Luiz-Olyntho
Telles da Silva Psicanalista |
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UMA VIAGEM AO BERÇO DA CIVILIZAÇÃO
OCIDENTAL
SOBRE O α DE JOSÉ EDUARDO DEGRAZIA
Luiz-Olyntho Telles da Silva.
novembro/23
Quando
nos ocupamos com a poesia, a preocupação é com o ser.
O poeta busca recolocar as questões filosóficas para além
da metafísica.
É
o que encontramos na parte alfa de As cidades conquistadas, de José
Eduardo Degrazia. Médico de formação, ele sabe que limpos,
bem arejados e ensolarados, os homens desenvolvem-se melhor, e, artifex
nascitur, descrevendo os diferentes caprichos de nossos semelhantes, como
diria Ezra Pound, ajuda-nos a melhor conhecê-los.
Viajante,
ele conta suas andanças, em parte como Marco Polo, descrevendo seu
próprio percurso, mas também – temos de reconhecê-lo por
seu entusiasmo –, como Camões, cantando a viagem de outros nautas.
Aqui,
ele viaja à Grécia, berço da civilização
ocidental. E lá, do alto da Acrópole de Atenas, com suas
altas colunas erguendo-se em direção ao azul do céu mediterrâneo,
o poeta invoca a musa da Fortuna. Responde-lhe Tyche (Тύχη), deusa da dita e da desdita, abrindo
para ele uma fenda no Real, como diria Lacan, para que ele possa ver, além
do freudiano princípio-do-prazer, aquelas imagens antecedentes ao
próprio pensamento e mais próximas do não senso característico
da fala oracular. E eis que seu olhar, vagando no tempo, estende-se ao sul,
rumo às ilhas do Egeu e às suas particulares culturas, especialmente
Cós, Rodes, Creta e Ítaca.
A linha
mestra é soprada pelo tear de Penélope à espera de Odisseu.
Enquanto ele não chega, enquanto as promessas não se cumprem,
a tela tecida durante o dia, como as sucessivas culturas que um dia viram
a luz, é desfeita nas noites do tempo, como os homens que nascem e
morrem, as repetições assinalando o imo do sapiens.
Bem ao
sul, a maior das ilhas gregas: Creta! E ao sul de Creta, Festo. Marcas da
passagem do humano, guardadas pela noite, estão aí desde cento
e trinta mil anos, transformados em pedra e logo em areia. Na aurora
do trigésimo século surge a civilização minoica.
Minos, o amante da matriarca, forte como um touro, dita as regras. Domina-se
o bronze. Surge a escrita com símbolos que se repetem, de forma organizada,
linear, fazendo-nos pensar em uma estrutura, embora ainda não os decifremos.
Descoberto no início do século XX, o Disco de Festo,
daquele período, mostra suas duas faces com símbolos estruturados
em uma linha circular espiralada. Em seu centro, Degrazia lê – avant
la lêtre – a letra a, e logo pensa nela como um alfa, a
primeira do alfabeto. Verdade que a forma do alfa minúsculo, com sua
linha cruzada, antecipa a curva de lemniscata, os suspensos laços
simétricos descritos pela primeira vez em 1694, por Jacob Bernoulli,
a partir da modificação de uma elipse e, desde então,
tomada como símbolo do infinito, enovelando o tempo.
Se a
vida resulta sempre de um cruzamento, a letra nos permite investigar tanto
o passado quanto o futuro. Com ela, viajamos no tempo. Desde aí, contudo,
a escrita é enviada, não só como mensagem na garrafa,
para quem a encontre, mas, principalmente, como registra o poeta, para
quem a entenda. Garret Owens, que acreditou ter decifrado alguns de seus
símbolos, leu nesse disco um hino a Astarte, uma antiga deusa do amor,
originária da Fenícia e conhecida no Egito como Isis e na Grécia
como Afrodite. Aquela forma de til, repetida três vezes na lateral direita
do círculo que, para Degrazia, ajuda a conformar a letra a, é,
para mim, como o mycellium formado pelas micorrizas enraizadas pelo
tempo das diferentes culturas.
