Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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O ENGANO DE ÉDIPO
Ensaios sobre a prática da psicanálise

Porto Alegre, Movimento, 1917, 184p.

Dulcinea Santos1
Recife, maio de 2018


    Desde o título, seguido de seu subtítulo – O engano de Édipo: ensaios sobre a prática da psicanálise – já nos é passada a ponta do fio que deve guiar nossa leitura: a psicanálise tem como objeto algo da ordem do engano; o título também aponta para a pertinência do campo: campo da fala freudiana, desde os começos, quando Freud viu no Édipo Rei o núcleo das histórias de suas pacientes histéricas: o desejo, quanto ao objeto amoroso.
    Quem conhece o mito, sabe que Édipo, sem o norte consciente do caminho por onde seguia, alcançou-o justo na meta que o Oráculo lhe traçara: mataria o pai e casaria com a mãe, pagando caro por este erro grosseiro: privara-se de seu campo de visão! Mas vale fazer, desde já, uma advertência aqui, concernente à especificidade de cada área do saber, evitando um engano hermenêutico: o Édipo de Sófocles não é o mesmo Édipo de Freud. Com acuidade, no artigo que trata do passe e fim de análise – O público e o privado - Luiz-Olyntho estabelece uma distinção legítima entre o mito edípico - em que o sujeito angustiado é confrontado com a questão da Sfinx: o que é o ser? – e a psicanálise, na qual essa questão vai bem mais adiante: para o sujeito desta, diz: a saída é o desser, o desêtre pode passar por aí. Conforme argumenta, no artigo O engano de Édipo e a formação do analista, Édipo, ao cegar a si mesmo, evidencia o cego que já era; assim, confirmado pela cegueira posterior, esclarece-nos ele, está fixado no engano porque não sabe ver na apate uma etapa. Trata-se do neurótico que se encastela porque acredita que não pode mudar seu destino. Ora, vamos encontrar Édipo, em Colono, caminhando, miseravelmente, como um suplicante, tendo a filha, Antígona, por seu guia. Sua leitura, portanto, não se afasta da perspectiva do imaginário grego antigo, está de acordo com a Moira trágica dos gregos. Édipo é herói trágico, daí não escapa! Conforme observa Luiz-Olyntho, em O analista na sociedade, o sujeito da psicanálise, ao contrário, ao reconhecer a manque à être, poderá, então - no encontro com o Real de seu desejo – seguir a trilha que vai da miséria neurótica à infelicidade comum, realizando a meta da psicanálise; por sinal, esse é um título de um outro livro seu. Ou seja, para a psicanálise, como está dito no artigo A questão do estilo: Não se trata de um destino traiçoeiro escrito desde todo o sempre nas estrelas. As estrelas apenas representam o Real de um gozo ao qual o sujeito está preso. Para o sujeito da psicanálise, há o desêtre como possibilidade de realizar seu destino.
    No livro Mito e tragédia na Grécia antiga, os helenistas Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, no capítulo Édipo sem complexo, discutem a questão da especificidade desses dois campos, sustentando que o mito e o drama gregos prescindem da decifração psicanalítica. Eles acusam Freud de não estar historicamente bem situado, uma vez que a matéria da tragédia não é o sonho, para eles, essa é uma realidade estranha à história, mas sim o pensamento social peculiar de uma cidade do século V. Segundo eles, o que se deve ver em Édipo é um thauma, um deinon, um monstro que, ao mesmo tempo, é culpado e inocente, que domina toda a natureza por seu espírito industrioso, mas que é incapaz de governar-se,
