Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

 




 CRÔNICAS



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LINCOLN

 

Sendo o logos sempre, os homens se tornam descompassados, quer antes de ouvir, quer logo tenham ouvido [...].

(HERÁCLITO, Fragmento 1, desde Sexto Empírico, Contra os Matemáticos, VII, 132.)

 

Minhas caminhadas, por recomendação médica, que no início eram muito chatas e cansativas, foram, aos poucos, tornando-se interessantes. O cansaço, que antes me deixava prostrado, inutilizado mesmo, pelas dores musculares, aos poucos foi desaparecendo. Uns minutinhos de alongamento, um banho, e pronto, já estava refeito e em condições para o cotidiano. E a chatice, essa nem sei se passou antes ou depois do cansaço. A verdade é que, quando me dei por conta, estava observando as pessoas, as árvores, as construções, o movimento, e achando tudo muito interessante.

Aquele curto trajeto de pouco mais de dez quadras, que agora percorro mais de uma vez, foi se transformando, aos poucos, em todo um universo, um universo paralelo. Outro dia, enquanto me preparava para caminhar, a simples perspectiva de sair de casa já acendeu minha imaginação. Foi enquanto amarrava os tênis: ainda que sem saber por que, surgiu-me na imaginação a figura de um astronauta vestindo seu equipamento para um passeio no espaço. Ele precisava levar consigo tudo o de que iria precisar fora da nave, inclusive seu próprio oxigênio. Claro! O universo da nave não é o mesmo do espaço sideral. A mudança de ambiente, qualquer que seja, tem sempre suas próprias exigências. Quem vai à floresta, necessita de roupas especiais, armas, barracas, instrumentos de cozinha e, que mais sei eu! Para uma simples caminhada, tenho aprendido que uma roupa ligeira e discreta é o melhor. Relógios e celulares são sempre um peso a mais e uma tentação para os amigos do alheio; há que ter cuidado. No mais, cabeça leve, sem preconceitos, e disposição para perceber o que aparecer, um pouco como faziam os filhos de Serendip.

Em crônica anterior, havia mencionado a ausência de buquinistas nas proximidades de meu percurso e também a presença de uma única quitanda. Mas a situação mudou. Agora temos também uma fruteira.

Começou em uma esquina com algumas pilhas de engradados carregados de frutas e verduras, em frente a um edifício residencial; logo mudou para a outra rua, na mesma esquina, mas ao lado do jardim do mesmo prédio, para não obstruir a entrada. Algumas semanas depois instalou-se mais abaixo, na mesma rua, frente ao extenso muro de um terreno baldio. Estendeu, à guisa de teto, uma lona sobre os hortifrútis que traz da CEASA, e assim está ganhando a vida seu João, cujo nome escutei de um de seus fregueses, em geral as donas de casa que cedo vão fazer sua feirinha.

Gosto dos mamões. Os vendidos aí quase sempre estão no ponto. Pois outro dia, fui procurar, e não tinha. Aliás, não tinha quase nada. Seu João estava se desculpando pelas caixas vazias e, desolado, explicava que a falta das verduras e das frutas era responsabilidade sua. Tivera de atender sua esposa que sofrera um infarto e ficara sem tempo para providenciá-las. Voltei no dia seguinte e os engradados estavam abarrotados: cenouras, alfaces, rabanetes, bananas, tinha de tudo e, claro, também mamões. Quando veio atender-me, aproveitei para perguntar-lhe da esposa. Estaria melhor? – Sim, respondeu-me, colocaram três molinhas nela e está como nova. Logo terá alta, disse ele, em um tom que não era exatamente de alegria, mais parecendo o boletim de alguém satisfeito por ter resolvido um problema. Sim, era isso, parecia satisfeito. A verdade é que esse curto diálogo abriu-me a possibilidade de, mais adiante, ouvi-lo um pouco mais. Aconteceu dias depois. Estava de passagem pela banca e ouvi duas moças perguntando-lhe por uma determinada rua do bairro e pareceu-me que sua resposta, ao orientar-lhes o caminho, estava muito complicada. Meti-me na conversa e, ao ouvir claramente o nome da rua buscada, constatei que sua explicação estava correta, e confirmei-a. Foi então que seu João, ufano de sua história de vida, saiu-se com esta: - Eu tenho o mapa de Porto Alegre na minha cabeça, todo ele; dirigi um táxi por muitos anos. Minutos depois, quando voltei a passar por sua barraca, agora vazia, na segunda volta de meu périplo, estendi a conversa com ele: - Então o senhor já foi taxista? - Sim, respondeu-me. Já dirigi táxi, ônibus e até lotação; não esses de agora, com ar condicionado; dirigia outros que havia anos atrás... Um filme começou a rodar, rapidamente, em minha memória, e perguntei-lhe se, por acaso, seriam aqueles que saíam da Praça XV. Com sua confirmação, emendei nova questão: — E, por acaso, o senhor lembra qual carro dirigia? — Sim, sim, continuou, agora com um quase sorriso, era um Lincoln, 1946.

Meu Deus! Seu João, quem diria, deveria ser mais velho do que eu. Quem sabe teria sido um dos motoristas que me levava para casa, na Azenha, no fim daquelas noites em que vinha ao cinema. Aqueles automóveis eram chamados de lotação porque não tinham horário fixo, saíam quando lotados. Eram velhos, mas inteiros. Quem ia chegando no ponto de partida, atrás da Praça XV, ia logo tomando acento naquele carro que tinha as portas abertas. Eram dois lugares na frente, ao lado do chofer, quatro no banco de trás e mais três passageiros em um banco extra, colocado entre os dois. Logo lotavam e partiam. Seu João se lembrou de mais algumas coisas, mas eu, tomado pela surpresa, deixei-me levar para a Azenha. Enquanto a roda girava, lembrei-me do apartamento em que morava com outros colegas que também tinham vindo estudar na Capital, dos bondes que tomava para ir ao Centro, e depois, para voltar, mais tarde, quando os tramways já haviam sido recolhidos, dos lotações. Por estas coisas que parecem absolutamente sem motivo, veio-me a lembrança o dia em que, antes de tomar acento no Lincoln, de volta para casa, eu havia ido assistir à estreia do premiadíssimo Les Amants, do Louis Malle. Imaginem que precisei mostrar a carteira de identidade ao porteiro que insistia em não acreditar nos meus dezoito anos exigidos pela censura. Mas valera a pena! O sorriso de Jeanne Moreau, sua paixão sobrenadando ao tédio, as insinuações... Com a cortina do cinema, abria-se um novo mundo para mim, e era preciso estar preparado para ele.

lots

Janeiro, 2023.