Luiz-Olyntho
Telles da Silva Psicanalista |
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UM CORPO DE PALAVRAS Sobre O Lugar do Corpo, de
Maria Carpi. AGE: Porto Alegre, 2024, 288 p. Luiz-Olyntho Telles
da Silva Novembro de
2024 70ª Feira do Livro de Porto Alegre Boa tarde a todos! Quero começar agradecendo à Maria
Carpi pelo convite. Quem a conhece, sabe que seu convite é quase uma
convocação, o que muito me honra, ainda mais para vir falar junto com a Professora,
Drª. Maria do Carmo Campos, por quem nutro grande admiração. A imagem diz o indizível. Há que
retornar à linguagem para ver como a imagem pode dizer o que por natureza a
linguagem parece incapaz de dizer. (OCTAVIO PAZ, O Arco e
a Lira) Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: mundo sem fundo. (FERREIR GULLAR, Traduzir-se) Bem vejo que te amo como uma louca.
No entanto, não me queixo de toda a violência dos arrebatamentos do coração. (MARIANA ALCOFORADO, Cartas.) I Pois então, vamos ao
seu O Lugar do Corpo. Ele é mais que um livro, é uma
trilogia, como anunciado na segunda aba do livro. Composta por O Deslugar, O
Corpo Órfico e O
Corpo da Luz, embora
cada uma de suas partes possa ser lida separadamente, seu conjunto nos leva a
ler algo a mais: junto com suas anáforas e suas epíforas podemos compreender
que as palavras jamais dizem tudo. Aliás, ela mesma, a poeta, o sujeito lírico
dessa trilogia, o diz no poema 19, do Canto I do Livro III: A videira da luz não reside num só
verso. Por isso, quando queremos tentar dizer como vemos o mundo, é preciso
fazê-lo uma e outra vez, e mais outra, inventando palavras quando preciso, seja
o que for que queiramos descrever. Aqui, seu objeto é o amor; dona de uma obra
temática, como indicou sua amiga Nayr Tesser, sua trilogia, é um hino ao amor. O título da primeira parte,
O Deslugar, por exemplo, é um neologismo. Contudo,
mesmo não constando no vocabulário da língua portuguesa, nós podemos
compreendê-lo, e, em sua leitura extensiva, revela-se um avanço na língua para
a compreensão dos sentimentos nas relações interpessoais. Não se trata de um
não lugar, nem da falta de lugar. Para a poeta O
deslugar é o exílio de tu-comigo sem estares em ti (poema 27).
E, para não deixar dúvida do que está em jogo, acrescenta: Exílio maior é o amor entre nós / sem
lhe consentirmos o corpo. Amar é acolher a solidão de outrem (poema 2), deste outro que nunca é
sem antecedentes. No poema 13, a imagem do outro lembra-lhe a velada avelã, e, no 18, a amêndoa, cuja
procura não termina com a presença. Como no poema do surrealista Paul Celan, na amêndoa está o nada e, no nada, o Rei! Mas nada disso é para agora, como repete a epífora do poema
21, indo de corredor em corredor (poema 41), como no filme de Alain
Resnais – baseado em A Invenção de Morel,
de Bioy Casares –, O ano passado em
Marienbad: Essas mesmas paredes,
essas mesmas janelas, esses mesmos corredores, em busca de alguma luz. Assim,
a poeta Maria Carpi é como uma borboleta com as asas chamuscadas pelo sol
(poema 40); é como as ervas que por entre as pedras medram em busca da lucidez,
e, consciente da importância de seu trabalho, se ninguém mais lhe reconhecer o
valor, possivelmente inspirada no Evangelho de São Lucas (19:40), fará, como no
poema 53, com a ressonância
da graça, as pedras cantarem. II Os leitores que têm
alguma proximidade com Maria Carpi, por certo já a ouviram dizer que ela, ao
ler seus poemas, muitas vezes não se reconhece como a autora. Pois no poema 65,
quando ela compõe O
meu lugar é o esquecimento / do que escrevi. Estou pronta / para passar-me a
limpo o corpo, a poeta, que é o sujeito lírico da trilogia, refere-se,
em metalinguagem, ao seu corpo de poeta. Como tem muitos poemas guardados, este
não reconhecimento de autoria é o sinal de que o poema está pronto para
publicação. Em O Corpo Órfico ela nos conta dessa sua ausência,
uma ausência, aliás, determinada pelo conceito de poiesis. Diferente de uma práxis, que esta sim requer a presença contínua
de seu autor, a poiesis, seja ela de um vaso, um arranha-céu,
