermos dizer do Amor não é mesmo?-, que nos aproximamos de Luiz-Olyntho, e, pelas razões aqui bem arrazoadas, perseveramos fieis na Amizade iniciada por Paulo.
 
Na sua fala sobre seu percurso institucional – que podemos acompanhar na página da Web que mantém, pelo site Biblioteca Sigmund Freud-, Luiz-Olyntho professa o princípio ético que persegue, afastando-se do que lhe parece feio; ao nunca transigir com o que lhe parece impróprio, rompe, assim, em todas as ocasiões devidas, com aquilo que, no campo de sua atividade profissional, por exemplo, fere a ética proposta pela Psicanálise. Este, um modo de ser próprio ao Amor, a Eros. Então, o primeiro motivo de trazê-lo até vocês, caros ouvintes: a Amizade. Nossa Amizade como a compreende Fedro, referindo-se ao tema do Amor. E – aí- a sinalização, quando soubemos do lançamento do Incidentes, para a criação de algo que, partindo desse lugar, teria de ser Belo, pois é mesmo como disse Fedro: não é possível produzir-se grandes e belas obras sem o apreço do que é belo.  Mas onde a morada do Belo? Ora, para trazer o Belo – e aqui no literário, campo das Belas-Letras -, é preciso antes que haja pertença a um certo lugar: Paidéia, a formação da consciência cultural - a dimensão histórico-cultural do humano. E é aí que encontramos o escritor, implicado com o laço social, compromissado com o diálogo no horizonte cultural. Não há Literatura sem essa dimensão. Na leitura das epígrafes, ao longo do texto literário, já encontraremos o autor de Incidentes em um ano bissexto estabelecendo o diálogo com a tradição, mas deixarei este tema para a sua fala no final. Esse, o lugar do enlace entre o Amor e a Literatura. Concordamos sim com Fedro, o pai da ideia: o Amor é sim o logos das grandes e belas Obras.  E, aqui, estritamente, a Phylia, essa sublime forma de Eros, ela, a Phylia, é sim  logos das grandes e belas Obras.

E agora começarei a falar diretamente do livro, e começarei pelo exame do título.

Nós, escritores, sabemos quão difícil é escolher um título; constitui essa uma custosa tarefa para todo escritor. Não deve reduzir-se simplesmente a uma alusão ao tema, muito abrangente, assim não ofereceria um fio condutor valioso para o leitor-intérprete. O título deve delimitar o tema e, persuasivamente, circunscrever o conjecturável, o hipotético – a suposição –; desse modo, oferecendo a ideia que, estrategicamente, deverá vetorizar a matéria vertente do texto, as ações, os acontecimentos, com a imprescindível função de atrair o leitor.    

Em sua literariedade, o título deverá sutilmente esconder – e não revelar –, a matéria que compreende, devendo ser elaborado com a mesma astúcia sedutora dos sofístas – lugar do conhecimento relativo, posto na ordem do enigma. Lugar da incompletude, da dúvida, da incerteza, da expectativa. Lugar do suspense.   
 
Se só Incidentes fosse o título desse livro de contos, já saberíamos, sim, que em cada um deles ocorreria um acontecimento numinoso. O acaso – Tyché 
é o fio condutor dos Incidentes – em um ano bissexto. São experiências vividas num puro e tênue e luminoso acontecer, delicado instante em que a alma nasce, como está dito no posfácio, momento descontínuo propício à revelação. Mas essa vasta extensão do tema não nos enredaria completamente, não nos deixaria suficientemente enleados, não nos tomaria numa irresistível curiosidade, porque assim, tão abrangente, deixaria escapar a persuasão retórica, o aliciamento necessário para trazer o leitor até ao texto, e sabemos: este só existe com a participação do leitor, na tríade autor-texto-leitor. Não há Obra sem leitor, sabemos. Há que existir este terceiro termo da tríade. É preciso, portanto, persuadi-lo, conquistá-lo, trazê-lo para dentro do texto, e isso se faz desde o título.     

A ficção olynthiana traz o efeito de estranhamento desde aí. Estrategicamente, o título foi assim delimitado: em um ano bissexto. Isso nos leva a levantar hipóteses, a questionar, intrigados, e aí, já bem enredados, supor: ano bissexto, 366 dias... Um dia a mais daquele mês, calendário nada convencional... O tempo de translação da Terra em volta do Sol. 29 dias, 29 contos... Por que esse calendário estranho os liga? Tempo descontínuo... São contos epifânicos, com certeza, conjecturará o leitor. E aí ele, o leitor-intérprete, não resta dúvida, seguirá siderado.     

A Poeta Sílvia Rocha, também gaúcha, enredou-se no título, e assim teceu: O título é muito bem achado, ligado diretamente ao número de textos e à data da carta-relato que constitui o penúltimo conto. Fica um conto para cada dia daquele mês que só tem vinte e nove dias de quatro em quatro anos, e por isso é visto como tendo uma aura estranha: nesse mês as coisas comuns podem parecer diferentes, e coisas extraordinárias podem acontecer. Também, sensivelmente, ela percebeu que todos os contos têm ao menos uma epígrafe, e advertiu: Observar a relação de cada uma dessas epígrafes com o conto que a segue pode ser uma outra forma nada simplória de ler esse livro.

Tem razão Sílvia. É que as epígrafes constituem um recurso estilístico: são, tomadas no seu sentido etimológico, uma paródia – do grego, pará, junto,  ao lado de, e ode, ode, canto;  daí o sentido frisado por Haroldo de Campos, no seu livro Deus e o diabo no Fausto de Goethe: paródia que não deve ser necessariamente entendida num sentido de imitação burlesca, mas inclusive na sua acepção etimológica de “canto paralelo.” Aí, o diálogo intertextual, recurso que evidencia a erudição do escritor. Assim é que encontramos, por exemplo, no conto Lambda, três expressivas epígrafes com essa função; uma de Girard Desargues, que diz: Um círculo retificado tende ao infinito; uma de Cecília Meireles:  E a moça ria-se entre as árvores ondulantes,/ e era uma Ondina saída de algum rio, / e seu vestido era de luz e de água; e uma de Vinícius de Morais: Eu possa dizer do amor (que tive)/  Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure. Assim é que, paralelamente, ouvimos, em Lambda, um canto sobre aquele remanso diáfano, onde um dia!, um dia, certa intimidade se criou, e aí... aí as tetinhas circulares, redondas, de uma gatinha, em inebriante giro, tornaram-se uma reta infinita no tempo,  tempo de amor.

 Alguns leitores, às vezes, não se contentam, e buscam o significado, certo e acabado – sentido fechado –, para essas coisas extraordinárias, essas coisas diferentes... Mas, sabemos, aí, nesses contos olynthianos, para os segredos bem guardados, hélas! só efeitos de sentido! Um leitor-amigo, diretamente, perguntou ao escritor: - Em “OS OLHOS DE PAPAI NOEL” o que é
o HO HO HO no final? Citemos aqui, um pouquinho só, o Lacan, para tentar responder a essa pergunta; é bonita a expressão lacaniana nomeando o efeito de sentido e a feição que deu para mostrar o lugar onde isso ocorre: HO-HO-HO é... efeito de fascinação! Esse efeito que vem do Outro e ao Outro retornando: Que queres? E, gentilmente, à minha explicação, possivelmente, acrescentaria o escritor: Destacas aí o Che Vuoi? Sempre valorizei a leitura – no que está – do que não está. Não há como entrar em nada sem saber o que se quer. Sem o saber, pode-se até entrar, mas não terá nenhum significado, como alguns homens que, no conúbio, não se dão conta de apenas perseverar no culto a Onan.    

