DIZSOLUÇÃO:
CONCLUSÃO DE UM TEMPO LÓGICO
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por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
 
 
                Dimb! He stottered from the latter. 
                Damb! He was dud. 
                Dumb! Mastabatoom, mastabadtomm, 
                when a mon merries his lute il all long. 
                For whole the world to see. 

                JAMES JOYCE, Finnegans Wake,  
                Cap. I, p. 6, linhas 9 a 12.2 

                3

 

            Caros colegas, 
            Senhoras e Senhores 

          O quê mais lhes posso dizer? Realizamos um ato, gerador de horror, como todo ato, e o enfrentamos responsáveis. Se o analista não sabe bem o que diz, nos ensina Lacan, precisa saber o que faz. Efetuado, nos dedicamos a estudá-lo. 
          Pessoalmente, não sinto orgulho do que fiz, muito menos de ter chegado a este ponto. Chegado ao ponto, porém, não se pode ficar com o nó trancado na garganta, não se pode ficar engasgorgulhado. Há que enfrentar o gorgulho e ver o quê ele tem de caruncho e o quê ele tem de ouro, de valor. 
          Quanto ao valor, não creio que haja mais dúvidas. A assídua freqüência da maioria dos que estão hoje aqui, aos nossos estudos posteriores à dissolução, além das declarações de alguns colegas, eu arregimento como prova. 
          Quanto ao efeito caruncho, já sabem que se não tomamos providências, estes xilófagos, em silêncio – embora por vezes sua atividade seja tão intensa que produzem como efeito uma sensação de que as paredes falam – eles vão comendo o interior dos móveis e mesmo das paredes até que estes não mais se sustentam. 
          Já sabem do que estou falando. Falo do desejo e do engano. 
          A mim ajudou muito o conceito de desejo do analista. Para usufruir dele, para dar-lhe vida, é preciso passar por uma destituição da subjetividade onde domina o imaginário, é preciso tender ao desser, posição essa, diria, antípoda a do orgulho onde o sentimento de dignidade pessoal muito facilmente pode ser confundido com soberba e exagerado amor próprio. E mais, quando o analista se presta ao lugar de significante qualquer na transferência, com a finalidade de levar adiante uma análise, se isto atinge sua dignidade é no sentido positivo do termo e jamais por falta de dignidade. 
          O analista precisa elevar-se à dignidade do desser. E nisto há um engano? Sim, há um engano da ordem da  , este engano necessário ao espectador de uma tragédia: se o espectador não se deixa enganar pela encenação dos atores, seja um agonista ou dois deuteragonistas, nada acontece. 
          Quando Lacan diz ser necessário para a entrada em cena do discurso do analista, que o analista ocupe um lugar de semblante, repito, um lugar de semblante do objeto “a”, de semblante do objeto causa de desejo, aí se abre um espaço para o engano. Este engano, o engano de fazer semblante, é necessário à produção da transferência. O analista sabe disto, mas sabe também que uma análise se dá sob o signo da versagung, sob o signo da frustração.  
Por outro lado, o engano que não deve ocorrer é o do analista confundir este lugar de semblante com o do objeto o quê, como conseqüência, o impedirá de assumir qualquer posição frustrante. Pior, dificultará a prossecução da análise pela desconsideração à metáfora, como se tudo fosse apenas metonímia. 
