Luiz-Olyntho Telles da Silva  Psicanalista



APRESENTAÇÃO
DE LIVROS





Apresentação @
Dados biográficos @
Publicações:
Artigos
  @
Apresentação de Livros @
Livros
@
Traduções @
Conferências @
Textos psicanalíticos @
Notas psicanalíticas @
Ensaios de literatura @

Contos @
Crônicas @
Atividades @
Comentários e contato @
Fortuna crítica @
Fotos @
Links @


TERRA ESTRANGEIRA INTERIOR
SOBRE O POEMÁRIO DE BERENICE SICA LAMAS

Luiz-Olyntho Telles da Silva

o passado é sempre presente
no Cronos da existência
a semente do futuro também

                                                                     (BERENICE SICA LAMAS)



                    

Quando um poeta se volta para revisitar sua própria obra, seus leitores precisam também retornar a esses poemas e relê-los com os olhos de agora. Eles nunca mais serão os mesmos das primeiras leituras.

Aqui, no seu Poemário, Berenice Sica Lamas faz esse caminho de volta, desde seus últimos poemas, até então inéditos, retroagindo em direção às suas primeiras publicações, desde 2013, até 1999, passando por onze títulos diferentes e, por último, incluindo aqueles poemas reunidos em coletâneas organizadas por outros.

Esse percurso, por si mesmo, pode ser entendido como uma metáfora de sua viagem à sua história, à sua infância, ao interior de si mesma. É o seu retorno, o nostos de Berenice, tema que se mostrará em grande parte de seus poemas.

Preparando-se para essa viagem, a poeta invoca a bênção de seus pares, recolhendo deles as palavras que lhe servirão de bússola em sua rota. Aqui, seus padrinhos são Stéphane Mallarmé e Hilda Hilst. Do primeiro, a assertiva escolhida é retirada de uma anedota contada por Paul Valéry, bem como era do gosto dele, decorrente de uma conversa travada com o pintor Edgar Degas, quando este dizia que, embora tivesse muitas ideias, não estava conseguindo escrever os pretendidos poemas, momento em que o grande poeta simbolista lhe contesta com a frase epigrafada (Não é com ideias que se fazem versos, é com palavras.). Claro, Mallarmé – na opinião de Lorca, o melhor aluno de Don Luis de Góngora –, não pode estar desdenhando das ideias. Sabe que, sem elas, as palavras ficam soltas, sem sentido, mas que, para um poeta, de modo diferente do que para um desenhista, um expressivo vocabulário é especialmente requerido. Convém lembrar que aqui, no Brasil, o acesso a Mallarmé se dá pelo diálogo com Manoel Bandeira, com a discussão entre o formalismo e a poesia inspirada. Nossa poeta, ao mesmo tempo em que aprecia as reflexões e algumas das ideias mallarmianas, também valoriza na poesia a possibilidade de delirar, como diz em sua nota preliminar, mais ao gosto de Manoel Bandeira, que equilibra o delírio com a razão.  O verso de Hilda Hilst (Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.), por sua vez, é o último do poema III, publicado inicialmente em Alcoólicas, de 1989. Aí, H.H. canta a vida, personificada em uma senhora, sua companheira de sempre. Para Berenice Sica Lamas, essa senhora pode apresentar-se em sua face selvagem.

Embora o livro esteja organizado para ser lido na ordem proposta, pareceu-me importante começar sua leitura pelos finais, pois, nesta última recolha, seu primeiro poema, um de seus mais recentes, de 2015 – premiado pela Sesmaria Cultural de Dom Pedrito, e publicado pela revista Braças Literárias –, em sua primeira estrofe, antecipa ao leitor o que ele encontrará nos outros poemas:

        embebida no passado
        vivências te compõem
        como caixas chinesas
            uma dentro da outra
        como matrioshkas russas
            encaixáveis da menor à maior (p.188-89)
É que a poeta, transfigurada em um fotógrafo (p.190) pós-moderno, vê a si mesma como um duplo, ainda que aos pedaços, mas pedaços que lhe permitem ser quem ela é. E a luz a iluminar esses instantâneos é tão mágica quanto a da Lâmpada de Aladim (p.192), ou a dos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles. Assim como as águas de março (p.204), para Tom Jobim, encerram o verão, para Berenice essas águas são uma alegoria da menina que, crescendo, vai deixando a inocência infantil para trás – o tempo paradisíaco que tanto buscara Proust. Os botõezinhos que avultam em seu peito (p.204) representam, como as sementes de Deméter, o grão da transição. Ora silêncio, ora linguagem. É tempo de criar. Da parabolé (παραβολή), da aproximação, da comparação, da semelhança, da parábola, mesmo da alegoria e até do desvio e do choque, surge a palavra, como logos (λόγος), e também como rema (ῤῆμα), a palavra enquanto dito, e, para isso, olhos de escutar e ouvidos de enxergar – como poderia ter dito o Pantagruel, de Rabelais –, são requeridos (p.194); sem isso, como reconhecer a advertência de Anaïs Nin, de que a escritura feminina nasce das células uterinas da mente (p.195)? Assim, a poeta já pode sonhar com a boca molhada do homem e, ao acordar, ver que ele está deveras ali, ambos dissolvidos nas galáxias do amor (p.197). Depois, ao transfigurar-se em árvore – talvez na figueira da qual foi feita a cama de Penélope e Ulisses, ou mesmo aquela outra, da qual nos conta Orhan Pamuk, capaz de lembrar as histórias dos que vinham se abrigar à sua sombra –, Calíope, a Musa da poesia épica, da ciência e da eloquência, cede espaço às Moiras (p.198). Se o tempo é chronos (χρὀνος), também é kairós (καιρός), a ocasião, a oportunidade, o tempo presente e conveniente, e é também aion (αιον), a duração da vida (p.201). A morte se anuncia. Pois que possamos ver a grande mestra com clareza, por mais que assuste. E o que temos, é:
        [...] o surdo rumor da neve
        leitosa rodopiante
                a brancura pondera
                a indiferença tomba
        em leves flocos
        e se instala o vazio o nada o manto (p.202).
E então, na última página, como quem segue a recomendação da epigrafada Hilda Hilst, a receita de um Drinque: Sweet Blade poético. Licores mixados ao som do Bolero, de Ravel, e as poesias de Romano Santana, Cesare Pavese, Eugenio Montale, Adélia Prado e a destacada Hilda Hilst.

Na estruturação de seus poemas, serve-se tanto de quadras como de tercetos, dísticos e monósticos. Deveras impressionada pelo concretismo, vale-se das diferentes margens das estrofes, e mesmo de versos para melhor expressar sua ideia, buscando sempre o essencial. Para usar uma expressão de Maurice Hewlett, citado por Ezra Pound, ela busca a proximidade dos ossos, nearer the bone. Seus versos tendem a ser livres, porém lembrando sempre, como disse Eliot, que nenhum verso é livre para quem queira fazer um bom trabalho. Sua escassa pontuação obriga o leitor a deter-se em cada palavra e, assim, sentir o ritmo de cada poema.

Na antologia Dança 50, comemorativa da passagem de seus cinquenta anos, é como se a inspiração de Berenice, que morou e trabalhou na Itália, entre poetas, viesse-lhe de Dante. Como o poeta, ela também poderia começar assim:  Nel mezzo del cammin di nostra vita, e depois, no segundo verso, diria que, por sua vez, ho trovato un secondo punto bianco. O primeiro, brotando com os primeiros dentes das róseas gengivas dos bebês; o segundo, transparecendo como um fio de prata em meio aos cabelos (p.185). É hora de sua mensagem fazer-se ao mar. Pois que sua garrafa vença os pélagos e alcance o outro.