Luiz-Olyntho é um escritor que cultiva a Arte em variegadas expressões: a música, a pintura, a poesia, a própria polifonia artística que a língua reserva em suas propriedades fonéticas, numa imbricação da Literatura com a Música. A escolha do quadro impressionista, Le Dejeuner sur l’herbe, de Édouard Manet, para figurar na Capa, é fruto desse gosto refinado. O leitor sensível, ao ler o conto Lambda – nome cuja assonância evoca o primeiro termo do primeiro título desse quadro revolucionárioLe Bain –, fará a associação da pintura impressionista com o conto. O quadro do pintor mostra dois rapazes trajados a rigor, ao lado da nudez luminosa de uma mulher, uma ousada ruptura com as leis costumeiras –, tais quais os dois escoteiros fardados de Lambda, que, fora do script, furtivamente, foram ao encontro de duas gatinhas, e, nas águas do rio, as roupas molhadas, juntos experimentaram os prazeres naturais de uma inocente brincadeira amorosa. E depois, depois... uma vaga lembrança dessa partie carrée do Manet: claras e alegres impressões deslizando num velho pedacinho de tecido cáqui com uma letra grega maiúscula...                    
          
Os contos têm forma breve, a leve forma significante, tal haicais, anunciando os desejos, as verdades inscritas em cada palavra, em cada frase, em cada som que, pelo enunciado, passa, de través.
Dulcinea Santos
Para bem os lermos e com ele muito nos deliciarmos, aconselhamos:    

Primeiro, é preciso que, com muito cuidado, com muita prudência, abramos A Porta – O Livro –, pois, não avisados, não bons leitores, seremos sobressaltados por um certo diabo mignon...     

Depois, é preciso, sim, com sabedoria, adentrar pelos contos com a mente vazia, para que, por exemplo, possamos, só com os ouvidos de quem sabe ouvir, alcançar aqueles sons puros – profundos e distantes –, que vêm das Gaivotas de Uluçinar – são sons que dão passagem a um tremendo silêncio, avassalador soluço provocado pela Dor.    

É preciso também estarmos atentos para os estranhos mundos fantásticos que circulam; entre eles, iremos encontrar, sentado à mesa, o nosso escritor, o Machado de Assis!, teleguiado pelos insinuantes rumores de frufrus sibilantes que a mente deslocou para cruzar os tempos...     

Também é preciso termos o coração malandro, matreiro, da criança – para podermos na cadência sonora, em decrescendo, bem captar aquele Ho Ho Ho do Papai Noel, com o qual um certo menino surpreendeu a inesperada curiosidade de uns li
ndos olhos azuis...     

É preciso ainda ter a alma de Poeta, e, sensíveis, entendermos que aquela cama do pai herdada, toda ela em carvalho – árvore sagrada de Zeus –, não era simplesmente a herança do pai... Era a cama do Amor dos começos...     

 É preciso, também, seguirmos o compasso dos tempos, tempos modernos... E como fazer? Talvez irmos a Long Beach...     

É preciso, ainda, dar atenção à ribalta das sinaleiras na estrada... gestos simples, refletidos em olhos negros, num fulgor de alegria... podem mudar nossa vida!    

É preciso, ainda, que nós, leitores, nos juntemos ao Caçador de Contos, e leiamos, em um papiro dobrado em quatro, uma confissão de Amenhotep... Esse relato far-nos-á compreender o sagrado sentido de uma faraônica iniciação...     

E depois de enveredarmos por todos os contos, por todos os corredores, é preciso, sim, fecharmos O Livro – mas com esta promessa do autor:      

Nova Porta abrirá...                                                                                    
Recife, 16 de junho de 2oo9
Livraria Cultura – Paço Alfândega
_________________
DULCINEA SANTOS é Membro do Traço Freudiano Veredas Lacanianas, Escritora e Crítica Literária. Publica ensaios na revista Veredas. Autora de prefácios para diversas obras literárias. Co-autora e organizadora de: Clarice Lispector. Recife, Bagaço, 2007. rodopiano. Recife, Bagaço, 2008.


RESTOS DE PALAVRAS

Carlos Eduardo Pinto Carvalheira
abcc@uol.com.br

 
  
A criação literária à luz de um livro, a princípio parece também perguntar: Como seria a criação literária de Luiz-Olyntho? Ele teria um bom estilo?  Ele escreveria com as regras ditadas pelo “como se deve escrever”?

Parece incrível, mas é assim que alguns críticos procedem, ao analisar uma obra literária - saber se o autor tem estilo. E, para isso, fazem varreduras nas repetições, falta de proporção, de concisão etc., esquecendo-se da sua própria emoção.

Borges faz uma análise crítica dos que sofrem dessa “Supersticiosa Ética do Leitor”:
  Os que sofrem dessa superstição entendem por estilo não a eficácia ou ineficácia de uma página, mas as habilidades aparentes do escritor: suas comparações, sua acústica, os episódios de sua pontuação e de sua sintaxe. São indiferentes à própria convicção ou à própria emoção: buscam tecniquerías (a palavra é de Miguel de Unamuno) que lhes informarão se o escrito tem o direito ou não de agradar-lhes. [...] Ouviram dizer que a repetição próxima de algumas sílabas é cacofônica e fingirão que na prosa isso os incomoda, embora no verso lhes proporcione um gesto especial, penso que fingido, também. Ou seja, não percebem a eficácia do mecanismo, mas a disposição de suas partes. Subordinam a emoção à ética, ou antes a uma etiqueta incontestável. Generalizou-se tanto essa inibição que quase não restam mais leitores, no sentido ingênuo da palavra, mas todos são críticos potenciais. [...] Leopoldo Lugones, em nosso tempo emite um juízo explícito: “O estilo é a fraqueza de Cervantes e os estragos causados por sua influência foram graves. Pobreza de cor, insegurança de estrutura, parágrafos ofegantes que nunca se resolvem, desenvolvendo-se em convólvulos intermináveis; repetições, falta de proporção, esse foi o legado dos que, não vendo senão na forma a suprema realização da obra imortal, ficaram roendo a casca cujas rugosidades escondiam a força e o sabor (El Império Jesuítico)” a
Portanto, torna-se difícil falar sobre a criação literária de um autor. E não é meu desejo também interpretar psicanaliticamente nenhum texto literário porque assim, em vez de tomar o texto como se fosse o meu paciente, eu é que me tornaria meu próprio paciente.

Mas eu poderia também, conforme Helena Rosenfeld, passar para uma melhor opção, que seria desenvolver um outro texto que tivesse o meu estilo pessoal:

“[...] é preciso evitar que o texto nos possua, mas, também, é preciso evitar que o medo de sermos dominados faça com que dominemos o texto, destruindo-o com explicações [...] E mais: o intérprete, longe de prender-se ao texto original desenvolve um outro texto, um texto próprio que é a resposta ao original, mas que tem a marca de seu estilo pessoal. [...] É preciso saber escutar o silêncio para poder ouvir, como nas palavras de Octavio Paz, a “outra voz”. Mas é preciso, sobretudo, aceitar a impossibilidade de dizer tudo, de compreender tudo. b

Mas não é essa ainda a minha opção, eu não quero ser intérprete de uma obra literária, mas simplesmente um leitor, que no silêncio cria um Outro texto inexistente, com os restos de palavras de uma obra. O meu Outro texto não está inscrito – não é esse que vocês estão lendo –, e sim o dos significantes soados para mim desses restos de palavras, ele é uma espécie de um pseudofantasma que agora faz parte de meu Real – daquilo que não deixa de não se inscrever. Cada leitor também tem o seu Outro texto, totalmente singularizado.

Imaginem um Outro texto inexistente que está sempre não se inscrevendo, à medida que o leitor amassa, pisoteia, rasga cada palavra desse texto, que tenta insistentemente formar Outro, e Outro, e mais Outro texto não dito.

