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A GRANDE ONDA
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Janeiro
de 2019
Desde o começo do mundo, vi-o dividido. Ao mesmo tempo
em que era um só, também era dois, pelo menos dois. Acredito
que a primeira divisão imposta à minha percepção
foi a de norte e sul, leste e oeste. Mocinho ainda, apaixonado pelos filmes
de faroeste, ao mesmo tempo em que sapateava no cinema, torcendo, junto com
toda a plateia adolescente, na matinê de domingo, quando Roy Rogers
vinha a galope para salvar a mocinha, também ficava a pergunta do porquê
desta corrida louca para o oeste, para o far West, o oeste distante,
longínquo e perigoso. E do outro lado estava o oriente, ainda mais
remoto, separado por um oceano e mais todo um continente, nos confins da
Ásia, apartado principalmente por uma cultura enigmática. O
oriente era puro mistério e magia. E ainda é! Certa vez, pelos
anos 50, meu padrinho viajou ao Japão e, de lá, enviou um postal
ao meu pai, no qual, à margem, anotou: Verifiquei com cuidado,
não é –, concluindo a frase com um travessão, em
nítida alusão à nossa fantasia de que as gueixas teriam
suas pererecas – que por lá dizem chitsu, pronunciando a palavra
entredentes, como se fosse o som de uma única sílaba, para
referir-se à vagina como um todo, e também gaiinbu, de
pronúncia mais sonora e acento nas doppies do trissílabo, quando
se referem apenas à vulva –, tal como seus olhinhos estreitos, atravessadas.
Ledo engano! Nessa época, estava lendo o romance biográfico
de Lady Wu, do Lin Yutang, muito impressionado com a dureza de caráter
dos personagens, o mais das vezes tão sombrios como o oeste ao pôr
do sol. O mundo estava dividido também entre homens e mulheres. E haviam
mulheres cujas atitudes pareciam masculinas, e também homens cujo
comportamento parecia mais feminino do que outra coisa. Sócrates dizia
que todos os homens são mortais, e sempre entendi que as mulheres também
estavam aí incluídas. De modo que, assim como o mundo, que
é um e também dois, os homens também formam um, como
espécie, e dois, pelo menos dois, como gênero. E também
têm os pobres e os ricos, uma divisão que se mostra claramente
no campo econômico, mas também no campo do saber, da saúde,
da inteligência, etc., etc., tornando-se essa divisão, a cada
campo, cada vez menos evidente. Descobri depois que cada homem traz consigo,
em si mesmo, todos esses tipos de divisões. Como o dia e a noite, algumas
qualidades estão no claro, outras no escuro. Somos delas tão
inconscientes que alguns parecem viver na longa noite do solstício
de inverno e outros ainda nos remotos lugarejos da Noruega onde é extremamente
difícil ver o sol, a qualquer hora da noite ou mesmo do dia.
O oriente, contudo, segue fascinante e, desde as viagens de Marco Polo,
muitos seguiram seu caminho. Aos poucos o leste vai sendo desbravado, como
o oeste americano foi um dia.
Embora não saibamos ao certo como começou o interesse pelo
outro lado, certo é que um dia, por volta de 500 anos antes de nossa
era, o rei Dario, da Pérsia, quis conquistar o ocidente. E se veio,
até com bastante sucesso. A revanche, 200 anos depois, ficou por conta
de Alexandre III, da Macedônia, dito O Grande, que buscou ocidentalizar
o oriente, então o próximo. Falhou de forma retumbante, mas
não só! Também se orientalizou e, como imaginava fizessem
os potentados orientais, exigiu de seus súditos que o adorassem como
a um Deus. – Nem sempre é fácil discernir no conquistado o que
serve do que não serve.
Nos anos 30, Jacques Lacan começou a interessar-se pelo chinês
e nos anos 70 visitou o país do sol nascente, o Japão. Esteve
ocupado com sua escrita e com a forma de pensamento dos orientais, chegando
a dizer que os orientais não precisavam de análise porque pensavam
em si, sempre, desde o outro. Para dizer isso, apoia-se no fato de os japoneses
terem importado inicialmente os ideogramas chineses para sua escrita, o que
eles chamam de kangi, diferente da hiragana, a cadeia fonética
habitual japonesa. Para pensar, um japonês educado recorre à
linguagem kanji. Ao demonstrar esse interesse, Lacan seguiu, de certo
modo, uma tradição francesa de interesse pelo oriente. Napoleão
fora até o Egito, ainda o oriente próximo, no final do século
XVIII. Mas um século depois, os artistas franceses deixaram-se influenciar
pelos artistas japoneses, em especial pelos poetas e pelos gravadores. É
o momento dos impressionistas. Van Gogh, Degas, entre outros, percebem a importância
do movimento japonês. Já não é preciso destruir
o outro para apoderar-se de seus valores. Pode-se aprender com ele. O artista
já não traz o modelo para seu atelier, onde o retrata sob uma
luz ideal. Vai até ele e pinta-o aí, no seu habitat, com suas
próprias cores, ou volta para casa e pinta a impressão deixada
pela cena. É assim que Katsuchika Hokusai pinta, ou melhor, esculpe
as 36 vistas do Monte Fuji. Entre elas A Grande Onda de Kanagawa –
que hoje pode ser visitada no Museu Guimet –, talvez a mais importante para
o movimento impressionista francês. Monet colecionava as gravuras de
Hokusai. Sensibilizado por essa imagem, Debussy compôs a difícil
sinfonia La mer, afastando-se, para tal, o quanto pode, do próprio
mar.