          Quando publiquei o Da miséria neurótica..., em 1989, terminei a primeira parte da introdução, batizada de “Do umbigo ao nó”, com a seguinte afirmação: “se há um tempo para acompanhar, há também um tempo para fazer seu próprio nó... – e terminava a frase com uma recomendação raiante ao enigma – Ah! E cuidado com o cego.” Não preciso lhes dizer que esta era uma reivindicação que fazia para mim: queria seguir meu caminho! Esta reivindicação, contudo, não tem o caráter das reivindicações do nosso anedótico jogador de pôquer, o Dr. Oswaldo Aranha que, tendo inventado, na hora, uma estranha combinação de cartas, fez-se vencedor, e quando um dos outros parceiros quis ganhar com o mesmo jogo, ele não aceitou com o argumento de que um jogo assim tão alto valia só uma vez. A minha reivindicação é para todos. Todos devem ter o direito de fazer seu próprio nó, com a condição de que não seja cego. Cada um deve ter o direito de amarrar suas coisas como melhor lhe parecer; isso tem de ser um direito inalienável e, então, pelo modo como cada um faz o nó saber-se-á em que campo se inscreve: Diga-me quem és e dir-te-ei com quem andas! Se as amarras conceituais são atinentes ao campo da psicanálise, é aí que se inscreve, senão, não!  
          Há muitos campos onde uma pessoa pode se inscrever, com dignidade. Mas uma coisa, sem dúvida, será comum a qualquer campo, as cordas tem de ser do tipo conceitual, como as cordas barrocas do Rei Dom Manuel, o Venturoso. 
          A proposta de Lacan de que o efeito de uma análise seja a produção de um S índice um (S1) tem a ver com isto: ao fazer da psicanálise sinthome, o analista a enoda a sua maneira, única maneira de se advir analista. 
          O que eu diria que uma instituição psicanalítica que se preze do nome não pode aceitar é que se amarre qualquer coisa sob o título de psicanálise. 
          Seguimos juntos com aqueles cujos conceitos respeitamos. Quando esta premissa não é considerada, já não há missa possível. Sabem que não há missa quando dela não se respeita pelo menos um terço. Foi o reconhecimento desta situação que levou a mim, em particular, a propor a dissolução da instituição. Alguns estarão lembrados de que este foi o recurso pensado para que pelos menos alguns pudessem continuar trabalhando juntos, e o momento de concluir fechou-se sobre o tempo para compreender tão rápido quanto o instante do olhar. Cometido o ato de dissolução, passamos a estudar suas causas e conseqüências. 
          Como em um cartel, estudamos e trabalhamos juntos uma porção de coisas; depois, cada um se recolheu ao seu canto para produzir todos estes trabalhos que estamos terminando de escutar. 
          Não é de hoje que lhes digo que à proposta de que o analista se autorize de si mesmo à prática analítica é preciso agregar que à teoria o analista também tem que se autorizar de si mesmo. Com isto não estou dividindo a psicanálise em uma parte prática e uma parte teórica, como alguns supõe que se possa fazer. A psicanálise é uma prática, mas uma prática que não é sem uma teoria, sem uma teoria do inconsciente, sem uma teoria da repetição, da transferência e da pulsão. Quando digo que o analista precisa autorizar-se de si mesmo na teoria, quero dizer que ele precisa ultrapassar a fase do psitacismo tão característico do momento legómena do qual lhes falava pela manhã: é preciso que ele já seja capaz de fazer sua própria leitura e sua própria interpretação dos textos. 
          Este é um movimento continuo e é por isto mesmo que a formação do analista é constante. 
         O que aprendi com isso é que em uma instituição, os lugares têm que estar o mais claro possível e isto só pode se dar na medida do seu reconhecimento. É preciso estar claro os lugares dos que já podem ensinar, o lugar dos que já podem analisar e também o lugar dos que já podem aprender, diferente daqueles que recém querem aprender. 