Assim sendo, eu não estou plagiando, tanto que se vocês não vibrarem com os restos de palavras escolhidos por mim – já que todos têm uma escolha própria –, dizendo que esse Outro texto presentificando os “n-1” contos de Incidentes... c é cômico, ou dramático, ou trágico, o culpado não é o autor, mas sim eu, que fiz a escolha desses restos de palavras.

Apresento um “Grande Conto”, disparatado, sem sentido, tirado de restos de palavras ou frases que me invadiram, trazendo-me algo novo. Ele presentifica todos os “n-1” contos do escritor, até mesmo aquele “-1” que se presentifica pela falta:
 
 
                                                                   GRANDE CONTO
 
 

      “Judite: Que se abra a última porta que dá para a noite.” 1, d
    De trás da anosa porta, um orelhudo diabo mignon saltou sobre meu pescoço e, dolorosamente, me sufocou. 2
     Que fazer? A vida tem dessas surpresas. 3
     - E por falar nisso, me diga uma coisa, tu trepas?
     - Claro – respondeu-me ela –, assim se conhece gente. 4
     Tem certas histórias que não são fáceis de contar. Perguntamo-nos: - Quem haverá de acreditar nisso? E, no entanto, elas ficam girando por dentro de nós, por fora de nós, atravessam-nos e não temos outra saída a não ser contar. 5
    Eu mesmo não podia acreditar no que via: sentado à minha mesa estava o Machado! 6
    “Ao vencido, ódio ou compaixão, ao vencedor, as batatas.”7, e
      Eu era ainda pequeno quando me contaram uma história, pequeno para conhecer a história do mundo. 8
     Eu tinha oito anos, e voltava da casa de minha tia... Minha irmã mais velha pedalava, enquanto eu ia de carona, brincando com uma varinha.
      Eu curtia o ruído da varinha batendo nos matinhos ao lado da estrada e minha irmã não acreditou quando lhe apontei aquele homem no carro que passara, estranhamente dirigido por uma mulher loira: era meu pai. Ela tentou parar a bicicleta, mas seu movimento abrupto levou nós duas ao chão.
      Enquanto limpávamos a poeira de nossos vestidinhos, ainda vimos o carro, lá longe, entrar por uma via secundária.  9
     Parecíamos um par de gaivotas, como as que tínhamos visto no último verão, quando estivemos em Uluçinar. Era mesmo o nosso pai.10
    “Ainda que a traição agrade, ao traidor tem-se aversão.” 11, f
     Oito horas de caminhada e chegamos, quase mortos.
     Uma pequena península formada pela curva do rio, e uma mata espessa 12
    “E a moça ria-se entre árvores ondulantes,
     e era uma ondina saída de algum rio,
     e seu vestido era de luz e de água.” 13, g
     
     O que me vem depois enquanto seguro na mão este velho pedacinho de tecido cáqui, bordado de vermelho com um lambda grego maiúsculo (Λ). 14
     Pois não é que choveu de um tudo, e mais um pouco? 15
      - Mãe, eu só queria dizer que te amo... e sempre vou te amar. 16
      Só o silêncio, logo quebrado por um longínquo galo anunciando o amanhecer. 17
      Aquele desgraçado merecia mesmo morrer.  18
     A partir desse momento, as lembranças vieram todas num tropel. Os pedaços até então separados se juntaram e a todas essas memórias partidas juntou-se outra nunca antes ocorrida.19
      Dia de Reis... Era o começo da noite, dessas noites que em janeiro custam a entrar.  20
     Tava eu em casa e ele vinha para o meu ombro, se agarrava no meu pescoço.  – Tu não me morde, tu não me morde, seu desgraçado, que eu te mato. Que dor, quase me tirou um pedaço da orelha! Mas com meu grito ele pulou para uns galhos ali perto. 21
      Foi aí que encontrei, em um papiro dobrado, em quatro, um relato, para não dizer uma confissão de Amenotep. Pasmo, não podia acreditar em meu achado!... mas o modo como começava me parecia inconfundível: Eu, Amenotep, conto mais uma história vivida...
      Havia uma parte central, em cruz, formada pelas dobras, ilegível, embora não impedisse entender o assunto em apreço: a introdução de um jovem na vida sexual. 22
      Um menino, aos treze anos, sendo levado às Sacerdotisas responsáveis por uma preparação para a vida sexual. Seria a história do filho do faraó Amenófis III ou a do próprio Faraó? Seguindo os rituais, as Sacerdotisas o despem ficando admiradas com o faraônico falo, uma dádiva de Osíris. 23
     Posso dizer? – sua prisioneira! É! É isso! Hipnotizada! – tu sabes, não é? –, querendo comer todas as minhas amigas. Cruz credo! 24
    Ontem morreu aquele que talvez tenha sido meu melhor amigo. [...] Ele se destacava por sua elegância de bacharel, e seu posto lhe caía como suas roupas bem cortadas. 25
      Minha admiração pelo Mestre ganhou várias posições – na mesinha de cabeceira do Mestre, entre tantos outros títulos, lá estava Justine, isso, o do divino Marquês: seria com Justine que o Mestre se excitava? 26
     Nem pensar! Comecei a fazer dedo, mas nada. Ninguém parava. 27
       Quando, já passado da meia noite, chegou meu pai todo contente com uma garrafa de champanhe mergulhada em um balde de gelo para brindarmos.28
     Começava a entardecer quando apareceu meu namorado. Meu gato. 29
     Ele esteve sempre tão carinhoso.
     Quando chegamos na sua casa. Não dava para dizer não a nada. Quando começou a beijar-me delicadamente o pescoço, mordiscando levemente minha orelha. 30
    “E o terceiro foi aquele
    Que a Tereza deu a mão.”  31, h
      E então ela viu a cena do meu enamoramento: Ialá, assustada com o barulho, baixava rapidamente as mangas olhando para sua mãe. Siá Nega não demorou em compreender e, concluindo com um inofensivo puxão-de-orelha, tirou-me dali murmurando: 32
    “Para a servidão, o Senhor é a essência; portanto, a verdade é para ela, a consciência independente e que é para si, mas esta verdade para ela não é todavia nela.”  33, i
      Ela sentava-se à mesa, uma grande mesa de mármore esverdeado voltada para o arvoredo, e aí vinham as negras. Uma trazia a farinha, outra uma linda galinha de arame preto cheinha de ovos brancos reluzentes, outra o jarro de leite de vaca recém ordenhada e uma tigela com manteiga fresca. 34
    “Com o suor de teu rosto
    comerás teu pão
    até  que retornes ao solo,
    pois dele foste tirado.
    Pois tu és pó
    e ao pó tornarás.” 35, j
     Voltamos muito contentes da visita ao Rabi, ele logo entendeu por que queríamos nos batizar agora na Igreja Católica. 36
    “Aos homens de Deus a Monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e [...] os primeiros nomeados foram os peixes”. 37, k
     De repente, um peixe pulou para dentro do barco, e logo em seguida, para espanto de todos, outro e mais outro. 38
    Já  nos reuníamos há algumas semanas, mas esta foi a primeira vez a se apresentarem os tais efeitos. Eu estava estupefata com tudo aquilo. Creio mesmo estivéssemos todos, e agora as canetas começavam sua dança sobre as folhas de papel, para logo voarem, uma folha para frente de cada um de nós, com uma mensagem particular.  39
      Precisei sentar-me, pois faltavam-me as pernas ao reconhecer a letra de meu pai. 40
    “Eu não creio em bruxas, mas que elas voam, voam.”   41, l
      E então aconteceu. Foi num final de tarde, a aula estava nos seus últimos minutos quando ela veio olhar uma carta comercial recém-escrita; olhou-a por sobre o meu ombro e, quando se debruçou, seus seios firmes roçaram meu braço incendiando nossa relação como madeira já aquecida. 42
       Escorregamos para o tapete desfrutando as delícias do eufemismo 43
     Estávamos para começar a brincar de esconder, Maria entrava na sala trazendo uma jarra de refresco e no mesmo instante ouvimos um barulhão no alto da escada. Era uma escada íngreme, e um homem vestido de vermelho e branco descia de costas para melhor se equilibrar. Trazia um saco enorme, e quando se virou, vimos uma barba branca cobrindo quase todo seu rosto.
      Meu pai, muito surpreso, quebrou o silêncio:
     - Papai Noel!
      Eu também gritei eufórico, Papai Noel, Papai Noel. 44
      - Papai Noel abriu seu lindo sorriso, com seus olhos azuis brilhando sempre, e tirou de dentro de um saco uma bola de couro, quase do tamanho de uma bola de futebol.
      Rejane ganhou uma boneca de pano com cabeça de louça; Salete um jogo de panelinhas.
     Sobracei o presente depressa, com as duas mãos. Comecei a abri-lo por uma ponta, mas logo rasguei o papel de fora a fora e o que surgiu foi um lindo caminhão, igual a um de verdade. 45
      Logo a boneca de Rejane estava sentada na carroceria do caminhãozinho puxado por nós dois e pelo sorriso de meu pai. 46
      Na ribalta do semáforo vermelho, um bugrinho escuro, maltrapilho e sujo, ensaiava um atrapalhado malabarismo com duas velhas bolas de tênis.
     Um dos carros da frente, o da esquerda, entreabriu a janela para dar-lhe algum dinheiro. Foi quando vislumbrei, naqueles olhos negros e limpos, um fulgor de alegria. 47
    “De onde vem que no teatro rimos tão livremente e temos vergonha de chorar?” 48, m
      O sinal abriu, e eu, os olhos marejados de impotência, converti à direita.49
      No céu, um helicóptero evolucionava sem saber a quem salvar primeiro.
      O rio subia cada vez mais. Viam-se somente os tetos pouco firmes e as canoas que iam e vinham.
      Longe, num teto, minha família recusava-se a abandonar a casa. Era a única coisa que pensávamos. Se as águas levassem nossa propriedade, conseguida com tantas lutas, de que nos valeria viver? Iríamos juntos! 50
    “Quem caminha
    Vendo ao longe
    A Serra da Esperança,
    Caminha toda a vida,
    Mais três meses. 
    E não cansa”   51, n
...................................................................................................................
 
