Abertura
Biografia
Publicações
Atividades
Textos:
- Psicanalíticos
- Contos
Fortuna crítica
Comentários
Contatos
Links
|
Seminário clínico sobre transferência
desde o conto Jasmins, de L.-O. Telles
da Silva
Beatriz
Duró*
Hoje lhes proponho trabalhar este conto maravilhoso. Não aludo à
sua qualidade literária, que não posso julgar. Só posso
dizer que o elegi porque gostei e me pareceu interessante para trabalhar como
um caso clínico a mais. Eu o digo maravilhoso pela presença
de elementos maravilhosos ou sobrenaturais, batizado como real maravilhoso
por Alejo Carpentier, e por outros críticos como realismo mágico,
referindo-se a obra de García Márquez. – Ainda que as opiniões
estejam divididas e alguns críticos e escritores digam que não
se trata do mesmo conceito, em fim...
Podemos, quando nos enfrentamos a um caso, seguir diferentes caminhos de
estudo, como perguntar-se que estrutura tem o analisante - para dar um diagnóstico
- e assim pensar a direção da cura. Como se enodam estes três
de Lacan, o real, o simbólico e o imaginário?... E podemos investigar
o que acontece com seu fantasma. Mas neste caso vamos dar prioridade à
transferência, que é o tema eleito pela Escola
Freudiana de Montevidéu para desenvolver este ano, observando com vai
se desenvolvendo essa situação falsa, como a chama Lacan
no começo do Sem. 8, que é a situação analítica.
Mas ao trabalharmos a transferência, roçaremos necessariamente
alguns desses temas, uma vez que a transferência se sustenta de amor
e teremos de vê-la com a estrutura, com o sintoma, com os gozos e...
com o fantasma.
Como chega à análise o bacharel? – Precedido do perfume de
jasmins. É um perfume o que o precede; não é sua voz,
não é através da pulsão invocante que começa
a fazer sua demanda. Inclusive, ao analista lhe custa um bom trabalho poder
ouvir o que ele quer dizer. Seus lábios permanecem surdos, diz o analista.
Aqui temos um veio para investigar: o perfume, o cheiro, a pulsão
olfativa, que para Lacan não constitui um dos objetos parciais, fora
do seio, das fezes, do olhar e da voz.
Mas nosso trabalho de hoje estará marcado pela transferência,
de modo que isto pode ser tema para outro trabalho de investigação
com vocês.
As intervenções clínicas, por si, vão proporcionando,
nesta análise, a produção de atos psíquicos. O
relacionamento começa com o perfume, mas logo aparece o olhar: olhou-me
admirado – a pulsão escópica. Em seguida aparece a palavra,
palavra inaudível para o analista a ponto de fingir estar começando
a ouvi-lo um pouco melhor. – Constrói assim uma pulsão invocante
para poder seguir adiante com o discurso cujo texto se há de analisar.
Disse conhecer-me já há algum tempo, como alguém
que ouvia as pessoas, e ele precisava de ajuda, embora falar fosse para ele
muito difícil.
O analista corta esta primeira entrevista e lhe diz para voltar no outro
dia. – Começa a estabelecer-se o vínculo transferencial.
Não há um enquadre pré-estabelecido. O analisante sempre
aparece no horário do analista que está vago, em que está
entretido em outra coisa, lendo sua correspondência. Ele se introduz
com respeito, mas impõe sua presença. Não ficam estabelecidos
horários, nem honorários. Volta no dia seguinte, mas a que horas?
Jean-Louis Henrion, em seu livro A causa do desejo, diz: o lugar
do analista se define como um lugar vacante, que se oferece ao desejo do analisante,
de modo que o desejo deste se realiza aí como desejo do outro.
HENRION,
Jean-Louis. La Causa Del Deseo: el agalma de Platon a Lacan. Buenos
Aires, Nueva Visión, 1996, 239 pp.
O analista, submergido nesse perfume de jasmins, e como na fábula
de Épinal, que Lacan lia quando pequeno - aquela que vocês lembrarão,
do mendigo que ia a porta do restaurante para sentir o aroma do assado* –
sabe que por trás do aroma está o menú, e este está
pleno de significantes. Então o analista OPS o convida a falar, dizendo,
para animá-lo, que agora está escutando melhor, e aí
se vai desenrolando o relato. A presença do analista que já
se está manifestando, supõe um alívio para o analisante.
