UMA ÁRIA PARA A H
ISTÓRIA DO BRASIL
Uma contribuição ao Colóquio nacional sobre
A cordialidade:
A crítica da ambigüidade na cultura, na política
e no cotidiano
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Fernand-Anne Piestre: Caïn – Museu d’Orsay
UERGS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL
UNIVERSIDADE ABERTA
13 e 20 de julho de 2005
Auditório do Memorial do Rio Grande do Sul
Mesa Redonda com a participação de
Lawrence Flores Pereira (Universidade Federal de Santa Maria);
Kathrin Holzermayr Rosenfield (Universidade Federa do Rio Grande do
Sul); Júlio Bernardes (Universidade Estadual do Rio
Grande do Sul); João César de Castro Rocha (Universidade
Estadual do Rio de Janeiro); Walter Carlos Costa (Universidade
Federal de Santa Catarina); Mário Hélio Gomes de Lima(Fundação
Joaquim Nabuco, Recife); Miguel Reale Júnior (Universidade
de São Paulo); Márcio Seligmann-Silva (Universidade
Estadual de Campinas); Judith Martins-Costa (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul); Luiz-Olyntho Telles da Silva (Psicanalista
em Porto Alegre); Francisco Marshall (Universidade Federal
do Rio Grande do Sul).
R e s u m o
O trabalho
consiste em uma leitura de alguns pontos do capítulo 5 de Raízes
do Brasil, de S. Buarque de Holanda, e de associações
daí decorrentes. Desde a proposta de confronto entre família
e Estado, passando pela concorrência entre os cidadãos, o
conceito de cordialidade é examinado desde a Antígona
de Sófocles aos dias de hoje, com uma incisão no período
marcado pela Segunda Guerra Mundial. Depois de caracterizar a cordialidade
como uma característica comum a todos os povos, ensaiando seu posicionamento
como uma ligação entre as pulsões de vida, amorosas,
e as de morte, destruidoras (conforme descritas por Freud), o autor destaca
a originalidade de S. B. de Holanda em haver reconhecido esta característica
no brasileiro, condição primeira no caminho de construção
de uma independência simbólica. Buscando exemplificar uma
das faces desta cordialidade do brasileiro, o texto finaliza com uma breve
e particular leitura da Ópera do Malandro composta por Chico
Buarque de Holanda.
Es wird den Menschen offenbar nicht
leicht, auf die Befriedigung dieses ihrer Aggressionsneigung zu verzichten.1
SIGMUND FREUD,
Die Unbehagen in der Kultur (1930[1929])
A preocupação
com a cordialidade é uma preocupação com a ética,
e este Colóquio é uma sacudida em direção ao
acordar, se me permitem o trocadilho. Quem nos sacode é a Profª.
Kathrin Holzermayr Rosenfield, e depois de acordados não podemos
permanecer na indiferença.
Isto me lembrou de um certo diálogo entre Costa-Gravas e o
Prefeito de uma cidadezinha do norte francês, ao final das recentes
filmagens de Le Couperet – um filme sobre o desemprego para a televisão
francesa. Quem conta a história é Fernando López em
La Nación: Costa-Gravas, horrorizado com as palavras ao mesmo tempo
sinceras e amargas – justamente por isto terríveis
– do Prefeito, dizendo que hoje Já não se pode fazer nada,
teria feito o seguinte comentário: A indiferença é
o principio da morte. Vejo ao redor de mim pessoas que, com a experiência,
tornam-se um pouco cínicas: são os que dizem que as coisas,
de qualquer modo, nunca mudam. Eu resisto e trato de fomentar esta rebeldia.
– É assim que escuto a sacudida proposta da Profª. Kathrin:
um anátema à indiferença. É desde aí
que sua proposta faz laço social e é por isto que eu lhe agradeço
o convite. Agradeço por me levar a pensar nesse conceito estranho
ao campo da Psicanálise, um conceito no qual eu nunca havia me detido
até então.