     Morrer não adiantou nada... 52
    “Sou Beatriz que te peço sustentá-lo.
    De onde vim já anseio por voltar.
    Amor me move: só por ele falo.” 53, o
      Preciso contar-lhe um caso. Como o Sr. bem sabe, tenho levado minhas análises com boa desenvoltura. Volto assim mais uma vez para relatar-lhe um caso inusitado. Começou assim:
      Eu aproveitava um horário vago, quando fui invadido por um intenso perfume de jasmim e logo me apercebi da presença de uma pessoa no consultório. Olhei para trás, por cima do ombro, e lá  estava ele.
      Segurava o chapéu pela aba como as duas mãos, girando-o discretamente.54
      Levantei-me para cumprimentá-lo e seus lábios se moveram sem emitir nenhum som, como se tivesse balbuciado algo inaudível. 55
      Disse conhecer-me já há algum tempo como alguém que ouvia as pessoas, e que precisava de ajuda, embora falar para ele, fosse mesmo muito difícil. 56
      A dificuldade da qual sofria era de respiração, e ocorria-lhe principalmente na hora do amor, quando sentia a iminência do orgasmo, disse-me ele. 57
      - Morrer não adiantou nada! Continuo a sofrer. Já não penso em mais nada, além dessa aflição a me ocupar todo o tempo. Há séculos. Por favor, me ajude.
      Nunca se sabe bem o alcance de uma metáfora, argumentei comigo mesmo.
      - As negrinhas foram sempre o meu mal, disse-me ele... mas, no meu tempo, era muito complicado.
      - O Sr. se surpreende porque já não há  escravidão. Agora todos têm os mesmos direitos. Se o Sr. se apaixonar por uma negrinha, isso, hoje, não é problema. Mas, no meu tempo, isso era muito complicado...
      - No seu tempo? 58
      - Sim.  Eu entendo. Agora vejo que o Sr. ainda não entendeu! Eu morri em 1834, há cento e setenta anos, Doutor, aliás, não muito longe daqui...
       - Certa vez eu assisti ao Sr. dar uma conferência sobre fantasmas. Não entendi muito bem, mas me pareceu que o Sr. achava que importante para o sucesso de uma cura poder chegar a uma compreensão do fantasma...  Pareceu-me muito verdadeira essa formulação, fez muito sentido para mim e por isso fiz este esforço em vir até aqui.
      Estava pasmo! Que sabia eu de fantasmas? Ele me ouvira falar, era de uma figura teórica, mas um fantasma, de verdade, e no meu consultório? 
     Belisquei-me, 59
     Mas não! O beliscão doeu e o, como digo? o fantasma continuava lá com seu terno de linho e o chapéu panamá
     Suas palavras interromperam meu devaneio:
     - Então, Doutor, o Sr. vai me ajudar?
     - Ainda não sei... Quem sabe, se o Sr. quiser me contar um pouco mais sobre como foi sua vida, quem sabe então poderemos ver se isso vai ser possível.
     - Está bem. Não será difícil. Afinal – [...] minha vida foi muito curta. Começo por onde?
     - Vejo que já temos um começo, disse-lhe eu, interrompendo a entrevista. Continuaremos amanhã. 60

Ao corte lacaniano – dado ao próprio morto –, espanto-me! Todas as portas são fechadas ao já sabido para advir o não sabido.

O Conto final foi cortado porque o último foi o primevo – aquele que não é seduzido, mas a todas ele seduz, mesmo que por princípio pareça insípido.
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CARLOS EDUARDO CARVALHEIRA é Escritor. Membro da Intersecção Psicanalítica do Brasil e do Traço Freudiano Veredas Lacanianas. Publica ensaios na Revista Veredas. Co-autor de:
Novelas de aprendizado. Recife, Bagaço, 2003. Contos de Oficina. Recife, Bagaço, 2004. Clarice Lispector. Recife, Bagaço, 2007. rodopiano. Recife, Bagaço, 2008.


DE UM NOME NOMEADO BISSEXTO
À PORTA FECHADA A SETE CHAVES
     
Fátima Quintas

E tudo começa com o nome — Incidentes em um ano bissexto. Surgem os inícios. Recorro ao Gênesis: No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas (Gênesis 1.1). O ato de nomear vai muito além do simples atributo de um nome: corresponde a ofertar à coisa um significado, distingui-la no seu valor intrínseco, separá-la das outras como algo singular, que possui característica única, aquilo a que nos unimos por laços profundos — ano bissexto. Nomear é, de certa forma, amar o objeto particularizado através de uma identidade que só ele detém, mas que se liga ao outro em um processo de ipseidade. Assim, resvala num prolongamento de si perante o reflexo de um espelho, a perfilar o esboço da alteridade. E o nome se consubstancia na leveza da origem — o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Quando Hegel elabora o seu conceito triádico, Tese, Antítese, Síntese, reporta-se à mesma referência teológica, esta, por sua vez, transmitida à consciência do homem em um efeito circular-mandálico, no qual não se podem cindir os elos constitutivos do ser, responsáveis pela grandeza da dialética e pela perenidade da transformação — a poiésis. Digo isso porque o ato de nomear outorga a Luiz-Olyntho a posse do texto — uma autoria germinal. Quem nomeia retém o domínio.  Incidentes em um ano bissexto, livro agregador de múltiplas faces, apresenta imagens conjugadas em um só tear: o criador e a criatura. As criaturas, na sua maioria, não são nomeadas, porque o nome é de quem as entalha, circunstanciado, em um ano bissexto, o que imprime a marca de uma estrutura seguramente original. Em razão de uma forte empatia entre o criador e a criatura, não se estabelecem hiatos de maior ou menor significação. Ambos, o criador e a criatura, interagem em um mesmo conjunto de solidez: bloco indivisível, inseparável, indissociável.     