*
J. LACAN, Sem. 11, pp. 254-55 da Ed. Brasileira.
Aí aparecem os significantes;
como diz Lacan, um menu redigido em chinês. Para um homem do
século XXI, é muito difícil imaginar a realidade de uma
sociedade escravocrata, onde os amos podem dispor de vida e obra de seus escravos,
autorizados pela própria lei. Me dou conta de que o Sr. não
entendeu - diz o bacharel. Na realidade, ele, o bacharel, é que
não entendeu, não entendeu em que gozo esteve imerso, qual
foi o seu desejo. – Corresponde ao Sr. sabê-lo, diz Lacan ao analisante.
…articulo essa transferência ao “sujeito suposto saber”.
Há aí explicação, desenvolvimento disso que o
nome não fixa senão obscuramente. A saber: que o sujeito,
pela transferência, é suposto ao saber em que consiste como sujeito
do inconsciente e que é isso que é transferido ao analista,
quer dizer esse saber em tanto que ele não pensa, não calcula,
nem julga, sem deixar de comportar efeito de trabalho.
LACAN,
J. Radiofonia & Televisión. Barcelona, Anagrama, 1977, parte
V de Televisión, p. 115.
Este analista a quem demanda o jovem bacharel, estimula a que se estabeleçam
as diferentes transferências para que se institua a ética
do desejo. É preciso pontuar que este analista não retrocede
ante o sinistro. Tomemos o caso como se fosse um caso autêntico.
O analista permite o entrelaçamento dos três registros trabalhados
por Lacan: o imaginário, no relato feito pelo bacharel da posição
em que se encontra; o simbólico, quando começa a debulhar o
discurso do paciente e começam a cair os significantes que o marcam,
e o real quando se o descobre no gozo em que se sustém.
A transferência começa a se estabelecer, antes que o
bacharel decida consultar ao analista.
- Certa vez eu assisti o senhor dar uma conferência sobre fantasmas.
Não entendi muito bem, mas me pareceu que o senhor achava importante
para o sucesso de uma cura poder chegar a uma compreensão do fantasma
– continuou ele. Pareceu-me muito verdadeira essa formulação,
fez muito sentido para mim e por isso fiz este esforço em vim até
aqui.
Então, silêncio. O analista não o interrompe e pensa:
- quê sei eu de fantasmas a não ser como figura teórica?
Mas segue escutando. Talvez por aqui comece a se instalar o desejo do
analista.
- Então, Doutor, o senhor vai me ajudar?
- Ainda não sei, respondi-lhe quase mecanicamente. Quem sabe se o
senhor quiser me contar um pouco mais sobre como foi sua vida, quem sabe então
poderemos ver se isso vai ser possível.
A posição é muito freudiana, escutando passo a passo,
sem pré julgar.
Este analista, quem se firma OPS, como dizíamos antes, não
foge apavorado ante a iminência de seu analisante revelar-se um fantasma;
pelo contrário, trata de seguir escutando e permitindo que as transferências
se anodem sob seu desejo de analista.
Recorremos uma vez mais à conhecidíssima frase de Lacan, do
Seminário XI, onde diz que o desejo do analista é o que
faz que voltem a seu unir a demanda e a pulsão, separadas pela
transferência. É assim que o bacharel chega e se
oferece como objeto ao Outro, situando-o no lugar do ideal; reproduz seu lugar
de fixação e pede ser reconhecido como eromenós,
como amável frente a este analista colocado por ele no lugar do erastés.
A transferência do começo do tratamento vai se introduzindo
no registro do simbólico, desde que a operação analítica
legitime o surgimento de um sujeito sem culpa, dada uma realidade antropológica
própria da subjetividade de sua época, pela qual padece o mal-estar
na Cultura na qual se estruturou. Moebianamente, o dentro e o fora continuam
em uma só superfície que operará na estruturação
do sujeito e nos novos enodamentos que a análise propiciará.
Como em tabuleiro de xadrez, se entrelaçam os significantes branco
e negro.
