Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

 

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ALGUNS PRESSUPOSTOS
PARA A COMPREENSÃO
DOS DISTÚRBIOS EMOCIONAIS



Luiz-Olyntho Telles da Silva

Senhoras e senhores


Aceitem meu reconhecido agradecimento pelo convite. Iniciativas, como esta do IARGS, preocupadas com o entranhado do homem, sempre me emocionam. E quando a chamada vem por meio de uma amiga tão querida, como a Dra. Helena Ibañez, torna-se irrecusável. Entre as tantas heranças recebidas de meus pais, a amizade da Dra. Helena é uma das mais queridas. Faço essa menção porque pretendo falar-lhes de heranças.

Antes de prosseguir, uma palavrinha sobre nosso método de trabalho: procurarei fazer um esboço geral do tema e depois discutiremos juntos as questões impostas pelo dia a dia das atividades de cada um de vocês. De acordo?

Pois então...

Se quisermos embrenhar-nos pelos penetrais da alma humana, temos de reconhecer na linguagem o melhor instrumento para tal. E a língua falada por nós é uma herança. Nós a herdamos de nossos pais, mais especificamente, talvez, de nossa mãe. Por isso a chamamos de língua materna.

Para quem fala, falar é uma coisa tão natural que até parece a gente já nascer sabendo. Mas não é assim! Todos sabem que, ao nascerem, os bebês ainda não falam. Pouco a pouco é que vão sendo inseridos na linguagem e, quando se vê, lá pelos dois anos de vida, já estão falando! Neste entretempo, é preciso observar que a mãe e o nenê já se comunicam. As mães, em geral, sabem interpretar quando o choro é de fome, quando é devido ao desconforto provocado por fraldas sujas ou mesmo por alguma dor, e chega um tempo em que os balbucios querem dizer mamã e papá, não é mesmo? Contudo, sublinhemos: são interpretações! Apenas interpretações. Mas nem por isso menos importantes. Ao contrário. É assim que se forma a linguagem, e mais, esta será sua estrutura básica: fonação e interpretação. Lembram quando, na escola, o professor nos mandava fazer interpretação de textos? Depois de já termos aprendido a separação das sílabas e a sua junção em sofisticadas nuances como, por exemplo, em Ivo viu a uva (notem a iteração consonantal), ele pretendia agora nos propor uma ampliação do vocabulário, requisito primeiro quando é preciso falar do que não se sabe. Quando se estuda epistemologia, uma das primeiras coisas que se aprende, quando se trata da descrição de um objeto desconhecido, é começar dizendo o que ele não é. É um método bem simples e lógico: para ir ao desconhecido, parte-se do conhecido. E o primeiro conhecimento, no nosso caso, tem de ser a língua. Eis aí nossa primeira dificuldade!

Talvez os advogados tenham sido os primeiros a se defrontarem com os problemas daí advindos: o que um diz não é o que o outro escuta! Uma outra interpretação do que um diz parece ser sempre possível. Daí a necessidade de se escolher bem as palavras para expressar o que se quer dizer, mormente quando se trata da elaboração de uma teoria. Vejamos, por exemplo, a dificuldade enfrentada por Bleuler ao criar a expressão esquizofrenia. Ele havia observado casos em que diversas funções psíquicas apresentavam-se separadas, como nas alucinações, e o sujeito não as reconhecia. Influenciado por Freud, como ele próprio admitia, constata haver, de fato, uma separação, uma clivagem, uma Spaltung, como se diz em alemão, mas, como o Freud que ele aceitava era um autor de segunda mão, digamos assim, mediado por Jung, ele pensa que a divisão é no espírito. É assim que ele recorre aos verbetes gregos σχίζω e ϕρήν, o primeiro com o sentido de fender, clivar, enquanto o segundo,  ϕρήν, primariamente, refere-se à membrana que envolve órgãos, como o fígado, as vísceras, o coração. E é do coração que, secundariamente, passa a conotar também a alma, a inteligência, o pensamento e a vontade. Diz-se ϕρενιτιάω para quem está frenético, agitado; e à própria loucura, ao delírio, os gregos dizem ϕρενῖτις. No final, o termo, ainda que amplamente adotado, é vago. No nosso português, espírito tem, digamos assim, um amplo espectro: diz da alma e diz também da inteligência, no sentido de inter legere, de ler nas entrelinhas, como fez Montesquieu ao escrever O espírito das leis. E com isso, caímos outra vez na questão da interpretação.