ou de um poema, dispensa seu autor. E cada poeta faz isso à sua maneira. Maria Carpi nos revela
aqui seu processo: No poema 2, lá está seu sujeito poético sentado sob o limoeiro da escuta, vendo-se outra a atravessar o umbral de uma lágrima até afundar os olhos no interior da casa e, como diz mais adiante (no poema 5), descer ao íntimo. Contudo, se nesse caminho precisar
repousar seu arado, estejam certos, não
será por inércia
(poema 11). A criação tem seu próprio tempo. E, muitas vezes, é a terra mesma a
pedir ao agricultor, como nos versos de Luciano Fialkowski: ar, ar! A terra estrangeira interior[1]
também precisa respirar. Seu atravessamento se dá com o corpo, com esse corpo
que, para a poeta, é
solidão, é
alegria, a noite e o dia (poema 19), e, embora seja ausência, nela a poeta está
toda, mesmo que, por vezes, seja apenas uma mão que se estende (poema 49). Eu apenas transmudo o corpo em
palavras, canta no
poema 68. Como se dissesse: Sou linguagem! O corpo da poeta carpiana
está impregnado dos mistérios órficos, os mistérios da vida e da morte, cujos
rituais, ao juntar o
irreconciliável (a constância
e a desaparição)
(poema26), buscam o não esquecimento dos versos poéticos. Pois sim, a morte
também pode atingir as palavras! Mas não se trata de algo como as Cartas Mortas – as Dead Letters do Departamento dos Correios no qual trabalhou por algum
tempo Bartleby, o inesquecível personagem de Herman Melville –, as cartas que
não chegam aos destinatários e são queimadas. Preocupada com o destino das
palavras poéticas, a poeta pode, até por opção, eliminar palavras para colocar
outras em seus lugares e, não raro, eliminar versos inteiros para o bem do
conjunto. Uma experiência sempre dolorosa. Comecei a perceber
isso no poema 35 desse segundo apartado, quando diz que Ser um corpo abre fenda no tempo / sem
tempo. Ser um corpo possibilita / o espírito adentrar-se, em temor
e tremor, / na roçagem do infinito. E depois, quando ela imagina O lugar do corpo frente à mutilação;
frente ao massacre; frente ao aviltamento, voltei ao sentimento de temor
e tremor, do poema
anterior, pois essas palavras me fizeram recordar o título de um livro de Soren
Kierkegaard, no qual o poeta, filósofo e critico social dinamarquês trata das
relações entre pais e filhos. E quem ainda não ouviu dizer que, para seu autor,
o livro é como um filho? Pois aí, em Temor
e Tremor, ele toma como objeto de estudo a relação do patriarca Abraão com
Isaac, o filho de sua longevidade, o filho que deve sacrificar ao seu Deus. E
Abraão, acreditando que precisa mesmo sacrificá-lo, abençoa-o, antes do
sacrifício, como o faz um pai amoroso, para logo depois transformar-se no
monstro capaz de levantar o punhal sacrificial (porque, convenhamos, é melhor
que o filho veja nele um monstro do que perder a fé em Deus). É um momento
decisivo, quando, ao desviar seu olhar para o horizonte, quiçá para não ver
diretamente o teratológico de seu ato, avista o carneiro, quer dizer, avista a
metáfora, avista a outra palavra que se oferecerá em seu lugar, porque cada
palavra é carne de sua carne,
ainda que fora de seu corpo (poema 8). É o que faz o poeta, sempre em busca da
melhor palavra. Embora ele saiba que a palavra que não serve em um lugar,
caberá muito bem em outro contexto, a experiência é sempre dolorida. Vejam seu
reconhecimento no poema 56: Enquanto
ceifavam-se os versos, as
águas cobriam as coisas e as faces. Doía-lhe
mais o estar ainda em corpo do
que o corpo dilacerado de espigas. É que, quando as cortinas do tempo se rasgam, a
intimidade da carne se faz palavra (poema 50) e, ao encarnar-se o verbo, encarna-se na poeta carpiana também
o dom da mortalidade (poema 64), o
que lhe possibilita recitar: É
de meu natural que a morte me
interrompa os passos [...] Inacabar
de amar-te, se recém nascêssemos de
tantos desatinos e loucuras (poema 66). [E] disse o amado em desamor: sou
tudo o que me foi arrebatado. Não
sou a nuvem, mas o detrás da
clausura. E a nuvem será chuva
com a escrita do silêncio. [...] O
arrebatado é o delta dos rios (poema 34). Pois nos diz essa poeta: Não há rio que não deságue no caudal