Branco, vestido de branco, como os jasmins que leva consigo, como o lencinho
que cobre sua cicatriz indelével, a goma de seus colarinhos, a camisa
de tricolina, passadas pelas mãos negras de Ialá; negra como
sua mãe que lhe deu seu branco leite.
Atraído pela cor da pele das negrinhas, e especialmente de Ialá,
filha de sua ama, única mãe que ele recorda, também negra.
Rechaça o contato com as brancas de Olinda, as quais parecem frias,
como mortas, como sua mãe branca.
De algum modo essas brancas o condenariam a uma situação incestuosa,
da qual ele foge, porque as sente identificadas à sua mãe.
Assim que as pretinhas eram escravas de vocês...
- Sim, nossas, quer dizer, do Coronel meu pai, o mesmo que nossas. –
Sem limites, não existindo outro limite que o capricho do Coronel seu
pai.
Assim faz entrada o pai neste relato, o Coronel meu pai que se apresenta
no relato como um pai excepcional, excepcional sim, porque se nos atemos
ao quadro com que começa o capítulo VII do Seminário
20 de Lacan, Mais, Ainda, onde diz que [...] À esquerda, a linha
inferior,
, indica que é
pela função fálica que o homem como todo toma [sua] inscrição
[...], e para este pai que não encontra seu limite na existência
de um x que negue a função fálica -
-, que constituiria a função paterna fundante do exercício
do que com a castração supre a relação sexual,
enquanto esta não pode escrever-se de nenhum modo.
LACAN,
J. Mais, ainda. Rio de Janeiro, Zahar, 1982, p. 107.
Assim, este pai, encarnação da exceção, que
não diz não a castração, é o que pode
gozar de todas as mulheres.
Contudo, para o bacharel não é assim:
- Tudo eu não podia... Tudo eu não podia – repetiu fazendo
eco às suas próprias palavras, sentindo-se não-todo,
o que nos assegura que algo da castração havia se operado.
Agora, como opera a transferência? – Opera por amor. No princípio
era o amor, diz Lacan. Esse amor que o bacharel espera do analista, transferencialmente,
talvez o de um pai, como dizem os códigos civis. Ele era estudante
de direito, não o esqueçamos, e esta noção de
“bom pai de família” vem do direito romano.
Na Psicanálise, a tarefa consiste em poder fazer surgir o desejo
inconsciente, instaurando-o a partir da instância da paternidade que
o estruturou, tanto se trate do pai totêmico, regido pelo gozo, ou
pelo pai simbólico que o proíbe, abrindo a instância
da habilitação. Porém, por meio da transferência,
o analisante se re-situa, enquanto transfere ao analista a qualidade
todo-poderosa do pai dos primeiros tempos de estruturação.
- Então, Doutor, o senhor vai me ajudar? – Esta é a
transferência que vai se instalando no princípio da cura, transferindo
ao analista os poderes plenipotenciários do pai primordial.
O texto de sua novela pessoal se estrutura ao redor de certos significantes
de sua cadeia, que o escravizam, atando-o eternamente a uma existência
atormentada e sem descanso. Como Sísifo ou como Prometeu, eternamente
adscritos ao tormento, castigo pelo qual não deixam de pagar sua culpa
ad infinitum.
O Nome-do-Pai, que se substituirá ao Desejo-da-Mãe, em troca,
parte desta condenação a ser e acalma o aterrador do pai totêmico.
Mas a direção da cura, a partir do discurso do analisante,
deixará cair os significantes que o constituíram, entrelaçando
assim a transferência imaginária à simbólica, e
produzindo efeitos de real, enquanto as crenças das quais vinha imbuído
o bacharel serão trocadas por outro posicionamento subjetivo que o
fará mudar essa relação que como sujeito tem com o objeto
causa de desejo. – ( $
a )
Porém, por seu discurso nos interamos que ele se encontra “entre
duas mortes”, como o herói trágico, no espaço do tempo
entre duas fronteiras. A segunda, é a que indica o paradoxo do desejo:
o homem aspira a destruir-se nisto mesmo que o eterniza*,
como diz Lacan.