Estamos preocupados com a ética e ela não é a
moral. Quando penso em ética penso nas conseqüências dos
atos, do ethos, nossos costumes, nossa casa, nossa pele. Aquilo que
fazemos tem sempre uma consequência, queiramos ou não, saibamos
ou não!
Eu lhes propunha então o trocadilho acordar, com o duplo
sentido de tirar do sono / acabar com a diferença. Pois para
acordar, no sentido de despertar, nada melhor do que
o teatro. Trata-se de possibilitar a um maior número possível
de pessoas os instrumentos necessários para a construção
da crítica; por isto o teatro.
No texto princeps de nossas discussões, eu diria o capítulo
5 de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda,
O homem Cordial,2 ele começa pelo teatro, com
a Antígona de Sófocles. Sua intenção
é a de examinar o conflito existente entre os valores do Estado
e os valores da Família. Estarão lembrados da montagem desta
peça aqui em Porto Alegre por iniciativa - tanto quanto eu sei -
da Profª. Kathrin, sob Direção do Luciano Alabarse sobre
um texto traduzido pelo Prof. Lawrence Flores Pereira. Não é
difícil imaginar uma linha de base para o nosso Colóquio
sobre a cordialidade partindo daí com uma aguda incisão no
período da segunda guerra mundial, assinalada pela obra de Thomas
Bernhard, especialmente sua Praça dos Heróis cuja
apresentação poderemos assistir já a partir de amanhã
no Teatro São Pedro. É aí, na Heldenplatz, que
Hitler, depois de ter pressionado em 12 de março de 1938 seus compatriotas
ao Anchluss,3 à unificação
com a Alemanha, profere em 02 de abril seu discurso triunfal sendo saudado
efusivamente por uma multidão de Austríacos simpatizantes.4
Examinemos antes um pouco mais o nosso trocadilho, acordar.
Ele tem a mesma etimologia da epigrafada cordialidade, ambos originam-se
de cor, cordis. Interessante que para o vocábulo acordar,
o nosso tradicional Aurélio – o outro Buarque de Holanda – nos dá, como primeiro sentido
a conotação de Tirar do sono, despertar, chamar, enquanto
a conotação de conciliar, acomodar – própria da cordialidade – irá aparecer como sua décima
primeira posição. Já o inestimável Houaiss
nos dá duas entradas para o vocábulo: a primeira com o sentido
de fazer desaparecer diferenças e, ao contrário do
Aurélio, para ele o sentido de fazer sair do sono é
a sua segunda entrada. Como se pode ver, desde aqui, os acordos nunca são
fáceis. Interessante é que a etimologia de acordar e de cordial
remetem ao antepositivo cord, derivado também da mesma raiz
latina, com o significado de coração como sede da alma,
da inteligência e da sensibilidade.
Minha proposta de trabalho será então a de fazer algumas
associações a partir de alguns pontos desse quinto capítulo
de Sérgio Buarque de Holanda desde a minha disciplina e tentar algumas
considerações.
Seu texto me parece indicar uma divisão em quatro partes: uma
introdução em que esboça uma visão ideal da
diferença entre a família e o Estado; depois a substituição
da ordem familiar por princípios abstratos e sua conseqüente
crise; a terceira parte está dedicada ao exame da persistência
da estrutura familiar no estado brasileiro e, por fim, o legado daí
resultante: a cordialidade, sua função e características.
Estamos em 1936, período
de tensão em todo o mundo, e Raízes do Brasil começa,
não por acaso, eu diria, com o confronto de nosso país com
a Europa.5 Confronto será
o recurso utilizado pelo autor ao longo de seu livro. No capítulo
5 ele confronta o Estado com a Família, dizendo que o primeiro não
é uma ampliação do segundo. Sua utilização
de uma negativa como forma retórica já no início de
seu texto só faz valorizar o verbo utilizado para caracterizar a passagem
da Família ao Estado, o verbo transgredir: é pela transgressão
da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado, nos diz ele.
