Luiz-Olyntho Telles da Silva  Psicanalista



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SONHO DE AMOR
SOBRE O LIVRO
LUTO EM CARNE VIVA
DE IONE RUSSO
Porto Alegre, AGE, 2018.

Luiz-Olyntho Telles da Silva
Îtininga, outubro de 2018.

Faz escuro, mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.

(THIAGO DE MELLO.)




O livro Luto em carne viva, de Ione Russo, é um hino ao amor, mas é também um libelo contra a injustiça, contra o pouco caso das instituições e das autoridades em relação às necessidades de seus cidadãos.

Luto em carne viva conta a história de uma mulher só, contra o mundo. É como a luta do exército de um homem só, descrita por Moacyr Scliar, mas, diferente de Mayer Guinsburg, o personagem que quer construir uma utopia socialista em pleno Bom Fim, Violeta, a violada personagem de Ione Russo, só quer resgatar a vida de Miguel, seu marido, das garras da morte e, para isso, mais que providenciar e organizar toda uma equipe médica especializada, precisa lutar, na Justiça, com as empresas de saúde que fazem de tudo para não cumprir os contratos.

Miguel é, antes de tudo, um homem bom. Administrador de empresas, para melhor exercer seu trabalho, dorme uma noite no escritório, em um pequeno apartamento nos altos do prédio da empresa, e outra noite em casa, com sua mulher. As noites que aí passa, longe da esposa, constituem um ato de economia em prol da empresa que não anda bem. Pois certa manhã, quando o relógio da sala marcava nove horas, Violeta recebe o fatídico telefonema em que, por uma voz desconhecida, fica sabendo que seu marido, o amado Miguel, tinha sido hospitalizado e estava em estado de coma.

A notícia foi como uma pancada na cabeça. Atordoada, Violeta não sabe o que pensar. Não fazia muito haviam conversado por telefone, ainda na madrugada. Estava tudo bem. Mas não havia tempo a perder. Violeta toma seu automóvel e voa os cento e tantos quilômetros que a separam do marido.

Miguel fora encontrado, no apartamento do escritório, desacordado em meio a uma poça de sangue. A perícia já detectara a causa: uma paulada na cabeça. Um crime que até hoje a polícia nunca desvendou e Violeta prefere não insistir. Desprotegida, só, teme que o agressor volte sua sanha também contra ela. Suas forças precisam concentrar-se no restabelecimento do marido.

Mas os dias se escoam, lentos, infindáveis. Os médicos insistem para Violeta deixar a UTI. Dizem que sua presença não ajuda. Violeta, por sua vez, persiste. Constantemente de mãos dadas com o marido, espera sua volta à consciência. Passa uma semana, duas, um mês, o segundo mês, e nada. O coma é muito profundo. Um dia, um leve tremelicar de um dedinho reanima a esperança de Violeta. Miguel está aí. Mas é só um reflexo, dizem os médicos. Não significa nada. Mas não para Violeta. Mais alguns dias e outro tremelico do dedinho. Outro reflexo? Não para Violeta. Para ela, é Miguel voltando de outro mundo, de um mundo ignoto, mas voltando. Passam-se três meses, mais uns dias, e Miguel sai do coma. Com alta da UTI, é instalado agora em um quarto do Hospital.

Seu marido necessita de cuidados especiais. Depois de dezessete anos do episódio em que foi atacado à traição, e de sete cirurgias cranianas, foi perdendo o controle dos esfíncteres, de alguns movimentos e a visão de um olho. Do outro olho sobrou-lhe apenas uma imagem muito restrita e, da memória, só o amor por Violeta.

No Hospital tem tudo de que precisa, médicos especialistas, enfermagem, fisioterapia, dentistas, mas, para ir para casa, ele precisa do atendimento multidisciplinar de um serviço de home care, o que só consegue por intermédio de uma liminar da Justiça. Liminar que a empresa de saúde tenta, a cada vez, com todo seu corpo de advogados, cancelar.

Em casa, embora os vinte funcionários do plano de saúde tirem por completo sua intimidade, ainda é melhor do que estar no Hospital, para onde Miguel precisa voltar a cada uma das cirurgias e a cada uma de suas frequentes recaídas. A cada reinternação o serviço de home care é suspenso e novas lutas pelas Liminares são impetradas. Violeta de um lado, com seu advogado de confiança, e, de outro, os advogados bem treinados da empresa de saúde, sempre tentando impedir o atendimento domiciliar.

De qualquer modo, vale o custo, vale a luta. Em casa é sempre melhor. Podem cantar, sentem-se mais livres para brincar. Há espaço para o bom humor de todos, até de Miguel. E Violeta pode escrever.

Com tinta e papel, rouba para si os poucos momentos de folga, quando Miguel dorme, ou quando a enfermagem se ocupa de atividades específicas com ele. Aí, em sua solidão, Violeta vai contar suas histórias, como quem conta a um diário, desses que no colégio protegíamos com um cadeado a sete chaves. E o que ela assim faz é só por pensar que nunca delas tomaremos conhecimento; por pensar que está escrevendo apenas para si mesma; por pensar que, ao escrever, o que faz é construir uma espécie de corda para ajudá-la a sair do fundo do poço.

Assim, ela nos conta que seu amor por Miguel nasceu nos idos de sua primeira infância, quando recém aprendia a caminhar e só andava de mãos dadas com seu pai. Levados pelas voltas do destino, perderam-se, tiveram outras encarnações, até a sorte lhes dar uma nova chance. Nunca mais se separariam. E, agora, a morte queria roubá-lo. Não conseguirá assim tão fácil. Violeta lutará sempre, até o fim. Sua força vem dessas lembranças. E não é sempre desse modo? O que importa da vida, como um dia disse Garcia Márquez, é o que nos lembramos para poder contar. Também para Miguel é assim.

Um dia ele acordou delirante, acreditando ter uma prova para fazer na Escola. Sua memória, movida por antigas enervações, revelava agora as preocupações de outros tempos. Mais fácil perguntar se foi aprovado para a escola do que para a vida! Neste momento, uma pergunta valia pela outra. E Violeta, em um daqueles dias, conta dos percalços de uma viagem que os levou a São Paulo para consulta com um especialista, e lembrou também de um passeio que conseguiram fazer, de uma vigem feita ainda antes da tragédia, quando ainda podiam sonhar juntos com o futuro: passando por uma igreja, no mesmo momento em que um par desconhecido se casava, Miguel, que insistira em entrar, tomando carona na pergunta do padre aos nubentes – aceitam-se um ao outro? – e, olhando ternamente para sua noiva, tira do bolso uma caixinha e, dela, um anel que logo coloca no dedo de Violeta. Como não amar um homem assim?

Recolhida na rouparia da casa, transformada agora em seu secreto escritório, enquanto escreve, Violeta ouve o Liebestraum nº 3, de Franz Liszt. Como nas duas peças anteriores, as de números 1 e 2 do compêndio de três peças para piano, intitulado Liebesträume, Liszt exalta o amor. Se na primeira diz de um amor religioso, santo – o Hohe liebe –, mártir que renuncia ao amor mundano, e na de número 2 canta o amor erótico, narrando a petite mort que segue ao orgasmo, na de número 3, a sua preferida, canta o amor maduro. Pois é bem como diz o poema de Ferdinand Freiligrath, que serviu de base para esse terceiro noturno: O lieb, so lang du lieben kant. – É verdade, Ame enquanto puder.