dos sonhos (poema 67). III Para melhor apreciar
os poemas de Maria Carpi, há que os ler, de preferência em voz alta, dando
sempre atenção aos seus enjambements,
ao seu ritmo e à sua forma. Suas metáforas destacam sempre a imanência tão apreciada
pela corrente americana conhecida como New
Criticism,[2]
valorizando, no texto, a independência de fatores externos. Amante da natureza,
a água de seus versos não é aquela contida em um jarro determinante de sua
forma; ela é, antes, como uma árvore, cuja forma vem de dentro, com um desenho
sempre particular. A terceira parte dessa
trilogia está subdividida em cinco Cantos: O
amado estranho; O vazio e o corpo; Corpo e solidão; O corpo da luz; e Arrebatamento. Esse apartado, entre
diversos temas importantes para a vida, conta-nos do tempo (poema I, 5), uma questão de luz e
de letras; da paz (poema I, 10), para a qual é preciso um turbilhão vigoroso de luz, mas esta luz, lá de fora, deve vir lá de dentro (poema I, 11). Discorre ainda sobre
o vazio, a presença lanhada / de um pedinte e toda / impossibilidade de aliviá-la (poema II, 9), o exílio sem atravessar fronteiras (poema II, 23). E fala também das
relações entre o amante e o amado (poema I, 20), o érastés e o érômenós descritos por
Homero na Ilíada, na qual, depois,
Lacan lerá o grande momento da passagem de érômenós
para érastés, de amado a amante, pois as
paixões são também de seu interesse. Delas, a poeta cita o ódio, o desespero e o amor, e quero registrar que, lendo-a, no
lugar do desespero, Lacan proporia a ignorância, uma paixão tão avassaladora
quanto as outras. A musicalidade de seus
poemas, não raro vai além das rimas. Quando a poeta fala da paixão, por exemplo
(poema I, 36), e evoca um quebrador
de nozes, quase se
ouve, ao fundo, o bim bim bim / bi // bam bam bam / bã // du-bi-du-bi-du, de Tchaikovsky,
para logo imaginar Clara, apaixonada, indo com o Quebra Nozes para o Reino dos
Doces. E quando diz comover-se com um adágio (poema III,1), este andamento lento,
mas não tão lento, logo nos lembramos da Sonata
ao Luar, de Beethoven, ou do Adágio,
de Albioni, melancólico, todos feitos para sonhar. E, para finalizar, quero
saltear-lhes alguns dos versos que cantam diretamente o amor Poema II, 30: [...]
quando do amor, bastava-me o logotipo de um rosto, um indício, um ruflar, eras tu no quarto. Eras um corpo. Poema III, III, 3: Amor [...] Que não haja entre nós a distância de um livro. E toda escrita posterior sejam as roupas de um corpo que leste despido. Poema III, IV, 14: No corpo a verdade transborda. Poema III, V, 2: Tu não teres ficado [...] É restar atada aos mesmos laços da ida e ser flechada com seta florescida dentro, estando fora de mim. São versos que me levaram a uma
história contada por Anacreonte e se passa nas horas tardias em que um temporal
medonho assustava toda a gente. É quando batem à porta anunciando uma
criancinha. Tresnoitado, os olhos piscos, o poeta abre a porta e vê, toda
molhada, uma criança pequena, de asas e armada de arco e aljava. Ele a leva
para junto do fogo, acalentando, com as suas, as mãos dela e, para evaporar,
espreme-lhe os cabelos. Depois, já enxuta, ela quer experimentar seu arco para
ver se o frio bruto não o encurtou. Distende e solta a frexa que acerta em
cheio o peito do poeta. E o menino exulta, ri, e diz: — O arco está perfeito,
hospedeiro querido, mas tu, no entanto, padecerás, para sempre, no coração
ferido. Muito obrigado! [1]
Freud [2] PREMINGER, A. et ali. Princeton Encyclopedia of poetry and poetics. Princeton: Princeton University Press, 1974. Fortuna crítica: Aimée Bolaños*: O texto de Luiz-Olyntho Telles da Silva é de grande profundeza e revelação. Fiquei encantada! _____________ * Professora
de literatura na pós-graduação em Letras da
Universidade Federal de Rio Grande, Brasil. Professora adjunta na
University of Ottawa, Canadá. Doutora em Filosofia.
Pós-doutora em Literatura Comparada. Autora de numerosos livros
e artigos em revistas latino-americanas, canadenses, européias.
Conferencista em Universidades de México, Argentina,
Colômbia, Canadá, Cuba, Espanha, França, Portugal,
Alemanha, Ucrania. |