A transgressão, definidora de uma passagem de um lugar a outro,
diz também da violação de um limite, de uma invasão,
por fim, de uma agressão. Seu exemplo da incompatibilidade entre
os dois princípios é trágico, e o modo como ele nos
conta o núcleo do enredo não é sem dubiedade, obrigando-nos
a examinar a tragédia com mais atenção. Ele diz aí
que Antígona, ao sepultar Polinice, contra a ordem do estado, atrai
sobre si a cólera do irmão, que não age em
nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade [...] da pátria.
Ora, quem aí não age, supostamente, em nome próprio,
é Creonte, tio de Antígona e não seu irmão!
Estamos em pleno ciclo tebano e a tragédia em exame é a tragédia
da família de Édipo, de quem Antígona é, ao
mesmo tempo, filha e irmã; mas Creonte é irmão da mãe
de Antígona, Jocasta, e por isso o interino e claudicante Regente
de Tebas. E há ainda um agravante a mais, se queremos examinar este
confronto entre a Família e o Estado: não se pode esquecer
que o filho de Creonte, Hemon, está noivo de Antígona e, ao
saber da morte da noiva, se traspassa morrendo junto dela; a esposa de Creonte,
Eurídice, por sua vez, ao saber da morte do filho também se
suicida; e ao tomar conhecimento de tudo isto, Creonte também quer
morrer. Note-se que é só depois de Creonte reconhecer
sua funesta resolução, sua
, é só depois de ele reconhecer seus desacertos – como traduz Donaldo Schüler – que o Corifeu acerta: Tudo indica
que tarde reconheceste a justiça – uma frase para se pensar,
eu diria.
Mais adiante, no que eu considerei a parte dois de seu texto, S. Buarque
de Holanda, ainda que sem aludir diretamente á tragédia,
criticará a ereção da concorrência entre os
cidadãos como valor social positivo. Sim, a concorrência
entre os irmãos é algo muito complicado, embora isso não
queira dizer que nunca é produtivo. A própria concorrência
entre Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ao que tudo indica,
deu resultados positivos, embora a citada frase do último - criticando
o valor positivo da concorrência - me faça pensar que isso não
tenha sido sem um custo. O mesmo se pode dizer da concorrência entre
S. Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo, 6 quando o último registra a inclusão
de seus comentários na segunda edição de Raízes
do Brasil. Mas o que me parece importante destacar é a diferença
dessas citadas concorrências, das quais eu diria simbólicas,
porque centradas na linguagem, de uma outra centrada no imaginário,
no especular, situação da qual todos conhecemos um exemplo
bem típico. Refiro-me aquele clássico duelo final dos velhos
filmes de faroeste em que um diz para o outro: Este mundo é pequeno
demais para nós dois. – Pois essa me parece uma frase muito verdadeira.
Esse mundo no qual os eternos Etéocles e Polinices, os eternos Caim
e Abel vivem, tem que ser mesmo muito pequeno. Como eles não sabem
que cada um vive no seu próprio mundo, a imaginária intrusão
de qualquer outro roubar-lhe-á, necessariamente, não apenas
a metade do espaço, mas sim todo ele. Hesíodo dedicou-se
à poesia possivelmente para escapar da briga pela divisão
de terras com seu irmão Perses. Essa é uma solução
muito usual: um irmão segue sendo fazendeiro, cuidando dos negócios
da família, enquanto o outro vai ser doutor; são tentativas
de se criar outros mundos para viver. Assim que dizer da concorrência
apenas positiva ou negativa não me parece ter muito sentido. Antes
de qualquer coisa precisamos saber se ela é simbólica ou imaginária
e isso porque parece haver uma concorrência intrínseca ao ser
humano, uma concorrência da ordem do real, como diria Lacan, uma
concorrência impossível que não cessa de não
se inscrever e que tem de vir à tona de um modo ou de outro, seja
pelo imaginário, seja pelo simbólico, e isto em todos os níveis,
sejam eles internacionais, estaduais ou familiares. Fundamentalmente,
o que é preciso ter em conta é que toda esta tragédia
de Antígona deriva de uma transgressão de Édipo
ao cometer parricídio e incesto. A importância disso consiste
no fato de mostrar que a família é constituída desde
uma lei mais ampla, uma lei que diz respeito à coletividade. Assim,
diria que não se pode pensar no conceito de família antes
do conceito de sociedade. São interatuantes, como nos mostrou Freud
e, depois, Lévi-Strauss, com as suas Estruturas elementares do
parentesco.