Morder a polpa, do mesmo ano de 1999, é um livro todo ele de sua autoria. À Marcela Villavella, nos comentários que faz, seus poemas evocaram-lhe William Blake (p.172), e foi muito apropriado. Não é ele quem canta O Matrimônio do Céu e do Inferno? Anatole France, em A revolta dos anjos, também deixa claro que, quando um anjo cai, é por ter, digamos assim, tropeçado na literatura. De qualquer modo, Berenice Sica Lamas não deixa escapar a relação anagramática – ainda que imperfeita (anafônica, para usar uma expressão de Jean Starobinski) –, entre semântica e satânica (p.192). No entender de Pierre Menard, esse personagem borgiano, Cervantes escrevia à la diable. Se o Diabo pode provocar os erros de impressão, como bem registrou Freud, ele é também o responsável pelas transgressões, e se o escritor, se o poeta não transgride, nunca alcançará um estilo próprio. A conexão entre céu e inferno, como bem provou Saramago, é imprescindível (p.176). Como fez Ulisses, é preciso visitar o Hades enquanto terra interior. Nesse propósito, lembremos que Freud conceituou o reprimido como terra estrangeira interior. Está aí a essência das diferentes personas da poeta (p.173). São suas constituintes, suas origens, das quais de nada adianta querer sparire (p.174), pois não há como desaparecer. Quem não viveu outras vidas, não tem como viver a sua. Se tem que, por vezes, metamorfosear-se em um touro, que seja na forma de um Lamassu, o touro alado (p.175), androcefálico, que fez a glória dos palácios do Iraque, desde o tempo de Sargão II. E que não estranhemos se ele borboletear sob as reverberações de um Manoel de Barros. Seu erotismo resulta, então, de uma entrega ao outro e enuncia-se assim:                    
        rebento
        qual
        gomo
        sob teu dente

Em um crescendo, seu corpo se umedece pelo devir de uma palavra, de um beijo:
        os lábios incharam
        como se preparando
        para um grande uso

Como em Sevilha, às cinco horas da tarde, ao início das touradas, tudo está tenso. E ao fundo, com Lorca, ouve-se o coro cantando: Que desperte a noiva a manhã das bodas.

Ângulo & dobras, de 2000, introduz uma modificação: os poemas têm títulos: os tempos da vida, ela mesma, guerras, um parto, o pôr de sol, partes de um corpo. O conhecimento da natureza inicia pelo conhecimento do próprio corpo. Mãos e pés se movimentam, têm gosto, a barriga faz barulhos e produz outras sensações, o coração pulsa. Na natureza, cenas nos comovem, uma lágrima furtiva rola pela face. Nascida poeta, Berenice Sica Lamas vê poesia em tudo, como se seus poemas estivessem, desde sempre, imersos na natureza. Algo como a sensação experimentada por Miguel Ângelo, ao ser-lhe apresentado aquele bloco disforme de mármore, no qual nenhum outro escultor vira antes coisa nenhuma. Aí, onde parecia ser o nada, Buonarroti enxergou o David; depois, só precisou levare. Por isso, seus poemas, como regra geral, não têm letras maiúsculas nem ponto final, são trechos de um grande poema, sem início nem fim. Para ela, a realidade e a imaginação são como momentos diferentes em uma mesma face, tal como na cinta unilátera de Möbius, e ambas podem causar a mesma impressão.

Aqui, na seleção de Ângulos & dobras, predominam os poemas em prosa, tão ao gosto de Baudelaire. Em seu poema mãos, a poeta mostra como seu erotismo vem de deixar-se tocar pelo mundo, pois, para ela, é o destino – maktub, como dizem os árabes, estava escrito. Nele, separada por um ponto final e iniciando com uma letra maiúscula – um dos raros registros de maiúsculas no livro –, sua última frase lembrou-me o poema em prosa As vocações, do próprio Charles Baudelaire, mas agora – como diria o poeta de As flores do mal –, como estais longe, paraíso perfumado. Mais longe que a Índia e a China.

