Luiz-Olyntho
Telles da Silva Psicanalista |
ENSAIOS DE LITERATURA: Apresentação @ |
A ESGRIMA
Luiz-Olyntho Telles da Silva Junho,
2024
Se eu sou esgrimista, me perguntas? Não! Não sou, não.
Uma vez, a propósito, por ter escrito sobre o mergulho, tomaram-me
por mergulhador. Mas não! Também não sou. Quer dizer,
tive algumas experiências, na juventude, mas não o suficiente
para creditar-me o título de diver. O tema, contudo, me diverte;
sempre me fascinou. Leio tudo que me cai nas mãos.
E agora me perguntas se sou esgrimista. Pois a resposta continua sendo não.
A rigor, não! Claro que, quando menino, como qualquer guri, brincava
de capa e espada com os amiguinhos. Éramos, então, cada um
de nós, o próprio Errol Flinn na pele do eterno Capitão
Blood, um pirata lutando pela própria liberdade na coberta de um navio,
uma mão na espada, a outra ao mastro, as velas enfunadas, a bujarrona
soprando em direção às novas aventuras. Contudo, tenho
de dizer, nossas espadas não passavam de espetos de churrasco, feitos
de galhos de laranjeiras (que era para dar um sabor à carne). Com
espadas de verdade, brincamos uma única vez, que me lembre: o pai
de um dos colegas da turma esquecera aberta a porta da Loja Maçônica
que ficava sobre a garagem, nos fundos do quintal de sua casa, e nós,
furtivamente, pegamos as espadas usadas em seus rituais. Mas os sabres eram
pesados, alguns se machucaram e a reprimenda, que não tardou, ficou
na memória de todos, para sempre.
Daqueles dias, ficou o gosto pela leitura. Os romances de aventuras iluminavam
minhas noites. Lembro de meu pai precisar vir ao meu quarto pedir-me para
apagar a luz, às vezes repetidamente. É tarde, dizia-me ele,
sempre paciencioso. Tens que acordar cedo. O colégio não espera.
Mas eu não podia abandonar Scaramouche, em plena Revolução
Francesa, lutando pela liberdade de cidadãos injustamente condenados.
Impressionava-me sua superioridade e seu bom humor. Scaramouche havia nascido
com o dom do riso e a sensação de que o mundo estava louco.
Aliás, esta frase, saída, assim, num repente, da pena de Rafael
Sabatine (1875-1950), tornou-se tão marcante a ponto de ser tomada
para o epitáfio desse grande escritor. Noutras noites, era o Pimpinela
Escarlate, também em plena Revolução Francesa, brandindo
sua espada para resgatar da guilhotina tanto os camponeses como os aristocratas
injustamente condenados. Ah! Eu havia nascido fora do tempo. Os dias heroicos
haviam terminado. A Baroneza de Orczy (1865-1947) bem sabia disso e, por
certo, descrevia essas aventuras para salvaguardar valores que se queimavam
nas chamas da violência ordinária. Sabia-o também o grande
Alexandre Dumas: d’Artagnan era um jovem em busca de um lugar no mundo, e
o mundo era Paris. Mon Dieu! Se começar as relações
com o pé esquerdo é entendido como um signo de azar, para d’Artagnan
foi tudo ao contrário: seus duelos para reparar ofensas e mal-entendidos,
em uma época em que os duelos estavam proibidos, o que significava
duas vezes mais coragem para brigar, resultaram nas melhores amizades que
um jovem poderia ter. Os Mosqueteiros do Rei Luís XIII eram honestos,
destemidos, varonis e sempre lutavam em defesa da honra e da liberdade, e
da lei.