Mas o que importa disso tudo é que este mecanismo da clivagem, da Spaltung, tem mesmo uma grande importância no funcionamento do aparelho psíquico. Se Freud utiliza o conceito de uma forma descritiva para distinguir as instâncias psíquicas, tanto na primeira como na segunda tópica (consciente, pré-consciente e inconsciente, e depois eu, isso e supereu), sob seu aspecto dinâmico é que ele se torna mais interessante, pois a clivagem pode ser mesmo dentro do próprio eu, possibilitando a existência de duas, ou mais, atitudes psíquicas diferentes, até opostas e independentes, como se vê na neurose histérica, por exemplo. No campo da normalidade temos um sujeito que observa e outro observado. Mas há ainda outra clivagem, tanto descritiva quanto dinâmica que opera entre o eu e a realidade. Nós a encontramos, de forma marcada, tanto no campo das perversões como no campo das psicoses.

Paradoxalmente, o sujeito precisa estar separado da realidade, mas também precisa estar próximo dela. Sem a separação ele está condenado a uma alienação permanente e, sem a proximidade, não terá como percebê-la! Uma primeira separação dá-se pelo corte do cordão umbilical e quando o mesmo não é devidamente clampeado, se me permitem a metáfora, daí começam os problemas. Por isso comecei falando da importância da linguagem: uma vez nascido, entre o bebê e o mundo começam a interporem-se palavras. Elas, as palavras, são o instrumento do distanciamento entre o sujeito e o mundo. Para o mundo orgânico, intrauterino, o cordão umbilical era suficiente como meio de comunicação entre o feto e o mundo; porém, parido, no mundo da luz, recursos mais sofisticados são exigidos para sua sobrevivência. Diferente dos outros animais, capazes de se proverem desde o nascimento, Hegel diz que o filhote do homem é jogado, geworfen, no mundo em estado de derrelição. E, abandonado à própria sorte, ou não sobrevive, como em geral acontece, ou, se sobrevive, não se hominiza! Existem alguns casos conhecidos de crianças abandonadas nas florestas e criados por animais; não falam, comportam-se como as feras adotivas e dificilmente passam da puberdade.

Como se pode compreender, para entrar no mundo da luz, no mundo da cultura, a educação tem um grande papel, e um papel, eu ousaria dizer, o mais das vezes descurado. Porque não se trata apenas de ensinar o b-a-bá. O modo como se faz isso é fundamental para o sucesso, e trata-se de um método envolvendo aceitação, compreensão, estímulo, carinho e também a visão de mundo, englobados aí os ensaios de respostas alcançados pelos pais às perguntas fundamentais: quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?

A impossibilidade de dizer de nossa origem abre as mais diversas possibilidades, entre elas, a da não aceitação da realidade. Parece difícil aceitar que a mãe não seja tudo, nem toda. Freud dirá, nesse caso, que o recusado, primordialmente, é a castração, a castração materna! Os casos de fetichismo, protótipo das perversões, mostram bem essa recusa, essa Verleugnung, para usar sua expressão. A relação conflitada do sujeito com a realidade tem então a seguinte característica: ele sabe como é a realidade, mas mesmo assim trata-a como ele imagina que ela seja.