Em Inventário de ausências, de 2004, a metamorfose da poeta é uma gata a ronronar nella finestra (p.179), seu indiscreto posto de observação, como diria Cornell Woolrich, de A janela indiscreta. Desde aí, vê a construção do mundo com seus olhos poliédricos. Está aí a percepção de Vinícius de Moraes, o operário construindo-se e, insatisfeito com seu quinhão, dizendo não! No olhar de Chico Buarque, o escorregão do trabalhador, desde o alto da construção, só serve para atrapalhar o tráfego, enquanto Baudelaire se aliena na alternância da construção e da destruição. As perspectivas variam, mas, imaginem, se o bater das asas de uma borboleta pode provocar um tufão do outro lado do mundo, o que pode gerar a paralisia das asas de um pássaro? Estagnação! Saber, sabemos, mas como são lentas as conquistas do campo do humano.

Os tercetos selecionados de seu livro Ampulheta, de 2007, são chamados de haicais, mas não por obedecerem à sua forma tradicional japonesa, de 5-7-5 sílabas. Sua forma é livre. Além das alterações das redondilhas, a parte que os japoneses chamam de kigo, destinada a indicar a época do ano, nos versos de Berenice Sica Lamas indicam estados de alma. Agora, a autossuficiência requerida para caracterizar o haicai, a ausência de título, o corte (kiru) entre as duas ideias que precisam estar presentes e a metáfora requerida para dizer o pretendido, de outro modo, essas, estão sempre presentes.

Em
        plenos poderes
        poderes podres
        podres pêssegos (p.150),
podres cumpre a função de kigo. A quebra é provocada por pêssegos e traz junto a emoção desde aí despertada, enquanto a corrupção implícita (o outro modo de dizer o almejado) vem dado pela podridão.

Em 2011, com a publicação de A senhora selvagem, deu-se meu primeiro contado com a poeta. A vate que aí encontrei é uma Senhora plena de si mesma. Passeia pelos jardins literários, colhe as flores que mais lhe impressionam e arranja seus buquês sempre de forma idiossincrática. De Thiago de Mello, v.g., aproveita a forma estatutária para criar seu próprio decreto: De ora em diante, pessoas passarão a saborear o belo sem restrições (p.136). E ela mesma vai dizendo que, para cumprir essa lei, é preciso olhos ávidos de poeta. Para consegui-los, desde a perspectiva de uma chef de cuisine (e também de um cozinheiro da estirpe de Oswald de Andrade, demonstrado, por exemplo, em Dona Branca Clara)*, é preciso colocar na panela, junto ao sal e outros condimentos, uma pitada de percepção aguda (p.163). Graças a essa delicada receita, logo percebeu: ao aportar em Veneza, desembarcava em si mesma (p.165). Sua cozinha, como os velhos laboratórios de alquimia, onde se experimentavam, entre outros elementos, também o vitriolo – que, interpretado como um acrônimo, lia-se como fórmula do ideal alquímico: visita interiora terrae rectificando invenies occultum lapiden vera medicina –, possibilita-lhe novos experimentos. De algum modo há que encontrar a pedra filosofal. Ela permitirá descobrir que nossa identidade é poliédrica:
        corpo
             escritos
                  endereços
        frustrações e esperanças
        o perdido e o (não) encontrado (p.142),
e que a vida, decorrendo entre nascimento e morte, não é sem algo de tormento / de desespero (p.144). Sua oficina é a imagem transfigurada da cidade que, pelos reflexos (para ela, leitora de Joyce, diretamente soxelfer) de seus monumentos, de suas praças e costumes, lhe permitem conhecer sua história (p.145). E que não estranhemos a mistura de palavras e alimentos. A poeta sabe que, assim como a comida melhor satisfaz quando abençoada, as palavras cumprem melhor sua função quando bem-ditas. 