graças a um delírio enviado pelos deuses. Acusam Didier Anzieu, ao interpretar a peça - ÉdipoRei  - em Les temps modernes, em 1966, de ter procedido como Freud, por redução e simplificação. Segundo eles, o contraste entre a permanência da ordem divina e a fugacidade da vida terrestre é que constituem o terreno no qual o mito se enraíza e onde é preciso situá-lo para compreendê-lo. Edipizar os temas lendários, fazer Édipo partir para realizar seu destino decorrente de uma elaboração fantasmática, cumprindo o desejo do incesto e o parricídio, é, para eles, interpretação que vai de encontro à própria intenção da obra. Segundo sustentam, as razões de Sófocles são de outra ordem, pois Édipo acreditava serem seus pais, de fato, Pólibo e Mérope - filho de rei, nascido para um grande destino; assim, ao ouvir que era filho suposto, o que temeu, argumentam os dois helenistas, foi o sangue do qual se envergonhar, por poder provir de uma origem baixa. Dizem Vernant e Naquet que o oráculo não engana, apenas dá ao homem a oportunidade de errar, que ele não respondeu à indagação de Édipo sobre sua filiação, apenas antecipou a predição: dormirás com tua mãe, matarás teu pai.  Para eles, enfim, Édipo se define com uma altiva segurança: aquele que decifra enigmas, daí que seu drama consiste, de certa forma, dizem, em esclarecer um enigma policial: quem matou Laio? Procede daí a phthónos, a inveja do poder de Creonte; a hýbris própria do tirano, que é a razão da perda de Édipo e constitui uma das molas da tragédia; a polução, que faz de Édipo um monstro de impureza; e o pharmakós, o bode expiatório que deve ser expulso da cidade, para livrá-la da impureza. Enfim, trata-se de uma perspectiva conforme as categorias do imaginário grego, carreando o pensamento do século em que se insere a peça.  
  E esse, como podemos observar, é o modo de ocupação do Autor desta obra - O engano de Édipo: ensaios sobre a prática da psicanálise – para a justa apropriação de alguns conceitos da psicanálise; consistentemente, está sempre atento à especificidade da teoria e práxis analítica. Vamos encontrá-lo aqui num trabalho diligente com as palavras, para bem discernir as categorias da Psicanálise, assim como o fez: para a mitologia, a Moira; para a psicanálise, a Protofantasia, para usar um termo de Freud. Ele chama-nos a atenção para essa questão no artigo O analista na sociedade. Por exemplo, ao analisar a palavra divã, no primeiro artigo, A abertura da seção clínica, parte desde a etimologia grega, com clinamen, até a composição lacaniana da palavra direvent, para divã, declinando aí os elementos incrustados nessa palavra-valise, e adentrando, a seguir, nos meandros de cada conceito que implica o objeto de sua análise – o une-bévue. Como Lacan o fez, como observa Luiz-Olyntho nesse artigo, fidedignamente, está sempre voltando exatamente ao pé do que disse Freud. Em relação ao elemento mórfico vent, de direvent, aludindo ao modo de apropriação da língua, no artigo O sublime e o ridículo, com erudição, v.g., detém-se na palavra Cannes, a cidade onde esteve a convite de Spirko, para participar de um Colóquio, passa pelo nome próprio, o Canal da Mancha, tratando agora de Freud e Dom Quixote, associa o último vocábulo desse nome próprio ao catalão mancha - o fole para produzir o vento -, para, afinal, desaguar, na construção lacaniana do enodamento borromeu. Ou seja, peguemos, agora, o Autor pelo pé aqui: ei-lo nesse Canal - leiamos Canal em anagrama e temos Lacan -, assim unido a Freud: Freud/Lacan, aliás, esse é mais um título de seus livros: Freud/Lacan: O desvelamento do sujeito.
 Enfim, para ocupar-se com a psicanálise e para bem caminhar pela práxis analítica, trilhando pelo desfiladeiro dos significantes linguageiros, não há como fazer de outro modo senão – e repetindo-o, com os pagos do gaúcho que ele é –, como o fazem os potros xucros durante a doma: saracotear, que é o mesmo que peneirar, no bom manejo de quem, por fim, aprende! Aliás, esta é a maneira como ele confessa escrever, em O sublime e o ridículo, quando refere Da Vinci, ao descrever a escultura: ele acreditava que a coisa estava lá, bastava levare, bastava desbastar, tirar a cobertura (p.58). Ou seja: bastava peneirar – sinônimo de saracotear, como analisa, para deixá-la à claridade do sol! E é assim como dá conta do seu dito, que encima o artigo: Quem sabe faz, quem não sabe ensina.
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1. DULCINEA SANTOS é Crítica Literária.