Vejamos um pouco mais sobre essa concorrência. Freud a considera
presente em um dos primeiros atos de civilização: o controle
sobre o fogo. Esta realização extraordinária
e sem precedentes (para utilizar suas próprias palavras)7, a qual ele mesmo reconhece ter todas
as características de uma conjetura fantástica, consistiu
simplesmente na renúncia a um desejo infantil de extinguir
o fogo com um jorro de urina. Como testemunhas, Freud invoca o gigante
Gulliver, em Liliput, e o Gargântua de Rabelais. A visão
fálica das línguas de fogo parecia insuportável e
era preciso apagá-las, constituindo tal ato em uma relação
homossexual. A primeira pessoa a renunciar a este desejo e a poupar
o fogo pôde conduzi-lo consigo e submetê-lo ao seu próprio
uso. Apagando o fogo de sua própria excitação sexual,
domara a força natural do outro fogo – diz Freud. O que aparece
aqui é a importância da renúncia a uma exigência
pulsional. Lembrem que vencido o acordado período de governo,
Etéocles, por exemplo, nega-se a renunciar ao poder em favor de Polinice
resultando esta negação na conhecida tragédia. Se lembrarmos
que a alternação do governo tinha sido uma estratégia
para escapar da maldição paterna e evitar a guerra, podemos
pensar que, uma vez no poder, Etéocles imagina que este o garantirá.
Quando Freud retoma sua teoria pulsional em O mal-estar na cultura,
me parece importante registrar que ele o faz também pressionado
por este mesmo clima de tensão antecedente da segunda guerra mundial.
Depois de publicá-lo em 1930, concluindo-o com a esperança
do triunfo de Eros sobre a pulsão de destruição, já
em 31, fustigado pela então evidente ameaça de Hitler, ele
acrescenta uma derradeira frase reveladora de sua dúvida sobre o resultado.
Mas o que quero ressaltar é que nessa retomada do desenvolvimento de
sua teoria pulsional, depois de começar dizendo com Schiller ser
a fome e o amor os motores do mundo, e depois de reconhecer
a importância da libido e da introdução do conceito de
narcismo, Freud chega aos conceitos de pulsão de vida e de pulsão
de morte, sendo que uma parte desta última é desviada no sentido
do mundo externo – die Aussenwelt – como agressão e destruição.
Mas ambas as pulsões, de vida e de morte, tendem a andar sempre juntas,
em feixes, mescladas nas mais diferentes proporções, dificultando
seu reconhecimento; apenas o sadismo, como pulsão mais visível,
aquela que sempre se destaca, se desintrinca em primeiro lugar e aparece
como um vínculo. Freud diz tratar-se de uma besonders starke
Legierung,8 uma liga particularmente
forte entre as tendências amorosas e a pulsão de destruição.
– Pois o que me parece é que neste vínculo também podemos
situar a cordialidade, como um possível efeito
de uma exigência pulsional. Podemos situá-la aí sob
a égide da aufhebung hegeliana. A cordialidade, aí
colocada, ao mesmo tempo em que supera a agressão, a conserva. Não
seria de estranhar que a polidez fosse a forma lapidada, polida, deste diamante
bruto.
Isto me parece uma coisa importante de reconhecer, que tanto a tendência
ao amor como à destruição fazem parte da vida. Uma
não é sem a outra. A vida precisa tanto da morte quanto a morte
precisa da vida. A presença da morte nos faz valorizar a vida. Mas
não é fácil explicar a um assassino, menos ainda a
um suicida que seu ato louco implica em uma demanda de mais vida. É
muito fácil confundir as coisas. Quem conhece o Caïn de
Fernand-Anne Piestre, mais conhecido como Cormon,9 esta enorme tela de sete metros de
largura, hoje no Museu d’Orsay, lembra de sua figura desolada e solitária,
embora a frente de uma pequena horda, fugindo da presença de Jeová – como diz Victor Hugo em La légende
des siècles [1889] – deserto a fora, depois de ter se sentido
preterido por Deus e culpado seu irmão por seu mal-estar.
