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A ESPADA DO GENERAL
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Junho de 2016
A espada não
é a ordem, mas a opressão; não é a tranquilidade,
mas o terror, não é a disciplina, mas a anarquia, não
é a moralidade, mas a corrupção, não é
a economia, mas a bancarrota.
(RUI BARBOSA, Novos discursos e conferências.)
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O cesto de lixo, ao lado da pequena escrivaninha, já
estava quase cheio de folhas de papel amassadas, mas finalmente encontrara
o tema para seu romance: a subversão.
Ainda estavam vívidas em sua lembrança as
correrias, na Rua da Praia, para escapar das bombas de gás lacrimogênio
e mesmo de balas, quando as cortinas de ferro das lojas serviam de barricadas.
Mesmo no medo, abria-se um espaço para o gesto romântico de
oferecer um lenço para a moça que só aí, já
em segurança, no interior de um magazine, havia descoberto o ferimento
na perna feito pela bomba que estourara perto demais; era um desses momentos
em que, mesmo com todo o alvoroço, a concentração na
limpeza do ferimento, com a mão dela levemente apoiada sobre a do
desconhecido, como a pedir cuidado, contornava a cena com um halo de silêncio.
A ameaça da dominação estrangeira se materializava
no impedimento da posse constitucional do novo presidente, sob a alegação
de que nosso país seria uma nova Cuba. Era muito ofensivo, como se
nos dissessem incapazes de pensar por nós mesmos! E não era
verdade. Havia um projeto para uma nação livre, criativa, independente,
capaz de produzir e prosperar.
Estava criado o clima. E também havia decidido os
caminhos para alcançar a paz necessária ao desenvolvimento.
Os passos para isso seriam organizados no discreto escritório de
uma editora, local de encontro dos amigos intelectuais do editor. Centralizava
os comentários o autor do novíssimo romance, alusivamente
intitulado Madrugada, no qual já adivinhara os recentes acontecimentos.
Nem todos haviam se dado conta da importância dos bilhetinhos do Presidente
que recém renunciara.
Mas ele teria de renunciar também, pelo menos por
hora. Era tarde, passava das duas, o sono estava batendo e quando alongava
o braço direito, retesado em uma boa espreguiçada, sabia que
era hora de dormir. Ao ajeitar a roupa sobre o espaldar da cadeira, desfazendo
o nó da gravata para desamassá-la um pouco, ainda lembrou
que ela poderia servir de instrumento para o suicídio do subversivo
frustrado, mas era tarde e meteu-se, só de cuecas, em baixo das cobertas.
O estrondo de um canhão, seguido do rá-tá-tá
de uma onírica metralhadora terminou por despertá-lo. O ruído
não vinha do alto do palácio. Batiam na sua porta; era como
um tamborilar de unhas. O mostrador luminoso do relógio, no criado
mudo, marcava quatro e quinze. Meu Deus! Que será? - pensou, enquanto,
estremunhado, vestia seu chambre surrado. E, bem como imaginara, lá
estava sua senhoria com uma minúscula lanterna na mão, segurando
as golas de seu peignoir semitransparente, juntas sob o queixo, ao mesmo
tempo em que iluminava seu gorducho rosto cortado pelo dedo indicador da mão
direita, pedindo silêncio. Por trás dela, mesmo com a escassa
iluminação, podia ver os olhos arregalados de Jonathan, seu
filho gordo de onze anos, a tremer. Não fazia ainda um mês que
viera morar ali. O arranjo era muito cômodo para ambos. Para ele, que
decidira viver com uma pequena bolsa para poder estudar e escrever, o preço
era bem razoável; não muito longe da Universidade, a janela
do quarto dava para um pomar com laranjeiras e podia tomar o café da
manhã na cozinha da casa; para ela, que tivera seu único filho
depois dos quarenta anos e em seguida perdera o marido, em um exercício
militar, ter um rapaz em casa representava uma companhia, ainda que muito
não conversassem. De qualquer modo, assim se sentia mais segura.
Era a primeira vez que isso acontecia. A viúva acordara
assustada com um ruído no andar de baixo. Pareceram-lhe passos. Apurou
o ouvido e logo o barulho, um pouco mais discreto, se repetiu. Foi então,
pé ante pé, pedir a ajuda de seu locatário, intima
e secretamente promovido a homem da casa. Ainda um tanto aturdido, porém
inteirado da sussurrada suspeita, o rapaz cruzou mais ainda o chambre, apertou
o cíngulo com um gesto de decisão, e, com a lanterninha em
punho, procurando não fazer barulho, quando já apoiava o pé
sobre o segundo degrau, foi parado pela mão da senhora que ciciava:
- Tome. Leve a espada do General. Nem teve tempo para pensar e já
estava em mãos com aquele gládio em riste, o adamascado, de
um metro de comprimento, lampejando ao facho do minúsculo fanal. Nunca
tinha pegado uma espada de verdade. Quando criança, seus floretes
eram os espetos para os churrascos do pai, feitos de galhos de laranjeira.
Se não era sândalo, tinha o mesmo poder de perfumar a carne
e bem mais leves que o aço inodoro de agora. Tomara Deus não
seja nada!
A escada terminava no hall de entrada e tinha de dar dois
passos para alcançar a sala. O ruído, agora silente, teria
vindo daí. Sentia, na palma da mão, as filigranas, em ouro,
do cabo da espada, e pensou que talvez aquele fosse o único objeto
de valor naquela casa. Era confortável, mas o que mais teria para
ser roubado? Naqueles dias, nem tinham televisão ainda. E repetiu-se
o ruído, um risco seco, logo seguido do clarão de um relâmpago
penetrando por entre as venezianas das janelas e deixando, por um instante,
ver a sala toda, parecendo vazia. E, então, um trovão mais
distante, anunciando a tormenta, esclareceu o ruído do roçar
de um galho de árvore rente à janela, forçado pelo vento.
No dia seguinte, às oito e trinta, a aula de Lógica
Menor, que já começara atrasada, sob as luzes de Jacques Maritain,
parecera muito sem graça.
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COMENTÁRIOS
JUSSARA SCHIVITZ (Artista
Plástica):
Muito interessante e com frisson.
Mesmo assim não deixa de narrar evidências de um tempo vivido
há um tempo. Parabéns!
JOSÉ LUIZ CAON (Psicanalista): Caro Olyntho,
"A espada do general" me deixou estupefacto no fim da escada, onde a espada
agora é o manual de Lógica Menor por Maritain. Tive que voltar
a ler o parágrafo, onde fui despistado, como sempre ocorre com o leitor,
quando lhe surgem os pronomes possessivos, em nossa lusofonia. Então,
"seu filho", "seu", dele ou dela? Só no depois se vê que se trata
do filho dela e não dele. Serve de artifício de despertador
para o leitor que lendo em meio à turbulência de milhares de
estímulos não orquestra os ruídos para transformá-los
em harmônicos sons exigidos pelo enredo do conto. No tempo do "Pasquim",
articulistas apunham divertidamente depois de "seu/s", "sua/s" o "dele", "dela",
"deles", "delas", entre parênteses. Se alguém tivesse que traduzir-lhes
o texto para o inglês, certamente não conseguiria, pois na língua
de Shakespeare o "his", "her" retificam a natural anáfora que nossos
pronomes possessivos mantém como um idiomatismo ou idiotismo do idioma.
Conto gostoso de se ler e regostoso com o fim inesperado, de fim de escada,
onde há que acordar, pois, a escada termina abruptamente deixando
o leitor no ar, com a espada da lógica na mão. Abraçon.
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