Textos, por conseguinte, que se fundem à pena do autor, a reclamar vivências e convivências na sobre-vivência da escrita. Não uma escrita qualquer, porém uma escrita nomeada com apelos subjetivos, porque erigida à base da intersecção identitária. Há uma simbiose perfeita entre a palavra dita, a palavra pensada, a palavra em jorro de interioridade. Subscrita. Assinada. Autenticada. Epifânica. Mimetismo que não passa despercebido, um eu e um outro em consonância, voz silente ou até histriônica na formulação do parágrafo, das frases, das entrelinhas. E tudo acontece. Mas acontece em um ano bissexto. Nomeadamente bissexto.      

O que é um ano bissexto? Um ano aguardado, com dias em acúmulos, horas que se superpõem na inquietude da espera. De quatro em quatro anos, quando os minutos já se excedem na paciência bíblica, quando o calendário envelhece a contagem dos dias, quando as auroras se cansam de renovar luminosidades, quando a lembrança exige surtos de esquecimento, quando o mundo começa a sofrer a fadiga dos repetidos acontecimentos, eis que desponta o ano bissexto com ares de renovação. Um rito de passagem em um calendário fixo e monótono. Afinal, a própria temporalidade carece de mutações. A perspectiva de momentos frios, congelados, incita à dinâmica dos volteios. Há um ir e vir a conclamar inconstâncias. E a História — com letra maiúscula — oficialmente legitima a variância. O tempo, até ele, cobiça certos vasculhamentos, momentos que ensejam surpresas, interrogações, interjeições, nuances diferenciadoras dos anos comuns. Apenas um dia a mais no calendário traz toda uma revolução nas certezas da cronologia. O ano bissexto se instala, inoculando o diferente, o extraordinário, o messiânico. Ao pensar bissexto, eu penso nas alternâncias; ao pensar bissexto, eu penso nos imprevistos; ao pensar bissexto, eu penso nos sortilégios. E eu penso até no meu nascimento, a 28 de fevereiro de um ano bissexto. Ainda ouço minha mãe, angustiada, dizendo: não, não quero que minha filha nasça no dia 29. É estranho. Ela precisa ser igual a todo mundo. A ansiedade da mãe a mim passou a tendência à bissextualidade.     

Pois é, meu caro Luiz-Olyntho, os seus incidentes ocorrem em um ano bissexto. São 29 contos plasmados sob a escritura do eu. Os personagens falam numa narrativa egoica. Todos os contos são lavrados na primeira pessoa. O eu falante: amando, brigando, entendendo-se, desentendendo-se, rindo, correndo, traindo, passeando de bicicleta com uma varetinha na mão... E os eus-personagens ganham força exatamente pela intumescência da individualidade. Há uma voz onipresente e onisciente que se confunde com o autor. Você, Luiz Olyntho, adeja sobre eles: discute, pacifica, expõe-se, está vivo-vivíssimo entre os atores construídos em uma imaginação que mistura a ficção com a realidade. Sim, não existe ficção pura, pelo menos não acredito nela. Faz-se urgente lancetá-la com toques de realismo; assim, tudo parece mais verossímil e menos artificial. Será a ficção um caleidoscópio burlesco. Qual o quê! Desde quando a letra é falsa? O que se inventa corresponde aos desejos transfigurados, talvez burilados por uma autoridade que os tutela, então é mais fácil deixar que a linguagem da ficção sirva de ilusão a quem a lê. O escritor, de um modo geral, engana-se ou se deixa enganar por trás de um cenário aparentemente postiço. Não estou dizendo que a ficção literária deva ser objeto de análise psicanalítica. Não. Não.  Estou tentando dizer que não há textos ficcionais isentos de eu. Seria absolutamente impossível moldar personagens distantes da nossa consciência ou da nossa inconsciência. A realidade, travestida de traços imagéticos, é a que existe; a que algum dia foi nossa; a que nos domina através da memória involuntária de que fala Proust. A ficção tem algo de biográfico ou de idealização de um desejo que se frustrou, amordaçado, massacrado, sepultado, ainda que palpitante e decisivo na ordenação do pensamento. A ideia não irrompe isolada, solta, a vagar por aí, como fantasma desconectado dos seus feitiços. Vem atrelada a outras ideias, numa cadeia ascendente, vertiginosa e vulnerável a perigos involuntários. Gabriel García Márquez enobrece os resíduos da lembrança: A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la. Da recordação emanam as veredas oníricas e idealizadas. Contar é reinventar uma realidade já desvirtuada pela saudável capacidade de transignificá-la.      

Luiz-Olyntho se excede na ousadia de projetar-se em personagens que têm a vivência do eu. De um eu que se recria no espetáculo cênico de si mesmo. Há uma representação cuidadosa, adornada de fetiches, que servem de fumaça ao episódio de cada conto. O autor se municia de eufemismos caros à ficção. Aliás, caríssimos. A habilidade narrativa transforma-o num escritor maduro, apto a utilizar a pena com astúcia e perspicácia. Sabe como ninguém tecer e destecer a história contada, vai por um caminho, segue outro e, depois, na calada do imponderável, arremata o desfecho para permitir ao leitor a captação de momentos multifacetados. Não há nada de linear na sua narração. Claro que não. Como poderia adotar a diversidade dos eus, apegado a simplismos de todo prejudiciais à riqueza ficcional. A concepção da literatura equivale à metamorfose do déjà vu. Uma folha de papel em branco, desértica, assustadora — toda folha de papel em branco é assustadora para o escritor —, roga por adereços mágicos, com características próprias de autenticidade, à semelhança de um prestidigitador arguto e conhecedor das vontades do outro e, sobretudo, das próprias vontades. A vontade do outro, por acaso, não se soma às nossas? Logo, convém refinar o manejo da linguagem para se lograr o êxito de uma narrativa prodigiosa. Herder já dizia que a palavra é o primeiro pensamento; portanto, cabe a ela sacralizar o profano e profanizar o sagrado. De uma forma ou de outra, a palavra carrega o significado e o significante, seja simbólico, metafórico, icônico, ou seja a imagem acústica do que dela se depreende. Os fonemas são capazes de enlouquecer o leitor pela mediação entre o silêncio e o grito. Luiz-Olyntho conhece profundamente a sintaxe da fala. Brinca num à vontade extraordinário, acompanha as ondulações das vozes, modula os ecos, acata os mutismos e recebe os impulsos de seus personagens mediante uma articulação muito bem consolidada pelas circunstâncias. Possui, por efeito, o domínio da palavra e da escuta tanto no diálogo quanto no monólogo. O que lhe interessa é a composição da narrativa. E basta-lhe. 
    