Temos exemplos demais de atrocidades realizadas em nome do bem. Tivemos
a oportunidade de escutar aqui a leitura desta impressionante crônica
do Aurélio Buarque de Holanda sobre a exposição dos
restos de Lampião, Maria [já não tão] Bonita
e seus principais companheiros. O cronista parecia estupefato com o ar de
festa desta macabra exposição. Gilberto Freyre10 nos conta da truculência dos
senhores de engenho capazes de mandar assar vivas escravas negras grávidas,
autorizados pelo poder patriarcal. Sabemos, porém, que isso não
é coisa só dos nortistas, também temos nossos causos.
Diria que, entre estes, os que mais atraem nossa curiosidade são
os que contam das degolas nas revoluções de 1893 e 94, entre
federalistas e republicanos – uma distinção que também
não é das mais fáceis de entender –, e também na de 1923. Ficaram
famosas as degolas de Rio Negro, em dezembro de 93, às vésperas
do Natal, período de clássico – para não dizer cínico
nem cordial – armistício. O interessante é
que não se sabe exatamente o número dos degolados e isto
por uma concorrência entre os degoladores que se jactavam de haver
degolado um mais que o outro, o que faziam em meio a risadas. Entre estes
degoladores, que por certo foram vários, destacou-se, contudo, Adão
Latorre, muito possivelmente por ser negro, conforme a opinião do
Dr. Sérgio da Costa Franco e do Dr. Blau Souza que fizeram a gentileza
de me contar um pouco de suas pesquisas. Supõe-se que só ele
tenha matado 300 em um mesmo dia.11 Nestes episódios, com vítimas
de ambos os lados, muitos dos degolados eram mercenários uruguaios
que vendiam seus serviços indistintamente. Para reconhecê-los,
na ausência de documentos identitários, pediasse-lhes para
dizer a palavra pauzinho a qual, por dificuldades de fonação
estavam impedidos de pronunciar; e quando na resposta aparecia o indefectível
paussinho os daqui riam enquanto aplicavam a gravata colorada.
Mas isto não foi invenção nossa. A Bíblia
conta que no confronto entre os galaaditas e os efraimitas, os primeiros
usavam do mesmo recurso pedindo-lhes para se identificar pronunciando
a palavra chibolet, sabendo que seu dialeto só possibilitava
a pronúncia de sibolet. Na impossibilidade da contra-senha
correta, os galaaditas enchiam o vau do Jordão com cadáveres
efraimitas.12
Se eu lembro dessas passagens, é para dizer que o recurso da
cordialidade, não me parece um privilégio brasileiro. Tenho
escutado a Profª. Kathrin dizer que seus patrícios austríacos
também usam o recurso da cordialidade. Pois no período antecedente
a primeira guerra mundial o acordo estabelecido entre a França e
a Inglaterra, com o objetivo francês de escapar do isolamento diplomático
em que era mantida pela Tríplice Aliança da Alemanha,
Áustria-Hungria e Itália, ficou conhecido como entente
cordiale. O recurso da cordialidade parece mesmo estar para todos.
A originalidade de S. Buarque de Holanda está em dizer que
o brasileiro é cordial, está em dizer que nós somos
cordiais e que o coração abriga tanto o amor como o ódio.
Amar bilaquianamente a terra em que se nasce não implica na adoção
de nenhum catarismo.
S. Buarque de Holanda cita um sociólogo norte-americano dizendo
ter se transformado o empregado em apenas um número. Pois é!
E que lhes parece o fato de Costa-Gravas ter utilizado como título
de seu filme o signo, penso que tenho de dizer assim – o signo couperet?