          Durante muito tempo ouvi muitas críticas ao modo como me conduzia no Recorte e ao modo como conduzia o Recorte. Embora não fosse a mesma crítica, penso que não se tratava de críticas independentes: (1) o modo de me conduzir era muito agressivo, agressividade que se mostrava especialmente nas críticas aos que apresentavam trabalhos. Um observador desavisado diria que as críticas que recebi acabaram por fazer efeito e que deixei ou pelo menos diminuí a virulência dos ataques. (2) Já o modo como conduzi o Recorte mostrava que me sentia como se fosse o dono. (3) E o problema era que as pessoas se analisavam comigo. Se analisavam e estudavam! Pois bem, o que se pode depreender dos destacados procedimentos? Se muitas vezes me mostrava agressivo nas críticas – o que muito possivelmente não representasse a melhor forma de agir – isto poderia significar que me sentia responsável pela formação dos que freqüentavam a instituição e passei então a ouvir as críticas no sentido de que não havia porque me sentir responsável. Com isto passei a restringir meus comentários àqueles que pareciam mais claramente demandar um cuidado. Quanto a ser dono, bem, não sei se esta é a terminologia mais adequada, mas a verdade é que sempre agi como dono e de modo geral me senti muito solitário nesse lugar. Além disso, a critica a que as pessoas se analisassem comigo: Fazendo um caminho de volta, diria que se por um lado não é verdade que todos se analisem comigo, por outro, tem que ser, caso contrário, porque diriam? Pois o quê finalmente entendi é que para as pessoas trabalharem comigo elas precisam estar em análise, precisam se analisar porque é a isso que minhas intervenções remetem. É nesse sentido, como um corolário, que também interpreto o fato de dizerem que eu cobro caro. Pois parece que cobro mesmo! E não deveria? Não será assim, com o pagamento de um beau coût que cada vez mais colegas se autorizarão a ser donos daquilo que fazem?  
          E deixei por último o mais difícil: a questão da autorização às criticas. Acho possível e até provável – como apontou um dos trabalhos, o da Maristela, quando falava do se esquivar do lugar de mestria – que a manifesta agressividade fosse o resultado desta não aceitação do lugar de mestre. Talvez ainda não estivesse em condições de aceitar essa responsabilidade, o que levaria a pensar no quanto este lugar estaria idealizado para mim. No entanto o que sempre me pareceu é que a demanda nem sempre era clara; em outras palavras, se havia demanda de uns – e eu penso que havia e há – não escutava esse mesmo tipo de demanda por parte da instituição como um todo e acho que nem sempre fiz esta distinção com a clareza que faço hoje. Assim que, depois de me dar conta de que os que assim escutavam minhas críticas, muito mais que os criticados, eram os que se identificavam com os criticados desde uma posição transferencial imaginária, passei a restringir os comentários aos que me pareciam demandá-los. Acredito que alguns tenham vivido esta mudança como uma retirada do amor. 
          Quer dizer, era também vítima, como todos os demais, da falta de delimitação de lugares definidores (jamais definitivos) das diferenças de responsabilidade. 
          Foi assim que chegamos ao momento de fazer valer nosso nome e efetuar, com verdade, um corte, o recorte que possibilita passar de uma cena a outra, de um momento a outro, que possibilita, enfim, dar um passo. 
          É neste momento que aparece a idéia da solução com a qual os analistas, desde Freud, estão sempre preocupados. Freud queria encontrar uma Lösung para Irma, Lösung que tem tanto no alemão, como no francês e no português a mesma ambigüidade da solução que se injeta como a da solução de um conflito. É esta ambigüidade, diz Lacan, que lhe dá seu sentido simbólico. 
          Quando Lacan, ao dissolver a Escola Freudiana de Paris, se expressa dizendo Je dis solution, é um eu – ainda que se pudesse dizer um Je – quem fala. A diferença, hoje, é que quem dizsolução é a Jornada. 
          Muito obrigado a todos. 

Porto Alegre, 22 de setembro de 2001.
(Um dia antes da memoração da morte de S. Freud)
 
1. Trabalho apresentado à Jornada Dizsolução, promovida pelo Recorte de Psicanálise / Tempo de Compreender, em 22 de setembro de 2001.
2. Na tradução de Donaldo Schüler, fica assim: 3.  Conforme a transliteração oferecida no texto Perséfone apresentado à mesma Jornada: ‘Prepara, semeia e colhe’.

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