As neuroses, de certo modo, são o oposto das perversões. Se tomarmos como exemplo as fobias, veremos isso claramente. Freud dizia que elas são o negativo das perversões. O sentido deste negativo, é preciso que se diga, é o mesmo do campo da fotografia, a qual, antes de alcançar sua etapa final, positiva, tem de passar por uma fase negativa, uma etapa que hoje, com as novas câmeras digitais, nem se nota. Mas não faz muito tempo todos sabíamos disso, quando tínhamos de pegar o celuloide dos negativos para serem revelados. Entre a perversão e a neurose dá-se o mesmo processo: o que aparece de forma detalhada, e mesmo colorida, na perversão, permanece obscura na neurose. E aqui, a esse obscuro chamamos de inconsciente por efeito da repressão, da Verdrängung, como dizia Freud. Reprimidas (ou recalcadas) tendem a serem as representações das pulsões quando o prazer por elas proporcionado ameaça a provocação de desprazer em relação a outras exigências, em geral a outras exigências provindas do supereu. Embora a repressão seja um mecanismo sempre presente, ela não é completamente exitosa e eventualmente permite um retorno dos elementos reprimidos, seja na forma de sintomas, de sonhos, de esquecimentos, erros, pequenos descuidos, enfim, de todos estes pequenos desarranjos que Freud batizou como psicopatologia da vida cotidiana. Agora, quando se trata de compreender o funcionamento de modelos específicos de neurose, temos de considerar também mais alguns mecanismos, tais como a conversão para a histeria e o deslocamento para a neurose obsessiva, essa que hoje o DSM V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) chama de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo). Assistimos aqui a um peculiar destino da pulsão.

Permitam-me voltar um pouco. Antes de ir em frente, é preciso esclarecer, ainda que minimamente, o que é uma pulsão. Até bem pouco tempo muitos, ao ler a obra de Freud, a confundiam com o instinto. O Freud que então se conhecia nos era apresentado mediado pela língua inglesa, segundo a compreensão de James Strachey, que traduziu tanto o Trieb quanto o Instinkt freudianos pelo mesmo instinct inglês. Quando Freud utiliza o termo Instinkt, ele o faz, invariavelmente, para referir-se aos impulsos herdados, próprios do animal, enquanto a Trieb, a pulsão, ele a caracteriza, antes de tudo, como um conceito. Trata-se de um requerimento teórico; trata-se de um conceito limítrofe entre o somático e o psíquico e, mais, quando esta pulsão, advinda de algum estímulo somático, penetra no aparelho psíquico, ela o faz, de forma bífida, como representação coisa e como representação afetiva. O primeiro porto destas representações, no psiquismo, diz Freud, é sempre o inconsciente e, para alcançarem o consciente, a representação coisa precisa transformar-se em representação palavra. A importância da disjuntiva é a seguinte: enquanto a representação coisa pode sofrer a ação da repressão, a representação afetiva mostra-se imune a tal barreira. Assim, quando reprimida a representação coisa, a representação afetiva fica livre, livre, leve e solta, para dizê-lo de um modo poético. Livre, ela pode então, através de um deslocamento, enlaçar-se a qualquer outra representação palavra que se lhe pareça, constituindo assim o que se chama de um falso enlace. Exemplo clássico são as neuroses das donas de casa: por não suportarem a imundície, querendo ver tudo limpo, estão sempre com a mão na sujeira. A manifesta necessidade de ordem exterior diz de uma desordem interior. Há uma falha, pelo menos, para não dizer mais, na hierarquia de valores. Se o desejo que move o histérico é sempre um desejo insatisfeito, o que acomete o obsessivo é da ordem do impossível! Para não encontrar o desejado prazer, o histérico pode desenvolver uma paralisia, alguma anestesia e mesmo uma cegueira que o mantenha sempre insatisfeito; quando qualquer ato involuntário desordena as prateleiras de um obsessivo, a ordem de seus bibelôs, a arrumação das gavetas, seu mundo desanda! Assim, o que parece ser um conflito com o mundo externo, na verdade se trata de um conflito intrapsíquico, embora não possamos deixar de considerar que o motivo do conflito surge da percepção, por parte do sujeito, do mundo que o cerca.

Na psicose também acontece algo parecido, mas com uma estrutura diferente: em vez de repressão ou recusa teremos um repúdio, uma rejeição de representações insuportáveis, antes mesmo de serem integradas no inconsciente do sujeito. Freud descreve essa situação em seu estudo sobre o homem dos lobos, em particular ao se referir a uma alucinação que o sujeito tinha tido aos cinco anos de idade. A menção havia sido a uma precoce rejeição, uma precoce verworfen da castração. Quando Jacques Lacan traduz esse termo, ele recorre a uma expressão de raiz nitidamente jurídica: a forclusão. Trata-se, como bem sabem, da privação de uma faculdade ou de um direito, por não executá-los no tempo devido. E a consequência da não integração de certas leis fundamentais na estrutura psíquica não faz com que o sujeito as ignore e sim que não as considere como suas. Sabemos que a cabeça das crianças é povoada dos mais terríveis monstros, capazes de assustar a qualquer um. Como, de algum modo, os pais sabem disso, tratam de, antes de dormir, apaziguá-las contando histórias. João e Maria abandonados na floresta; a bruxa que come criancinhas; o lobo voraz; são todas histórias horripilantes que buscam sossegar a fantasiosa produção infantil. Mas se um mecanismo de limitação não for instalado a tempo, os monstros não se acalmam e, em vez de serem reconhecidos como produção própria, são percebidos como vindos de fora, da realidade, gerando os terríveis sentimentos de perseguição, típicos da paranoia, o protótipo das psicoses.