Quando Alexandre Dumas escreveu a história do jovem gascão,
no século XIX, já haviam passado duzentos anos dos acontecimentos
aí descritos. A revolução francesa também já
havia passado, mas a arte da esgrima florescia. Dumas Père (1802-1870),
não por acaso, foi amigo pessoal de Augustin Grisier (1791-1865),
um dos mais importantes Mestres de Armas daquele século e autor de
Las Armas Et le Duel. Os dois, por certo, trocavam informações
sobre suas obras e, é bem possível que discutissem também
as ideias de Edmund Burke (1729-1797) sobre a revolução francesa
(1789). Burke, depois de ter defendido a Revolução Americana
(1776), em sua demanda de independência, criticou acirradamente a decantada
Revolução Francesa, acontecida poucos anos depois, em 1789:
os americanos, esses reivindicavam o apoio da lei, quebrada por uma iniciativa
pessoal do Rei George III, enquanto os franceses estavam demandando – e merecendo
– liberdade para todos e, para isso, indo contra a lei. A luta de meus heróis
dava conta disso.
Foi nesses dias que, pela mão dos ingleses, a esgrima passou de uma
arma para defesa da honra para um sport, e não houve Mestre
de Armas, em toda a Europa, que não abominasse tal decadência.
A esgrima clássica é uma arte em que se empenha
a vida. Acredito que os primeiros a reconhecer-lhe o valor tenham sido os
italianos. Minha crença apoia-se na percepção de Montaigne
ao reconhecer a importância da publicação, em 1553, do
Trattato di Sientia d’Arme, por Agrippa.
Não
estás lembrado?
Sim! Agrippa! O mesmo Camillo Agrippa que propôs a solução
para o transporte do obelisco que está hoje na Praça de São
Pedro, em Roma. Agrippa codificou a esgrima definindo as quatro primeiras
de suas seis posições: a prima, a segunda, a terça e
a quarta, posições que se definem, entre outros movimentos,
pelo lugar do esgrimista em relação ao ferro do adversário
e também do seu próprio e da posição de sua mão,
se está voltada para cima, ou se as unhas estão para baixo,
por exemplo. E pelo modo como o esgrimista desempenha essas posições
é possível, para um especialista, dizer em qual escola se formou.
Digo isso, primeiro porque Don Antonio Marin, ao traduzir o Tratado Completo
de Esgrima, em 1841 – preservando assim a importante obra do Mestre de
Armas francês, Louis Justin Lafaugère –, ajudou-me sobremaneira
a entender um pouco as diferentes posições ao esclarecer os
cento e onze diferentes termos utilizados nos assaltos com florete; em segundo
lugar, porque além dos italianos e dos franceses, os alemães,
os ingleses, os húngaros, entre outros, também tiveram escolas
de excelência.
Foi La Boissière que, no séc. XIX, aperfeiçoou
a máscara de arame trançado, dando, com isso, um passo decisivo
para que o florete passasse de arma de defesa para um dispositivo esportivo.
O argumento era de que, só na França, segundo alguns cálculos,
nos anos entre 1588 e 1608, cerca de oito mil homens morreram em duelo.
Alguns Mestres de Armas desenvolveram estocadas pessoais e só
ensinadas àqueles alunos mais promissores. Estas fintas, o mais das
vezes, constituídas de pura simplicidade, eram mortais. Debussy deve
ter aprendido aí, pelo valor da metáfora, que a simplicidade
é o último passo antes da perfeição.
Em França, criou-se a expressão sentiment du
fer, um instante de sensibilidade no qual a alma do esgrimista distendia-se
ao longo da lâmina para, lá na ponta, auscultando a vibração
do ferro contrário, poder perceber, em uma fração de
segundo, qual o movimento seguinte de seu opositor. Desse sentimento, dessa
sensibilidade dependia, muitas vezes, o passo decisivo em direção
à vida ou à morte. E, muito importante: o sentiment du fer
não podia ser ensinado. Sua aprendizagem dependia do espírito
sereno, atento e respeitoso, desenvolvido pelo esgrimista ao longo de sua
vida. O Capitão Blood, Scaramouche e Pimpinela Escarlate certamente
o tinham.
Esta arte estimula a prudência, o respeito pelo outro,
o senso de dever e, acima de tudo, a honra.
Entendes?
