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A ENCOMENDA
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Agosto de 2016
Pareceu-me estranho, mas era assim mesmo. Para encomendar o corpo
faziam uma massa, algo como um arroz doce, com uma cor escura, como se o
arroz tivesse queimado um pouco, mas só um pouco. Depois ele era moldado,
à mão, por umas quantas pessoas. Os movimentos eram tão
harmônicos que não dava para perceber quantas pessoas participavam
disso, mas música, isso não havia. Talvez fossem duas pessoas,
ou três. Poderia haver até quatro artífices, dois trabalhando
de cada lado. Creio que chamava mais atenção o balé
dos movimentos do que o número dos dançarinos. Era mesmo uma
dança!
A massa que iam modelando tomava a forma de um... um pato, mais parecido
a um ganso, talvez até um cisne, porque o corpo era mais comprido
do que o de um pato, embora o pescoço fosse até mais curto,
como o desenho de um número dois, achatado, sabe, assim para a cabeça
ficar mais ou menos na altura do corpo, de modo que o comprimento do corpo
ficava entre o de uma pessoa e o de um pato, ou de um ganso, ou cisne. E
só o aspecto é que era de arroz doce, porque o gosto, desse
não se sabia, e também não vinha ao caso. Mas, uma vez
conformada a massa, ficava parecendo um pouco como a forma destes pedalinhos,
para passear em lagos, mas sempre com proporções indiscutivelmente
humanas.
Começava então a fase do revestimento. Era feito com folhas
parecidas com as dos plátanos, secas e coloridas; eram preparadas
especialmente para isso, nas cores amarelo amarronzado, sem brilho, cinza,
mais para o chumbo, e vermelhas, de um vermelho fechado, não o vivo
vermelho francês, nem o chinês, talvez puxando mais para um terra
siena queimado. Toda a lateral era feita com os amarelos, estes amarelos
cor de tijolo, embora as cores fossem sempre absolutamente uniformes, como
se vê na obra de Miró. A parte central, superior, como que da
cintura para baixo, era revestida com folhas vermelhas. A parte superior,
da cintura para cima, era também de folhas amarelas, todas elas cravadas,
enfiadas na massa, como se tivessem voltado a nascer da árvore. De
quando em quando, porém, havia folhas cinza, como que perfazendo uma
linha horizontal, ao longo do corpo, e representavam os nomes e títulos
que a pessoa havia carregado em vida, e também os apelidos. Cada folha
era um nome e, uma vez ali, iam embora para sempre. Nesta hora, os artistas
conversavam entre si para saber os nomes e também perguntavam sobre
eles aos familiares que assistiam à encomenda. Claro! O silêncio
era de respeito. As diferentes informações sugeriam trocas
de folhas. Embora todas parecessem absolutamente iguais, cada uma identificava
melhor um nome do que outro, sem dúvida. E esse momento, o das folhas
cinza, prolongava-se, como se não houvesse unanimidade. Folhas cinza
eram trocadas, com alguma rapidez, por outras absolutamente iguais, embora
com outros significados. Não havia acordo entre os diferentes apodos.
E o doce corpo inerte só balançava um pouco, discretamente,
enquanto trocavam as folhas.
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COMENTÁRIOS
A estrutura desse
conto é a de uma story short, da espécie sketch - "uma
narrativa descritiva estática, representando um estado: como é
ou está alguém ou alguma coisa, com personagens não envolvidas
em cadeia de eventos; são retratos ou quadros ou caracteres soltos."
(Nádia B. Gotlib, In Teoria do Conto"). O olhar do narrador é
semelhante ao de um miniaturista, na apreensão das cores, dos desenhos
em arabesco. Excelente! Um primor!
DULCINEA SANTOS, Crítica literária.
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