E as epígrafes utilizadas em cada conto? A pontuar aberturas. Calmamente. Com aura de nobreza e fidalguia. Ao modo de enseadas, acolhendo os que partem e os que chegam. Emblema iniciatório. Acenos de estreia de alguma peça de Brecht. Seria um mero recurso inovador? Também. Mas creio que mais que isso: uma forma explícita de agasalhar o conto, como se necessitasse simbolicamente de papel celofane vermelho para embrulhar a invenção do menino traquino, desafiador, transgressor. O ato de afagar gera nichos de recolhimento, assim como de sentimentos de partilha. A epígrafe dá o tom. Prelúdio de uma partitura musical. A epigrafia, esclareça-se, é a parte da paleontologia que estuda as inscrições em pedra nos monumentos. A escrita pétrea é a escrita que permanece, duradoura — a pedra eterniza a letra. Inscrição na pedra e na pele, indeléveis, marcas perenizantes. Luiz-Olyntho apanha na epigrafia o suave paramento para ofertar maior intensidade ao conto. Uma dimensão de agudeza que inaugura um novo modelo textual dentro da ficção, então envelopado por grutas de proteção ou de ornamentação. E nada mais inteligente que fazer uso das Iluminuras para fiar um roteiro que se quer às vezes barroco, às vezes apolíneo, às vezes barroco-apolíneo. Os manuscritos medievais recorreram aos desenhos em arabescos para reforçar a arte da escrita, ou melhor, para harmonizar a estética com a literatura. Pouco importa o tipo de iluminura que venha a iluminar o dito, o já dito, o que se estar por dizer. A sabedoria ornamental percorre todo um espectro que vai da epigrafia às Iluminuras. Uma travessia prevista com ganhos subliminares e extraordinariamente sábios. E Luiz-Olyntho alcança essa fusão quase etérea. Nada no livro Incidentes em um ano bissexto é feito aleatoriamente. Há uma urdidura, quiçá diabólica, no tecido construtivo. Que o leitor desvende o implícito nas estampas esmaecidas de uma letra nem sempre dotada de extroversão. Aí reside o mistério. Um mistério de um autor satânico na linguagem do significado e do significante.     

Se de mistérios se compõe o livro Incidentes em um ano bissexto, não poderia desconsiderar o enigma maior: o primeiro conto do livro se chama A porta. O que há atrás de uma porta fechada? E previna-se, antes de qualquer digressão: uma porta especial que remonta aos ancestrais, logo há toda uma narrativa egressa de um passado petreamente inscrito nas grutas do inconsciente, como já aludi. Vale a pena transcrever o conto, porque ele é o mais curto de todos e, sem dúvida, o mais hermético e, repito, o primeiro de uma sequência relativamente extensa. Eu jamais conseguira adentrar aquela porta. Aliás, eu sequer tentara! Os antepassados dos meus avós já não entravam ali e ninguém ousava se lembrar de seus guardados. Mas naquela tarde ousei! Aproveitando o ruído da rua, forcei-a. Com muita dificuldade a abri e o silêncio imperou na escuridão. De trás da anosa porta, um orelhudo diabo mignon saltou sobre o meu pescoço e, dolorosamente, me sufocou.     

Luiz-Olyntho intencionalmente abre o livro com uma porta fechada. Há muito cerrada. Desde os tempos avoengos, lá para os confins, sem que ninguém ouse desvendá-la; o espaço trancado não se empoeira apenas com o vazio; ali, talvez perfilados em pilhas desordenadas, os guardados estão em segurança, Relíquias de casa velha, como diria Machado de Assis, preciosidades que devem ser respeitadas, jamais entregues a mãos desavisadas. E o polvilho assenta-se nesse chão escondido. Segredos, sussurros enredados em uma teia claramente imbricada pelos nós do inconsciente. Que permaneçam assim: calmos, tranquilos, principalmente adormecidos. Sim, adormecidos. Mas presentes, assustadoramente presentes, qual verdade que não deve vir à tona. A porta se conserva fechada e nenhum intruso será capaz de abri-la. Até que, aproveitando o ruído da rua, vejam bem, aproveitando o ruído da rua, à sorrelfa, portanto, alguém a força — ele, Luiz-Olyntho. O amontoado de lembranças é tal que não suporta o enfrentamento. Deixa-se sufocar pela menor densidade do que lhe é permitido enxergar na escuridão do medo. O autor somente consegue debulhar-se, conto a conto, após a descoberta, do quê, do quê, do quê?...      
Sufocado pelas lembranças, lembranças acumuladas de uma dorida herança, libera a letra. Os grilhões são desmantelados. As amarras desatam. O grito sai da garganta. E a narrativa se faz carne e sangue num texto absolvido de qualquer culpa. Inocentado pelo que experienciou ao conhecer o mundo da memória, trancafiada a sete chaves. Quantos anos ali se passaram? Anos bissextos que se entulharam de quatro em quatro anos? Agora, em mais um ano bissexto, Luiz-Olyntho sente-se pronto para transfigurar-se em palavra-viva.     

Casa- Grande das Ubaias
Recife, 31 de maio de 2009.
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FÁTIMA QUINTAS é membro da Academia Pernambucana de Letras. Autora (entre diversos outros títulos) de: Sexo e Marginalidade,1987.  Educação sexual: um olhar adiante, 1992. Mulheres oprimidas, mulheres vencidas, 1996. A ilustre casa dos fantasmas, 2006. Assombrações e coisas do além, 2009.


A TESSITURA FICCIONAL OLYNTHIANA

Lourdes Rodrigues

    Analisar uma criação literária, sem dúvida, não é uma tarefa fácil. É como se estivéssemos querendo deter sucessão vertiginosa de imagens coloridas, belas e misteriosas de um caleidoscópio. 

     Tarefa ainda mais árdua é analisar a criação literária de Luiz-Olyntho Telles da Silva, psicanalista experiente, com vários livros publicados, dono de respeitável erudição, já reconhecida de encontros anteriores promovidos pelo Traço, ora escritor ficcionista estreante com um livro de contos, um texto que no dizer barthesiano provou que me deseja, um texto que me contenta, me enche, me deixa eufórica, um texto de fruição

        A primeira idéia que me surge é a de que ele teria enfim encontrado o caminho da criação poética que tanto seduzira Freud. Pois é, o pai da psicanálise escreveu o ensaio Escritores Criativos e Devaneios, buscando elucidar o estatuto da criação e responder à pergunta: em que fontes esse ser estranho, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. 

      Em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, Freud reconhece nos escritores criativos aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. E após essa paráfrase ao texto hamletiano ele com humildade, embora não desesperançado, admite que os escritores estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência

      Mas quem são esses seres criativos que levaram Freud a se nomear pessoa comum e a  dizer não ter acesso à mesma fonte de conhecimento da alma humana?

      Elena Quiroga, romancista que entrou para a história como a terceira mulher a entrar na Real Academia de Letras da Espanha, costumava, em seus saraus, comparar o escritor a um deus, pela capacidade de criar seres, alguns imortais, como Raskolnikov, Dom Quixote, afinal, seres de carne e osso, embora sem a mesma composição molecular. Tão reais ou mais que os próprios criadores, dizia Quiroga, alguns chegando a ofuscá-los, como Dom Quixote que ela considerava mais real do que Cervantes e admitia ser mais fácil Dom Quixote ter escrito Cervantes do que o inverso. Na mesma direção o poeta francês Jacques Prévert repetia: Dostoievski é um personagem de romance, Victor Hugo é um personagem de romance, Balzac é um personagem de romance... E não há como esquecer a famosa frase de Gustave Flaubert: Madame Bovary c’est moi

      Para William Faulkner a sua ação criativa era impulsionada demônio de escrever — quem sabe resultante até de um contrato goethiano —, mas reconhecia no escritor poder ainda maior, se comparado aos deuses, porque além de criar seres, eles também detinham o poder de modificá-los. 

      Jean-Paul Sartre, no ensaio Que é a literatura?, diz que um dos principais motivos da criação artística é a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo. E que o escritor jamais escreve para si mesmo. O ato criativo reside num momento incompleto e abstrato da produção de uma obra, e se não houvesse mais ninguém além do escritor, ele poderia escrever indefinidamente que a sua escrita enquanto objeto jamais viria à luz. A operação de escrever implica necessariamente na operação de leitura como seu correlativo dialético, e esse dois atos exigem agentes distintos. É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só existe arte por e para outrem, conclui Sartre.