Outrora se dizia que a paranoia derivava de problemas de audição: um tanto surdo, sem entender bem o que se passava à sua volta, o sujeito ficava desconfiado e começava a elaborar suas próprias teorias. Se remontarmos a uma primitiva antiguidade, imaginando nossos antepassados nas cavernas, inaugurando a compreensão dos primeiros ruídos, não estará demais supô-lo desconfiado. A cada vez que não conseguia compreender um novo som, suas orelhas por certo ficavam em pé! A paranoia deve ter sido um dos elementos indispensáveis à sobrevivência de nossa frágil espécie. Quando Freud estuda esse quadro, através do relato das memórias de um jurista, o Dr. Daniel Paul Schreber, este que se acreditava ser a esposa de Deus, o mestre vienense destaca a importância da latente homossexualidade, distinguindo três formas de paranoia através da contradição de uma mesma frase: — Eu amo um homem! Uma frase que, na verdade, teria de ser escandida assim: — Eu, um homem, amo outro homem. A primeira contradição se dá por uma alteração no verbo: — Eu não o amo, eu o odeio – e o odeio porque ele me persegue. Essa seria a base do delírio de perseguição: o odiado perseguidor foi antes um ser amado!  Uma segunda contradição se dá por uma alteração do artigo definido: — Eu não o amo, eu a amo. E como nada disso por ser assumido como seu, a frase, projetivamente, passa a ser ela me ama. Então eu a amo porque ela me ama! E assim se configuram as bases da erotomania. A terceira contradição será pronominal: — Eu não o amo, ela o ama. Essa a base dos delírios de ciúmes. Agora, na base de todos os delírios está sempre uma ideia de grandeza. É por ela que o sujeito se coloca no centro das atenções, seja da traição, da paixão, ou da perseguição. Mesmo se o sujeito se disser uma porcaria, há de se considerar a maior porcaria do mundo! Parece estar em jogo sempre um ideal.

Normalmente as pessoas sabem que o ideal, por definição, é um lugar em que não se está. Desejado, almejado, porém distante. A distância entre o atual e o ideal é uma extensão cuja superação é sempre buscada, mas, como o horizonte, está sempre um pouco mais adiante. É entre esses dois polos que se dão os transtornos ditos bipolares, uma nova nomenclatura do DSM para a antiga psicose maníaca-depressiva. Quando o sujeito imagina viver o ideal, define-se essa fase como maníaca e quando sua posição atual se mostra muito distante da ideal, caracteriza-se a depressão, tanto maior quando mais distante do ideal.

Antes de terminar, queria propor ainda o tema da maior ou menor periculosidade para o próprio sujeito. Para isso é preciso saber o tipo de estrutura em questão: tratando-se de uma neurose, marcada pela repressão, a depressão pode até ajudar o sujeito a melhor se perceber. A depressão faz parte da vida. Como reza um antigo ditado: Post coitum omne animal triste est. E o mesmo parece suceder às grandes realizações. Mas quando a depressão é auspiciada pela forclusão, causa da recusa da castração, o risco de morte precisa ser considerado.

Como vemos, trata-se sempre da linguagem: por sua carência, adoecemos e, por seu uso adequado, podemos nos curar. Afinal, como dizem as escrituras: — Diga uma só palavra e sua alma será salva!













Conferência pronunciada
a convite do
Grupo de Estudos do
Direito de Família do
Instituto dos Advogados
do Rio Grande do Sul
(IARGS)
Em 16 de junho de 2015.