A gravura de Hokusai, em tamanho grande, representa uma grande onda marinha
e outra menor, entre as quais, em um pequeno barco pesqueiro, os marinheiros
se agarram como podem, temerosos do temporal ameaçador e, ao fundo,
vê-se o Monte Fuji, cujo formato a onda do primeiro plano reproduz.
A série foi gravada depois de Hokusai ter saído do atelier
de seu mestre, Shunsho, e ido para o norte. Esse, aliás, foi o último
pseudônimo assumido pelo pintor: Katsuchika Hokusai, que se traduz como
Atelier no Norte.
Hoje, pela internet, é possível comprar uma reprodução
desse quadro, nas mais diferentes dimensões. Encontrei-o citado no
romance O inverno e depois, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Consta
na decoração do escritório da esposa do herói,
logo no início da narrativa, sendo, ao final, substituído por
um quadro de Frida Kahlo. O fio da história conta a trajetória
de um músico que precisa voltar às suas origens para se tornar
um músico e uma pessoa melhor. E, embora a linha do romance seja a
mesma de A grande onda de Kanagawa, se no romance a troca do quadro
representa um fracasso, podemos entender que seu autor aí a coloca
para com ela estabelecer um diálogo.
A gravura conta a saga de Taro e Aki, um casal que, embora muito desejoso,
não conseguia ter filhos. Em certa ocasião, quando havia uma
grande falta de alimentos, Taro saiu com outros pescadores para o mar e foram
surpreendidos por uma tormenta. É a grande onda retratada na gravura
de Hokusai. Todos estão com muito medo no barquinho reduzido agora
a uma casca de noz em meio ao temporal e seguram-se com todas as suas forças
quando a onda gigante cai sobre eles. Mas a onda passa, o mar se acalma e
estão todos bem. Em meio ao silêncio, que agora reina no mar,
ouvem apenas um chorinho e reparam, na coberta do barco, um pequeno pacote
húmido. Taro abre-o com cuidado e encontra aí um bebê.
E nem precisa pensar para saber que é seu filho, um presente vindo
do mar. Em casa, Aki exulta com a notícia e todos ficam muitos felizes
com a presença desse filho a quem chamam Naoki. Passam-se os anos,
Naoki já completou seu sétimo aniversário, mas o menino
não cresceu nada. Continua do mesmo tamanho com o qual foi encontrado
no barco e estão todos preocupados com isso. Naoki também se
pergunta por que ele tem que ser assim, e por que não pode ser filho
de seus pais como o são as outras crianças. Assim andava, até
que um dia, debruçado sobre uma árvore sobranceira ao mar, dando
asas às suas preocupações, surge, à flor da água,
um grande peixe e lhe propõem descobrir suas origens. Naoki aceita
e, para isso, sobe nas costas do peixe que mergulha, avançando em
direção as profundezas do mar. À medida em que afunda,
vai ficando escuro, cada vez mais escuro e Naoki, com medo, pede então
ao peixe que pare, ele quer voltar para a casa de seu pai. Ato continuo, o
peixe para e, num átimo, transforma-se em um dragão que o transporta
de volta à praia. Ao olhar para trás, Naoki já não
vê o dragão e o mar está sereno. O menino corre então
para a casa dos pais e, ao encontrá-los, vê que sua felicidade
deve-se ao fato de terem visto que ele tinha crescido.
Por isso, no Dia das Crianças, comemorado lá em 5 de maio,
e chamado de Koï Nabori, as mães portam birutas no formato
de carpas. Koï Nabori, em japonês, é como a nossa
piracema, e contam que um dia, em sua subida para as origens, uma jovem carpa,
depois de muito lutar para vencer a correnteza, transformou-se em um dragão
que, desde então, foi tomado como símbolo da coragem.
Como se vê, algo do ideal foi preservado nas inovadoras gravuras de
Hokusai, enquanto, por outro lado, o romance de Assis Brasil nos mostra que
uma simples visita às origens não é garantia de crescimento.
A psicanálise, desde a invenção de Freud, viu importância
nesta visita às origens e propõe a figura do analista como um
acompanhante atento para que o viajante possa chegar ao lugar que a melhor
educação o teria levado, ou, como poderia se dizer com o recurso
kanji, se vale a metáfora, ao encontro do sintoma que
lhe foi fixado.
É algo assim, tenho a impressão, que deveríamos aprender
do oriente, uma tradição para ensinar a nossos filhos, consistente
com a bravura para enfrentar a vida, pois há valores que nunca mudam.
Um deles, é que para sair do fundo, só com a coragem de um dragão.
Afinal, não é verdade que, em nosso continente, embora ocidentais,
vivemos no lado oriental, no lado em que o sol nasce?
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A Grande Onda - Katsuchka Hokusai
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