Em Copo de violetas, também de 2011, o destaque é ao transcurso da vida. Na linha do horizonte (p.125), apoio das primeiras medidas do tempo, para a poeta, os períodos se medem em meses, dias e horas. Por aí passam a imaginação, os vendavais, o perfume e o sofrimento. As violentas violetas. São ciclos a dizer da menina, transformada em mãe e na mulher que nunca se consome (p.126). Violentas violetas. Ainda que de dentro para fora, a palavra viola a pele e
        o verso sensível na boca
                sábio paladar
            o botão se abre
                aflora o peito
        absoluta flor aos poros (p.127).
As violentas violetas marcando as pausas, após a menarca seguida pela labareda de um novo Eros (p.155). O mergulho nas realidades da natureza é involuntário, não raro a contragosto, desencadeia raivas, causa feridas. Do silêncio saem palavras que, se podem ser devastadoras, também salvam. Violentas violetas. A vida está sempre em risco sob o gume da palavra. Quem sabe disso melhor que Šahrāzād (p.130)? Resta aos mortais rezar às mães da terra e à orixá das águas, deusas de palavras evocatórias (p.131). Mas a pergunta pela morte nunca a abandona. Com Aristóteles, ela sabe que o destino do que nasce é a corrupção, sabe que não há como escapar e, na forma de parelhas, escreve
        quando findarei
        não sei, em esperas, vida
        horda de escuros luzentes
        horta de ciúmes brasões
        poucas folhas
        à margem de mim (p.132).
De 2012, são Sobre azul papel e O olho do semáforo.
No primeiro, a poeta mostra-se estupefata com
        papéis novos de repente velhos
                berenicelamargens
                     berenicelamascara
                          berenicelamaresia
                               berenicelamasmorra

e, emudecida,
        com olhos de precipício
        ofereço minha mudez
                abraço o nada
                sombras sou agora (p.118).
Como mulher, a poeta é constituída, transgeracionalmente, por sua mãe, pelas avós e bisavós. Nunca é uma só. Salvam-lhe sempre as palavras, na medida em que, não dizendo tudo, a obrigam ir em busca do que falta. Agrada-lhe vê-las saindo do musgo, distraindo-se na algaravia dos sentidos, e ver no
        azul o fundo do verbo
        que despenca em cachos
        dá seus bagos a beber, unguento (p.121).
Então, quando reconhece não possuir o essencial, ela, ulissíaca, clama por seus mortos. Que a ajudem a encontrar-se na babélica subjetividade.

Em O olho do semáforo, reflete sobre o permitido e o proibido. Reverberam aí os versos de Manoel de Barros: A palavra que me aceita, / não aceito. Berenice Sica Lamas, por sua vez, quando quer uma palavra, quer aquela que não consta em dicionário algum, e que seja, na representação, a mais próxima possível da coisa representada, e a um só tempo,
        esférica licorosa
        palavra do olvido (p.112).
Se parecer caótica, não nos preocupemos, sem o caos não há motivo para a ordem, como também o diz nos poemas das páginas 143 e 148. Como a preocupação da poeta é sempre sua relação com o outro, ela precisa de argumentos para dar consistência às suas metáforas. E para mostrar o quanto isso é importante para ela, transmuta-se por meio do epônimo. Sica, são os punhais de madrepérola (p.114)  oferecidos ao outro que, por sua vez, mostra-se insensível até aos seus lápis de cor. Fosse ela recitar um poema de Cecília Meireles, por certo diria assim:
A maior pena que eu tenho,
punhal nacarado, não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.
E não termina sem mencionar que a palavra incrustada na pedra, mesmo coberta de musgos, é para sempre – momento em que não é demais lembrar Moisés: ele foi testemunha de que a palavra, antes de riscar a pedra, foi luz.
   
Em 2013, as publicações de Berenice Sica Lamas intitulam-se Precários restos de madeira e Calendário: viagem poética.