      Ainda no sentido sartriano, o autor escreve para se dirigir à liberdade dos leitores, e a solicita para fazer existir a sua obra. Contudo, não é a leitura mecânica que a fará existir. É a leitura tópica, particular, síntese da percepção e da criação O objeto literário, ainda que se realize através da linguagem, nunca se dá na linguagem, porque em sua essência ele é silêncio, contestação da fala. Não são as centenas de milhares de palavras, lidas uma a uma, que vão dar o sentido à obra. É preciso que o leitor se coloque desde o início à altura desse silêncio. Não importa para Sartre que chamem a essa operação de reinvenção ou descoberta, porque tal reinvenção, diz ele, seria um ato tão novo e tão original quanto a invenção primeira. No seu dizer, leitura é a criação dirigida, as palavras estão ali como armadilhas, para estimular sentimentos, e cada palavra é um caminho de transcendência, dá forma e nome às nossas afeições...

      No entender de Roland Barthes literatura é o grafo complexo das pegadas de uma prática de escrita e o que se visa, essencialmente, é ao tecido dos significantes que constitui a obra, não
pela mensagem em que ela é instrumento, mas pelo jogo das palavras em que ela é o teatro.

      Mas, retornando a Sartre, paradoxalmente, para o leitor, tudo está feito e tudo está por fazer, a obra corresponde à medida exata das suas capacidades: enquanto lê e cria, tem consciência de que poderia seguir mais adiante em sua leitura, criar mais profundamente; com isso a obra lhe parece inesgotável e opaca, como as coisas. Em suma, o leitor tem consciência de desvendar e ao mesmo tempo de criar; de desvendar criando, de criar pelo desvendamento.

      Se a criação só se realiza completamente na leitura, pela consciência do leitor, toda obra literária é um apelo, apelo à liberdade do leitor, naquilo que essa liberdade tem de mais puro, para que esta colabore na produção de sua obra. 

      É fazendo uso dessa liberdade que ora faço a minha leitura de Incidentes em um ano bissexto, do escritor e psicanalista Luiz-Olyntho Telles da Silva, um texto que me encontrou porque escrito no prazer.  

      Para início, não poderia deixar de referenciar o brilhante título escolhido por ele. Juan José Millás diz que o título é o primeiro rosto do romance. Alguns títulos que ficaram célebres foram retirados de poemas. Hemingway trouxe do poema de George Peele sobre a nostalgia da juventude perdida o título Adeus às armas. De John Donne, contemporâneo de Shakespeare, Por quem os sinos dobram. E Luiz-Olyntho, onde foi buscar Incidentes em um ano bissexto? De Barthes, onde incidente é uma cadeia organizada de momentos em que a alma nasce? Ou do romance famoso de seu conterrâneo Érico Veríssimo, Incidente em Antares, pluralizando-o e deslocando-o do espaço, da cidadezinha perdida no mapa do Rio Grande do Sul, às margens do Rio Uruguai, na fronteira do Brasil com a Argentina, para o tempo, um tempo que não se mede sempre, mas apenas de quatro em quatro anos, para o tempo do ano bissexto? Com certeza uma bela recriação e justa homenagem ao grande escritor. 

      O alerta das epígrafes iniciais nas diversas línguas grega, latina, alemã e portuguesa de que a vida é breve, a arte longa, não me deixa dúvida, Valha-me o Senhor, da maestria literária que encontrarei adiante. E, ainda, como se quisesse intimidar com a epígrafe da porta misteriosa do castelo de Barba Azul, presenteia-nos com um conto de um único parágrafo de pouco mais de sessenta palavras, em que a ousadia de adentrar por uma porta fechada secularmente fora premiada com a sufocação por um orelhudo diabo mignon.

      Valha-me, Senhor. É preciso destemor, intrepidez, valentia para seguir adiante. Ou não ter mais tempo para recuar, transtornada pela avoenga angústia de saber o que vem depois. Segundo E.M. Forster, desde o homem de Neanderthal, quando a história ainda era contada ao redor de uma fogueira, que ela se mantém viva pelo angustiante desejo dos ouvintes de saber o que vai acontecer a seguir, tal qual o esposo de Sherezade nas Mil e uma noites.

      Mas Luiz-Olyntho é um escritor maduro, consciente das fraquezas humanas, sabe que a tensão precisa ser aliviada. E alivia com uma bela e afirmativa frase que dá início a um conto de amor: Sou um homem muito feliz. O leitor respira, tranquiliza-se e deleita-se com aquela história amorosa, em que uma cama de carvalho de solteiro – somente descoberta tempos depois porque aquele espaço a menos jamais fora percebido pelo casal apaixonado, tão desnecessário se fazia um espaço a mais –, com escultura de Vênus e Cupido, acaba se transformando numa cama de casal para finalmente acolher a filha há muito sonhada. Claro, está é a história contada pela liberdade da minha leitura.

      Todas as narrativas estão na primeira pessoa, ora com um eu protagonista da ação, ora como testemunha dela. Algumas bem no gosto de Faulkner que dizia adotar como ponto de partida para escrever um personagem, uma anedota, jamais uma tema. Só para citar, entre outras anedotas de Luiz-Olyntho, As Calças Novas, hilária, Chama Chuva, que horror!, O Caçador, alguém, por favor, denuncie este caçador ao IBAMA, argh! O Mestre, que surpresa, hein? Ele trepa! Outras narrativas destacam-se pela singeleza, Dolomitas, Último Desejo, Welcome... Histórias curtas, bem construídas, algumas bem impactantes, o efeito de surpresa surgindo quando o final da história secreta aparece na superfície, todas, porém, deliciosas de se ler.

      Citaria DILÚCULO, como exemplo de conto no qual o não-dito, a história secreta narrada de forma elíptica, é contada com maestria por meio de uma simples frase de negação à pergunta: — Estás bem, filho? – Não, mãe, não tô. Em seguida, o silêncio do telefone, a passagem da escuridão para a luminosidade do amanhecer, para o dilúculo, carregada de dor e apreensão. Páreo duro com As gaivotas de Uluçinar, a bicicleta, um carro, o carro do pai, a mulher loira, os gritos da mãe e dela, enfim, um homem de rosto vermelho e inflamado de ira, as lágrimas, a perda do sorriso para sempre da mãe. Poucos ingredientes, um grande conflito. Contos com características fundamentais, acolhendo, ao mesmo tempo, velocidade, volume e concentração dos elementos que compõem a ação (intensidade) e altura e ou condensação desses ingredientes, compactação dos componentes da ação, e a lentidão em que eles se desenvolvem (densidade). 

      As histórias contadas por Luiz-Olyntho são tão reais que sugerem ao leitor uma extrapolação da textura ficcional. Trata-se de uma obra essencialmente memorialista? A dúvida talvez se coloque a partir da decisão do autor de tecer vinte e nove histórias, todas na primeira pessoa do singular, sendo esse eu, quase sempre, protagonista da ação, personagem principal, exceto em alguns causos que ele ouviu e decidiu contar e de alguns contos em que ele foi personagem secundária, como no caso de As gaivotas de Uluçinar.

      A escritora Dalila Teles Veras, ao meditar sobre a  criação literária como matéria de memória e esquecimento, foi buscar apoio em Saramago e Mário Benedetti. Para o primeiro, todas as memórias são falsas. E ele argumenta: o que existe são memórias de memórias, vestígios de outras memórias, memória da memória primordial. Vivemos no meio de nossa memória, como um caleidoscópio, os pedacinhos são os mesmos, mas mudam. Para a outra fonte usada por Dalila Teles, o escritor uruguaio que escreveu El ouvido está Lleno de Memória, não existe esquecimento, o esquecimento está cheio de memória.