*A
mesma frase pode ser encontrada com uma tradução ligeiramente
diferente na p. 103 da Ed. Brasileira, do Sem. 8 por Jorge Zahar.
Certa vez, nosso bacharel tentou ultrapassar este marco rígido, no
qual está coagulado há séculos, com a tentativa
de suicídio, sem consegui-lo. O único vestígio é
uma cicatriz, como um estigma, em seu próprio pescoço, como
marcando o lugar do sofrimento de seu sintoma, o sufoco, o afogamento. Para
este sujeito, nem o suicídio é um ato bem sucedido. Não
pode em um só ato alcançar seu dês-ser, tarefa que conseguirá
sob transferência analítica, o que ele chamará
morrer em paz.
Esse morrer em paz marca também uma transferência
erótica com seu analista, a quem transfere o poder de dar-lhe
a paz, como o fazia Ialá. Ele lembra: - Mantinha as gavetas
de minha cômoda sempre arrumadas. Quando eu as abria, sentia sua presença
e em seguida era invadido por uma agradável sensação
de bem-estar. Meu Deus, quase não lembrava disso! Era um paz...
- Eu amava aquela negrinha, eu amava Ialá. Era ela que eu procurava
nas outras e nunca encontrava.
De todos os modos – como ele nos faz saber por seu discurso – ele está
identificado a Ialá, mas não a Ialá viva, nem morta,
senão no preciso instante de morrer, na hora do sufoco, expressão
da pulsão erótica, na medida em que se sufoca ante a
iminência do orgasmo. Este deambular por séculos é, talvez,
conseqüência desta identificação com sua amada,
nem viva nem morta, persiste eternamente como um fantasma, acossado
pela culpa por ter se deitado com ela, como expressa literalmente. Talvez
a fantasia de incesto seja um ingrediente a mais pela qual paga sua culpa
eternamente. Ele sabia que seu pai escolhia qualquer negrinha para seu desfrute,
e não seria impensável que Sinhá Joana tenha sido uma
delas, e Ialá fruto desses encontros, de modo que o incesto fraterno
poderia estar presente, pelo qual o bacharel também sente culpa.
Com o trabalho analítico ele se dá conta de que não
é culpado, nem da morte de Ialá, nem de seu filho.
No Seminário 10, da Angústia*, Lacan nos oferece um
grafo que gosto muito de trabalhar. É o grafo da estruturação
do sujeito.
*
Por exemplo, p. 36 da ed. Brasileira.
Isto marca um tempo mítico, onde tanto o sujeito, como o Outro, estão
sem barrar, tempo mítico em que a relação sexual é
possível. Não há barramento. No piso seguinte, ao barrar
o Sujeito, barra simultaneamente o Outro (A), mas dessa operação
há um resto que é o objeto causa de desejo, e aí, no
campo do Outro, sob a barra divisória, se encontra a fórmula
do fantasma, $
a, ou seja, o sujeito posicionado e coagulado em relação a
aquele objeto causa de desejo.
Todo analisante encarna um fantasma e é necessário o trabalho
analítico para que possa, por fim, atravessar esse marco que o detém,
causando-lhe sintomas, angústia, dor e culpas, para que possa se re-situar
em sua própria história, o que se consegue mediado pela transferência
analítica.
Pergunto-me, e quero também passar a pergunta a vocês: - O
custo dos honorários deste analista é um jasmim já sem
perfume? Além da ficção, como se poderia pensar em um
pagamento assim?
Podemos pensar que este relato é o relato de um sonho. Mas se optamos
por tomar todo o conto como uma metáfora, talvez entendamos que todo
analisante é um fantasma, ele mesmo, enquanto vem endurecido por sua
crenças que o fixam em relação a seu objeto a que o causa.
Já sei o que me dirão: - às vezes há que analisar
cada fantasma!
Pois bem, até aqui meu trabalho em relação à
transferência que nos brinda este caso. Deixo-lhes a palavra para que
pensemos que mais, ou de que outros modos podemos entender a transferência.
______________________________
* Beatriz Duró é Psicanalista, Membro da Escola Freudiana
de Montevidéu. Este seminário teve lugar no dia 9 de maio de
2008.
Tradução e notas de Luiz-Olyntho Telles
da Silva
|