O primeiro trata do lixo. Depois de James Joyce haver aproximado letter de litter, a letra do lixo, e Otávio Paz ter dito dos que andam com las letrinas, que estão próximos de las latrinas, isso já não nos faz torcer o nariz. Todos os poetas trabalham com restos. São como recicladores das sobras do cotidiano. Para nossa poeta, os detritos são destacados por réstias de luz, sobras de bravura (p.105), marcos ancestrais formadores do entulho inconsciente (p.108). Essa é a natureza da qual dói separar-se, como lê nas águas vivas, de Clarice Lispector, estigmatizada desde a louca Penélope, sempre a fazer e desfazer, e, antes ainda, da louca Pandora, a primeira mulher, encomendada por Zeus, e feita por Hefesto, para dar de presente a Epimeteu (aquele que só fala a verdade quando mente) como castigo a Prometeu, seu irmão, por ter dado o fogo dos deuses aos homens; com ela vieram, como um presente grego, todas as calamidades do mundo. Em seu mergulho terra adentro, na direção de si mesma, o que não encontra precisa ser completado com a imaginação, com a fanopeia, de A arte da poesia, de Ezra Pound, especialmente aquela que, como disse Dante, em sua passagem pelo Purgatório (XVII,25), é fruto da alta fantasia (p.110).

O segundo são cortes no tempo. Janeiro, abril, outubro e, passado o ano, junho. Viajando pelos meses, assiste ao desenvolvimento da criança. Em janeiro, as maçãs ainda são um mistério; em abril, os cisnes, como sinos, ressoam; em outubro, o menino a espreita no túnel do taquaral; e depois, em junho, o universo inteiro vibra
        translucide incommensurable (p.97).
Alcançamos, então, seus Inéditos. De entrada, já notamos seu projeto de uma viagem aos penetrais de si mesma. Em seu primeiro autorretrato, confessa: sou todas as partículas que me compõem, desde o verniz da superfície, até a densidade do interior (p.9). O olhar, para ver-se, é o do outro; se um ourives, ela, então, é uma pedra, mineral, excessiva e selvagem (p.10). O tempo, um de seus elementos constitutivos, continua sendo importante, e, em seu transcurso, tudo a conforma dependendo sempre do lado do qual sopra o vento – como sentencia sua anáfora –, como convinha à época (p.22). As mudanças, diz a poeta, vêm de estibordo (p.19), palavra de origem neerlandesa (stuurboord), indicando o lado do leme. Quer dizer, o vento de boroeste é bom quando dirigido com boa mão; se não, pode vir de contravento, de barlavento, soprar de qualquer lado, o tempo será perdido (p.75) e a vida ameaçada. Quando vê, em uma mulher, traços da passagem dos filhos e dos enigmas, reconhece, aí, um espelho de si mesma (p.28). Já vivida, em uma segunda instância, mixadas suas relações, as viagens, um pôr de sol, as experiências da mulher, da profissional, da poeta, aí está ela, toda inteira (p.31), ainda que fruto dos detalhes, das memórias; e, para fazer poesia, repete, nada melhor que a cozinha (p.52), pois aí, como disse Heráclito, também há deuses. Ao mostrar-se ao leitor, desnuda, a poeta quer sua atenção. Ela sabe, assim, que ele também se sentirá lido pelo poema. A emoção, como um uróboro, circulará entre eles (p.12). A passagem pela vida pode ser como, no deserto, estar no mundo da lua: soltos no espaço, nômades conhecedores apenas de um rumo efêmero, o ponto final sempre uma incógnita (p.13).

Sua flor jurídica (p.50) mostra bem o valor dado ao concretismo: não há espaço para meias palavras e vai sempre direto ao ponto.