      Na verdade, pouco importa, agora,  se a criação literária de Luiz-Olynto é memorialista, se memória ficcional, porque não existe memória verdadeira no dizer de Saramago, ou  se memória do esquecimento, pois o seu ouvido está cheio de memória, de acordo com a tese de Mário Bernadetti. Interessante é o que se percebe em cada frase, em cada parágrafo, o imenso prazer desse artesão da palavra com o seu ofício, que tanto nos faz lembrar Flaubert quando disse: 

... é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular em toda a criação de que se fala. Hoje por exemplo, homem e mulher tudo junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa floresta, por uma tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. 
      Luiz-Olyntho vagueia pela sua escrita deixando de ser para si mesmo para circular pela sua criação literária, ora advogado-tributarista apaixonado pela linda mulher à espera de uma filha que se demora a chegar, ora mulher elegantérrima em sua plataforma levíssima, óculos de sol Dior, a comentar com a amiga sobre a sua sexualidade solitária, ou ainda menina curtindo o ruído da varinha batendo nos matinhos na garupa da bicicleta da irmã quando vê o pai-herói acompanhado de uma loira que não é a sua mãe, ou atrás das grades, homem rançoso a repetir aquele desgraçado merecia mesmo morrer tudo por causa de um olhar jamais visto naquela filha que tanto amava, ou homem maduro amargurado pelo fim de um casamento, depois de quatro filhos, pela confissão da mulher de que ele era insosso, insípido, logo ele com um background brilhante que faria inveja a qualquer amante latino e assim ele segue, circulando, circulando através de ricas personagens, circulando, circulando...

      Sim, Incidentes em um ano bissexto, com certeza, é um texto que me contenta, me enche de alegria, de prazer.
                                                        
Jaboatão dos Guararapes, 16 de junho de 2009.
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LOURDES RODRIGUES é Psicanalista e Escritora. Membro do Traço Freudiano Veredas Lacanianas. Publica ensaios na revista Veredas. Autora de: Bandeeiras dilaceradas. Recife, Bagaço, 2002. Situação limite. Recife, Bagaço, 2005. Co-autora de: rodopiano. Recife, Bagaço, 2008. Participa de antologias de contos.


NOITE QUE INVENTA A CRIAÇÃO
                                                                   
Raimundo Carrero

 
 
Judite: Que se abra a última porta que dá para a noite, avisa a epígrafe que inicia o livro Incidentes em um ano bissexto, de Luiz-Olyntho Telles da Silva, numa edição da EDA. Mas não é apenas uma epígrafe, apenas um pórtico é, ao mesmo tempo, um convite para a leitura e um aviso de como este livro está sendo criado. Ou melhor, para uma reflexão de como é feita a criação literária que continua sendo um mistério, um enigma, embora seja apreendida em vários níveis.

Sem muitos arrodeios, uma verdade, a criação – literária ou não – é mesmo uma última porta que se dá para a noite, e o autor faz muito bem em recordar. Escrever é entrar nesta sombria e bela noite, embora seja possível encontrar pontos luminosos, que vão clareando o caminho. Não de todo, é claro, não de todo. Quando se fala em trabalhar com a criação literária, por exemplo, não se espera desvendar todos os processos, mas tentar esclarecer pontos que nos revelem o enigma.

Mesmo assim, tenho sido muito objetivo quanto à literatura, tanto por causa de minha experiência de autor, quanto pelos estudos que venho desenvolvendo há alguns anos, sobretudo nas oficinas literárias que aplico tanto aqui no Recife, em tempo integral, quanto em várias partes do País, em simpósios, congressos, encontros, etc. A desconfiança é sempre geral, porque se acredita que o ato criador é uma espécie de luz que encontra o artista em estado de iluminação ou purificação.

Não é bem assim, e Luiz-Olyntho o demonstra ao longo deste livro, que revela, ao mesmo tempo, um bom contador de história – a primeira grande qualidade de um ficcionista –, e, de outro, um artista preocupado com a estrutura interna na obra de arte literária, começando pela escolha das palavras e seu exato uso no momento adequado. Daí porque não se pode falar, diretamente, em inspiração – no sentido clássico que conhecemos -, mas em artesanato.

Encontro em A visita, deste livro, uma espécie de estandarte, uma espécie de apresentação para a tarefa criadora do autor, com um elemento central que desmente a existência de uma inspiração irresponsável – esta inspiração de que falam os adoradores da mágica sem explicações –, e coloca no lugar certo o trabalho do criador. Que diz ele, em sua poética:

Eu estava dormindo e acordei sobressaltado com um discreto frufru cortando o silêncio. Pensei no ruge-ruge da seda. Minha mulher por vezes gosta de ir ao closet para olhar alguma roupa, mexe por algum tempo nos seus vestidos de festa, revisa alguma costura – isso parece lhe recompor o sono, e então ela volta a dormir.

Ou seja, em Luiz-Olyntho todos os elementos estão prontos, a história escrita no inconsciente – porque, afinal, é com o inconsciente que escrevemos –, e estão esperando o momento em que serão movidos para dar início à criação. Isto mesmo. Melhor ainda: para dar continuidade ao processo criador. Assim acontece com ele, assim acontece com a gente. Thomas Mann chega a substituir a palavra inspiração por eclosão. Os elementos criadores já estão guardados, e bem guardados, há um instante, portanto, no meio da noite, porém, em que o inconsciente se levanta; pressionado por nossos desejos e atitudes, revê tudo direitinho, revisa alguma costura, e há a eclosão. Assim as histórias começam a se mexer. E quando voltamos a dormir, elas estão prontas para ser escritas. Basta ser provocadas.

No entanto, é preciso que se diga: ela tem de ser provocada. E como se provoca a criação: através das leituras, sobretudo através da leitura, da observação sistemática da vida, das pessoas, das gentes, dos estudos, das conversas com estranhos e com amigos. Quando nasce um personagem, que parece assim nem mais, esteja certo de que é um gesto de alguém, uma voz na multidão ou no silêncio, a esquisitice de um parente, de um conhecido, de um visitante. Sem forçar, sem exigir. O inconsciente está ali para isso mesmo. Para provocar a eclosão.

Mesmo assim, mesmo com toda essa ajuda dessa caixinha misteriosa e caprichosa, tem certas histórias que não são fáceis de contar. Sem dúvida. E elas, quase sempre, são as mais simples. Aquelas que exigem um certo grau de humildade e de simplificação que nos coloca diante de vários dilemas. Está no livro de Luiz, também está.  Porque aqui ele percorre várias trajetórias, caminha em várias direções, procura muitas vezes, que é próprio do criador consciente de seus.

Eis o começa de A visita. Talvez com esse conto possa explicar o processo do autor, quase sempre tomado por escrúpulos, precisando primeiro expor uma questão, explicá-la, para depois dar andamento ao que precisa dizer. Está sempre recorrendo a essa técnica. Até porque precisa seduzir o leitor. E, nada melhor do que o tomar como ouvido e envolvê-lo. Mas sem explicações levianas. Quase sempre sem explicações.

Vejamos, por exemplo, ainda, o conto Dilúculo. Simples: a história de uma mãe que acorda com o telefone tocando no meio da noite. E ouve a misteriosa voz do filho: Te amo. E é só isso. Só isso? A mãe nem sequer sabe onde o filho está e é acordada para ouvir fala tão bela. E basta. A história se basta por si mesma. Não precisa de explicações. Ali, porém, está, mais uma vez, o processo criador em Luiz-Olyntho: está no meio da noite, está próximo do galo que vai cantar e canta. Ou seja, canta no momento em que o escritor se põe a caminho, anota as frases e transforma tudo em texto literário.

Mas aí está a questão: tudo está dentro de nós, está nos nossos sentidos, está em nosso sangue. Não há como esquecer.

Em Luiz-Olyntho fica claro: está na mulher que mexe no guarda-roupa ou no telefone que toca no meio da noite.

Matérias que formam os sonhos ou os livros.

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RAIMUNDO CARRERO é Jornalista e Escritor. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Autor de: Somos pedras que se consomem. Grande Prêmio da Crítica, APCA 1996 e Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, 1996. As sombrias ruínas da alma. Prêmio Jabuti, 2000. Sombra severa, 2001. Ao redor do escorpião... uma tarântula? 2003. E assinou a orelha do meu Incidentes em um ano bissexto.

 
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