Couperet se traduz ao português por cutelo,
instrumento para cortar carnes em geral e, em particular, a cabeça
dos condenados. Se entendermos o signo como aquilo que significa algo para
alguém, temos de supor que, só por ler a palavra, as pessoas
já sabem do que se trata: desnecessários pedaços de
carne dourando ao sol de segunda-feira.13
Para S. Buarque de Holanda a cordialidade é uma máscara
através da qual o indivíduo consegue manter sua supremacia
ante o social, e isto é tanto mais importante quanto ele necessite
desse social para libertar-se do pavor em viver consigo mesmo. Como
bom americano – diz o autor – no brasileiro é a parcela social, periférica,
a que mais importa. Pois lembrei de um outro estudo desta mesma época,
de 1936. Trata-se de um estudo de Kurt Lewin, um Psicólogo Social
nascido na Alemanha, em 1890, e que depois trabalhou por muitos anos nos
Estados Unidos, até sua morte em 1947. Este texto faz uma comparação
entre os alemães e os americanos, tratando em particular desta questão
da distância social entre os indivíduos e me parece concordar
com Buarque de Holanda.
K. Lewin caracteriza
a personalidade de um e de outro como formada por cinco círculos
concêntricos, dizendo que enquanto o alemão tem apenas uma
camada periférica, social e quatro camadas íntimas, o americano
tem quatro camadas sociais, externas e apenas uma íntima. Os testemunhos
que ele arregimenta são arquitetônicos: as casas com alto
muro e portão chaveado da família alemã por contraposição
a casa sem muro e sem chaves nas portas (um pouco como nos contou o M.Scliar
do Bom Fim de sua juventude). A conseqüência é serem
os americanos aparentemente mais sociáveis e parecidos uns com os
outros, mas em compensação, por ocuparem camadas superficiais,
as relações se mantêm superficiais e, como diz K. Lewin,
após anos de relações relativamente
íntimas, os amigos rapidamente feitos se despedirão com a
mesma facilidade com que o fariam ao cabo de poucas semanas de conhecimento.14 Um número maior de camadas centrais,
íntimas, parece ser uma maneira plástica de representar uma
menor necessidade de apoiar-se nos outros, propiciando maior independência,
mas o que se vê, por exemplo, no episódio da Heldenplatz,
é que uma vez penetrado nessas camadas mais intimas não é
difícil fazer que a hostilidade para com o vizinho se transforme
em hostilidade para com uma raça em particular. Isto nos mostra
que a independência que importa não basta ser imaginária,
como grande parte das independências protéticas que andam
por aí a depender sempre de garantias externas. A independência
precisa tornar-se simbólica. Sem ela, tanto os superficiais quanto
os, digamos, profundos podem ser facilmente convencidos. Quero dizer com
isto, entre outras coisas, da necessidade do reconhecimento da separação
do outro para o advento da independência simbólica, e que
para isto não basta a cesura do cordão umbilical e nem mesmo
as melhores intenções.
Para isso, o primeiro
passo é o reconhecimento de nossa própria participação
no processo no qual estamos envolvidos. No caso, este: os brasileiros,
somos cordiais.
Na esperança
de dizer com mais clareza como penso esse advento a uma independência
simbólica, queria contar-lhes um caso clínico, ainda que
em rápidas pinceladas. Trata-se de uma análise levada a efeito
por Jacques Lacan e relatada pelo próprio analisante – Gérard
Haddad.15
Haddad é um judeu tunisiano a quem o pai tinha votado à
profissão médica. Nascido no período entre as duas
grandes guerras, ele tem muitos conflitos com seus pais e, como conseqüência,
não quer seguir a profissão escolhida pelo pai e nem a religião
da família. Quando procura Lacan ele já é um Engenheiro
Agrônomo com um trabalho por ele considerado interessante nas províncias
subdesenvolvidas da África e o esboço de um romance embaixo
do braço, além de uma neurose obsessiva tangente à
loucura. Já está casado e com problemas conjugais atazanantes
e, devido às suas inúmeras leituras, interessado na Psicanálise.