Para Berenice Sica Lamas, o importante sempre são as perguntas, são elas que resplandecem. As respostas talvez não amanheçam (p.20). Blanchot chega a dizer que a resposta é a desgraça da pergunta (p.34). Lembrou-me de meu mestre, Roberto Harari, que nunca repetia o que havia dito, os alunos que prestassem atenção. Se a vida está sempre se repetindo, a morte, esta é sempre insondável (p.37). Uma questão, antes que respondida, deve abrir para outras. No lugar das respostas, alegorias abrindo para novas interrogações. O desejo, v.g., para a poeta, é também uma entidade, talvez como as ninfas, as náiades, uma sinfonia revestindo seu corpo doce, a soar por igual, todo ele, à espera do amante (p.23). E o amor, um aprende com o outro (p.24), a identificação é completa (p.25), como ela mostra, também, em sua releitura do poema A captura e a morte, de Federico Garcia Lorca. Onde o poeta vê uma criança, Berenice vê uma mulher; a morte, para um, para outro é o gozo; o silêncio, a paixão. Sica Lamas facilita ao leitor a compreensão das metáforas lorquianas aprendidas de Góngora; o quarto que se iriza de agonia é o mesmo, embora o verbo, que em Lorca é do pretérito, para ela é o presente, sem limites, raiando ao aoristo indo-europeu. Seu amante é o leitor e seu convite é uma promessa de gozo (p.27).  A fruição é como a do vinho resultante da lagarada com os próprios pés (p.29).

Ao longo do livro (pp.26, 39, 107, 115 e 121) encontraremos palavras incrustadas de musgos. É que o imo, para a poeta, é um mar pantanoso de sargaços, reino do deslimite (p.39), – termo cunhado por Manoel de Barros para intitular o poema Os deslimites da palavra, no qual presente, passado e futuro estão enterrados dentro de um grilo –, e as palavras que daí saem vêm cheias de musgo. São os restos da natureza desconhecida, da qual toda palavra conhecida está prenhe. Os diastemas demandam inteligência, é preciso inter-legere, ler nas entrelinhas para serem compreendidos. Observemos que essa leitura não é sem a memória, tão imensa quanto a quantidade de estrelas enfurecidas, das quais só a Muralha da Cabeleira (de Berenice – p.41), também conhecida como CfA2, situada a duzentos milhões de anos-luz da Terra (metros a mais, metros a menos), tem, de espessura, quinze milhões de anos-luz, de largura, trezentos milhões de anos-luz, e, de comprimento, são estimados mais de quinhentos milhões de anos-luz, sem falar das tragédias de Racine, com a retomada da história do mundo, dos contos de Poe e de Maria da Saudade Cortesão, poeta e musa do surrealista Murilo Mendes, e cabendo tudo isso, e mais um pouco, na restrita área de algumas das circunvoluções do cérebro de uma pessoa. A memória é sempre o input de toda a construção. Por isso, não surpreende que a felicidade, quando sobrevém, seja breve e leve como a pluma de Tom e Vinícius e que, inesperadamente, sejamos tomados pelo spleen de Baudelaire.**

No poema em que canta o gato (p.42), a poeta nos mostra o processo que torna possível a transformação da palavra no representado: ao final dos versos, nela desabrocha o felino, embora suas unhas cresçam na floresta, como as unhas plúmbeas de Hilda Hilst. Para enfrentar a crua e dura vida, a senhora Sica é um punhal arguto (p.45), filosófico (p.49), e para que essa unha não cresça, e apareça, precisa esconder-se (p.85). Aí, na unha, pode residir o mistério do feminino, sempre ameaçado pela luz da lua (p.43). Daí o valor do desfocado, do barrado, do sinistro e do tremido (p.46). Focado, o feminino sufoca!

Para o balé com o outro, tal como nas pinturas renascentistas, são requeridas duas cenas, uma terrena e outra celeste, o real e o ideal, embora invertidas; é da terra que sobem os perfumes para fecundar o ar (p.50), embora algumas vezes o que fica é o cheiro imoral da fúria humana, tal como retratada por Picasso, em Guernica (p.55). É que a poesia não se faz só do bonito. Poesia também é denúncia. Ela pode estar em qualquer lugar e o olho do poeta é que a faz. Nós a reconhecemos quando faz vibrar o cristal, reinar a candura. Pode ser extensa ou curta, como o primeiro dos aforismos de Hipócrates: a vida é breve, a arte é longa (p.58).

Boa leitura!

* ANDRADE, O.  Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
** Retirada da palavra inglesa para designar o baço, relacionado pelos antigos gregos à melancolia, o spleen foi usado para caracterizar a segunda fase do Romantismo, marcado pela fuga da realidade (p.40).