O senso de dever desses mestres não tinha nada a ver
com nenhum dever de ofício, com algo imposto de fora, como se fosse
uma característica sine qua non de alguma guilda, de um grupo
esotérico, uma associação de mestrias ou qualquer sociedade
secreta. Era antes o efeito da compreensão do valor da vida, do respeito
que ela merece, algo que absolutamente tem a ver com o dinheiro capaz de
comprar tudo. Tratava-se de um valor estabelecido de si para consigo mesmo,
uma retidão ética, um dever capaz de proporcionar uma real
percepção das intenções do outro, sua felicidade
e sua infelicidade e também quando participar desses sentimentos,
se podia ser de perto ou se devia ser de longe. É esse sentimento
de dever que leva à conquista da dignidade, da coerência pessoal,
a isso que chamamos honra.
Talvez, meu caro, nesse momento, ao ver a relva manchada pelo
sangue do vencido por ter recebido uma estocada no braço, ou no peito,
ou mesmo na jugular, sejas levado a virar teu rosto em um gesto de repúdio
a ínsita violência dessa prática. Mas todos os Mestres
de Armas sabiam dessa violência e a ela não renunciavam. Seu
argumento sempre foi o de que um povo que abrisse mão dela destruiria
a si mesmo qual um rebanho de cordeiros: seriam degolados pelo primeiro sicário.
A transformação (alguns diriam o rebaixamento)
dessa arte em um sport, ao tirar-lhe o aspecto mortal, empobreceu-lhe a ética.
Os duelos, para lembrar um de seus aspectos, já não têm
padrinhos que testemunhem a obediência às regras e a observância
das boas maneiras. Os esgrimistas, logo, não têm padrinhos para
cumprimentar. No sport, apenas juízes, muitas vezes eletrônicos,
para valorizar os toques, e os duelistas podem muito bem não se conhecer.
Não há nada pessoal em jogo. Um certo Mestre de esgrima, a
acreditar em Arturo Pérez-Reverte, para dar uma noção
clara do empobrecimento da esgrima aos seus alunos, ao ver sua arte tratada
como um sport, quando não mais consideram sua aplicação
prática no campo da honra, dizia, sem pestanejar, que isso não
passava de uma aberração; em um exemplo disparatado, para ele
era como os sacerdotes rezando a missa em português. Mais atual, talvez
mais popular, mas perdia-se a bela sonoridade, um tanto hermética
do latim, agora desvinculado o ritual de suas raízes mais profundas,
degradando-o a vulgaridade. E, sem esquecer que quando isso aconteceu já
haviam banido o latim das escolas, não está demais dizer que
ao perdermos as tradições, perdemos junto a história,
perdemos a relação com nossos antecedentes.
Ao perdemos o substrato das palavras que usamos para nosso conhecimento,
vamos perdendo a base sobre a qual nos constituímos. Ao objetarmos
a violência, perdemos, do mesmo modo, a capacidade de defendermos nosso
ponto de vista, cedendo nosso lugar à posição de manada.
_________________FORTUNA CRÍTICA: Armindo Trevisan: Caro amigo Luiz Olyntho: Agradeço-te o texto sobre Esgrima que acabaste de me enviar. Obrigado pelas informações que dás aos teus leitores, e tiveste a gentileza de mas dar, precedidas por agradáveis reminiscências infantis, sobre um “esporte” para mim” exótico... Escreves com agilidade, graça e finesse. O curioso é que, para aprender um pouco mais a arte de escrever, andei relendo, dias atrás, um escritor, julgado maldito pela inteligentsia brasileira, mas que é um dos grandes estilistas de nossa língua: Gustavo Corção. O livro, aliás, nem é todo de Corção: trata-se de uma coletânea de crônicas do autor de Lições de Abismo, organizada por Luiz Paulo Horta. Descobri, nesse livro, que o Corção passou por uma fase de esgrimista, o que muito me surpreendeu. Surpreendeu-me ainda mais por ele dedicar algumas páginas às posições do corpo, que a esgrime exige. Sugiro que leias a crônica de Corção que é também bem escrita, sugestivamente bem escrita, como a tua. Dica: Gustavo Corção: Melhores Crônicas da Global. Seleção e prefácio de Luiz Paulo Horta. São Paulo, Global Editora, 2010. p.76-78. |