Já tinha tido uma entrevista com Jean Paul Sartre, que o incentivara
a continuar escrevendo, e também com Louis Althusser que lhe devolveu
o gosto pela ação no comunismo militante. A ação
central de sua análise, no meu entender, consistiu em sua reconciliação
com o judaísmo. Ele, que até então jamais pensara
que a shoah, o genocídio e as perseguições
ao povo judeu tivessem qualquer coisa a ver com ele, termina por visitar
Auschwitz e Birkenau onde conhece as valas onde a cada dia se queimavam
20.000 corpos dos filhos de sua gente. Ele descobre assim que o holocausto
não foi um crime apenas contra o povo judeu e sim contra toda a humanidade.
Entrementes, estuda medicina e torna-se analista vindo a ser reconhecido
como um especialista no Talmude de onde tirou, através das diferentes
técnicas de leitura e interpretação do mesmo, recursos
para melhor qualificar a interpretação psicanalítica.
– É isto! Será que consegui com este curto parágrafo
dizer-lhes o que entendo por independência simbólica? Será
que consigo deixar claro que ao se reconciliar com a religião familiar
ele o faz desde um outro lugar que não o da dependência neurótica?
Que ele o faz desde um lugar novo e original? Pois é por ter conquistado
um lugar destes, novo e original, que um Dvorak é capaz de inspirar-se
e compor uma sinfonia. As soluções são sempre originais
e idiossincráticas.
Mas nós, brasileiros, ainda estamos ocupados com uma crítica
que nos possibilite uma mais efetiva simbolização das relações
do indivíduo com a lei e é neste momento que encontro esta
peça do Chico, filho do Sérgio Buarque de Holanda, a Ópera
do Malandro, uma ópera que põe em cena uma das faces
desta cordialidade do brasileiro e que nos possibilita, se não
entender, pelo menos sentir como o brasileiro enfrenta suas questões
éticas.
Estarão lembrados de que esta ópera está situada
justamente no período central da segunda guerra mundial. Nosso
país mostra-se ambivalente, apoiando primeiro os Nazistas, em 1941,
e depois os aliados, em 42. É nesta atmosfera que ele situa o enredo
da peça. Aí está o malandro, gigolô de prostitutas,
querendo se dar bem. Mas a mulher que ele explora, é explorada pelo
grande empresário também, surgindo daí o conflito.
A solução é entrar no contrabando e amaciar a lei
com um presente discreto. Mas a lei reguladora é venal: como a Geni – não por acaso um travesti (na
leitura do Ruy Guerra) –, ela dá para qualquer um que
a pague. E o empresário pode pagar mais para obter mais, quer dizer,
paga para apagar o malandro, para apagar a concorrência da arraia
miúda. Mas como o malandro quando cai, cai bem, trata de erguer-se
com a ajuda do capital estrangeiro, internacionalizando assim sua miúda
técnica de gigolô: dinheiro em troca de apoio, e assim logo
sonha em abrir um banco nacional com estes estrangeiros capitais, em Minas
Gerais.
Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz.15
Depois que o malandro aparece com
retrato na coluna social, consolida-se através do himeneu com a
filha do empresário.
E então? Tudo certo? Onde está a falha? – Pois eu diria
que na lógica, por querê-la sempre matemática na ilusão
de que basta juntar elementos negativos para obter um resultado positivo.
Se o malandro – que parece uma derivação
do italiano malandrino, com o sentido de salteador, mas
também do latim malandrĭa, uma espécie de lepra (uma
lepra social, sem dúvida) – se ele toma um gole de cachaça,
não paga e dá no pé, isto permite ir empurrando o
problema e engordando as barrigas até lesar o Banco Do Brasil que
então, complicado com os investimentos estrangeiros, inverte rapidamente
o problema até chegar de volta ao garçom.
E quando este vê um desempregado, um ladrão de galinhas, um
malandro, vai logo gritando:
Pega ladrão / Pega ladrão
E o ladrão / Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação.16
Muito obrigado.
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