Ah! O
amor. Ainda em Creta, seu olhar, como forma de teoria, de θηωρἱα, volta-se um pouco à direita,
e aí, por entre as nuvens e a névoa, entrevê, nos altos
do monte Ida, refulgindo nas estalagmites de uma caverna, Rea parindo Zeus
para logo escondê-lo da voracidade de Cronos.
Com Zeus
sobrevivem seus filhos, embora cada um deles com a mesma sina: todos terão
seu tempo e haverão de morrer.
Para
nosso poeta-viajante, o tempo se materializa nos vinte anos da ausência
de Odisseu, todos eles marcados pela incerteza. Aos dez anos de luta, sucedem-se
os outros dez da viagem de volta. Peripécias da Ilíada,
peripécias da Odisseia, a história de um retorno para
o futuro. As formigas que marcham pelo oito infinito andam sempre para a frente,
como desenhou M. C. Escher. Enquanto isso, Penélope, sempre insatisfeita,
espera, e o filho, por sua vez, precisa de um pai, de um modelo. Telêmaco
é o artista que começa copiando o pai.
Como
o dia não é sem a noite, a vida não é sem a morte.
A atenção do poeta gira para o norte e, na fronteira com a Macedônia,
na Tessália, tem notícias dos amores de Apolo com Corônis.
Deles nasceu Asclépio, pai da medicina, desde o parto lutando com
a morte.
Em Rodes,
nos altos, a Acrópole de Lindos retoma a cultura dórica de dez
séculos antes de nossa era. Reina aí Athena, a deusa da sabedoria,
que a todos inspira. As sete vidas de um gato, entrevisto em uma pedra
do templo, leva a pensar que, na vida, é preciso tempo para tudo,
mesmo para descansar. Uma das sete vai--se nisso. Os mitos dando conta do
sempre.
Testemunho
da necessidade social do homem são as pedras, as colunas da Ágora
de Cós. Em frente aos santuários de Afrodite e Hércules,
elas ainda guardam as fragrâncias do Mediterrâneo: mel, flores
e frutos que
O mercado
perfuma e derrama,
enquanto as cores de sua bandeira drapejam uma Mistura de nuvem e céu. E que
dizer desses aromas vividos em Oromedon? Nesse paradisíaco restaurante,
digno do descanso de um Titã, o poeta fez uma libação
ao seu mestre Dyonélio Machado, uma versão particular de Hipócrates,
que também viveu aí, enquanto o vento lhe mussitava as eróticas
odes de Anacreonte.
Mas a
tapeçaria do destino tece diferentes traçados.
Depois da Guerra de Troia, a Odisseu, vencedor – como conta Homero –, tocou o nostos, o retorno como tempo de nova partida. A Eneias, vencido – contou--nos Virgílio –, coube a fundação de uma nova Troia. Sua origem divina daria olímpica ascendência ao Império Romano. Estava escrito nos relevos de seu escudo, fruto das forjas de Hefesto, o qual, entre outras antevisões, previa também o destino de César, tornado Augusto na Batalha de Action. Mas o
poeta não quer saber de seu destino, basta-lhe a vida e os adeuses,
seguindo a estrela dos mortais, como naquele verso de Virgílio, antecedendo
a saída da frota de Eneias:
incerti
quo fata ferant, ubi sistere detur
(desconhecendo aonde nos levasse ou onde nos daria pouso o fado). Morto
o pai de Eneias, e enterrado na Sicília, do velho Anquises, herdeiro
dos valores da Gália Cisalpina, resta sua inspiração,
a mestria que Telêmaco esperava de Odisseu. Com ela poderá atravessar
todos os perigos, vencer a monstruosa Cila e ultrapassar os redemoinhos de
Caríbdis, até aportar no doce Tibre. Então, o que o poeta
quer é ter a força necessária para, como Eneias, ser
sempre capaz de vencer os obstáculos, reerguer-se dos escombros e
conquistar novas cidades...
[...]
com as mãos cheias de esperança, poesia e lembranças de outros tempos, |