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SIR e OS
NOMES DO PAI
OS EXCLUÍDOS
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por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Vaidade das vaidades – diz Coélet -; vaidade das vaidades,
tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que
se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra lhe sucede,
enquanto a terra permanece para sempre. O sol se levanta, o sol se deita,
apressando-se a voltar ao seu lugar para novamente tornar a nascer. O vento
sopra em direção ao sul, gira para o norte: girando, girando
vai o vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar e, contudo, o
mar não transborda: embora chegados ao fim de seu percurso, os rios
voltam a correr. Toda palavra é enfadonha e ninguém é
capaz de explicá-la. A vista não se sacia de ver, nem o ouvido
se farta de ouvir. O que foi, será. O que sucedeu, sucederá:
nada há de novo debaixo do sol!
Eclesiastes,
1:2-9. (Atribuído a Salomão, o sábio por excelência.
Circa 190-180 a.C.).
Apelos
do pai. Já vvou, pai. Eis o fim. Nós então. Finn, revém!
Toma. Serenamente, Remememora-me! Té que te sumas. Lps. As chaves.
Aqui as tens! A via a lenta a leve a leta a long a.
JAMES JOYCE,
Finnegans Wake, últimas palavras, na tradução de Donaldo
Schüler.
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Senhoras e senhores:
Estamos aqui para dar continuidade a este Projeto Piloto, como o Prof.
Caon o batizou, carinhosamente, eu diria. Iremos abordar hoje dois textos
que não estão incluídos em algumas listas, mas que talvez
venham a ser incluídos nas nossas algum dia.
Uma das originalidades deste Curso, já presente neste Projeto Piloto
é sua contínua mudança de contexto. Em uma semana
um contexto, na outra outro contexto. Um contexto prepara para o seguinte,
como o dia para a noite, mesmo embora os recursos que se exige para um sejam
diferentes dos que se exige para o outro.
De qualquer modo, ambos os contextos nos concernem. Um não é
sem o outro. E queria lhes dizer que também concernem a mim.
Estamos então já em outro contexto. Ao serem excluídas
de uma classificação, as conferências caíram
em outra. Isto é inevitável: se uma coisa não está
em um lugar, deve estar em outro! Como excluídas estas Conferências
incluem-se na categoria dos objetos privilegiados pela Psicanálise:
os restos. Sabem que a Psicanálise se ocupa com os restos das outras
ciências, assim como os sonhos se ocupam com os restos do dia.
Temos no sonho, então, um modelo, um modelo de valorização
dos restos. E uma vez valorizados há muito que fazer com eles. As
letras mesmas podem ser tomadas como restos. Octávio Paz dizia que
aquellos que se ocupan de las letrinas andan muy cerca de
las latrinas. Lacan fará um neologismo com Poubelle e publication
para dizer poubellication, que MDMagno, por sua vez,
traduzirá ao português por “publixação”[1]. Quando James Joyce, em
Finnegans Wake, escreve litterature, não
podemos deixar de notar que litter, com dois te, em inglês,
é ‘lixo’; Donaldo Schüler, coerentemente traduz por “lixeratura”.
Pois o que quero lhes dizer é isto, que os restos nos ocupam a todos,
pelo menos enquanto seres de palavra.
Os restos nos ocupam a tal ponto que Lacan deu a eles um lugar especial,
chamou-os de objeto a. Objeto a, escrito com letra minúscula.
É possível que estes restos não sejam assim tão
evidentes, mas esta é a única coisa que Lacan reclama como
tendo sido sua invenção, mesmo embora eu lhe concedesse uma
porção de outras coisas. E mais, Lacan situa neste objeto a
a origem do desejo.
Aqueles que leram os textos dos Seminários que estamos nos ocupando
hoje já percebem que estou entrando de cheio no corpo de ambos os
Seminários. N’Os nomes do pai isto é mais evidente,
está aí com todas as letras; Em O simbólico, o imaginário
e o real, sua presença é mais sutil, o objeto a
ainda não foi inventado. Embora o conceito venha crescendo desde 1936,
em sua conferência sobre o estádio do espelho e amadurecido
no Seminário dos anos 56-7, dedicado à relação
de objeto, é na conferência sobre A subversão
do sujeito e a dialética do desejo, de 1960, que Lacan o introduzirá
de fato.
Na conferência de 53 o objeto é tomado mais por suas vertentes
simbólicas e imaginárias, Lacan se refere a ele como ‘objeto
aí’, envolvido que estava com a constituição temporal
da ação humana. De qualquer modo, acho que podemos dizer,
com Castro Alves: Estamos em pleno mar. É um modo de dizer que estamos
em pleno campo de trabalho.
Que o Piloto então nos guie.
Quando Lacan abre esta conferência inicial para a novel Sociedade
Francesa de Psicanálise ele diz, com todas as letras, aos seus amigos,
aos seus bons amigos – o que já é dar uma qualificação
à amizade, como diria Derrida -, que o objeto de seu ensino é
o retorno aos textos freudianos. O que Lacan quer saber é o que
é a Psicanálise! Não se surpreendam, ele mesmo pergunta:
O quê é essa experiência singular entre
todas, que trará transformações tão profundas
aos sujeitos? E o quê são tais transformações?
E qual é o seu recurso?
Embora a resposta a estas questões seja do interesse de todo analista,
o que se assiste, diz Lacan, é a evitação desta pergunta.
Pois eu já perguntaria aqui se a degradação sofrida
pela Psicanálise, e denunciada por Lacan nesta conferência,
não tem a ver com esta evitação? Enfrentá-las,
como fez o Dr. Lacan, parece-me o meio mais apropriado de devolver a Psicanálise
ao seu legítimo lugar. De modo que podemos tomar estas perguntas
como sendo aquelas que abrem e justificam os Seminários do Dr. Lacan.
Já no Seminário 1 ele tratará de dizer em detalhes
o que aqui nesta conferência ele diz de uma forma quase sintética:
que a teoria e a técnica psicanalítica são apenas
uma e mesma coisa; não se trata, de modo nenhum de reduzir a Psicanálise
a uma técnica de modificação da conduta.
No Seminário d’Os nomes do pai ele começa falando
da angústia, da mesma Angústia à qual havia
dedicado o Seminário anterior. Talvez seja possível ver aí
um ensaio de explicação da dificuldade em enfrentar estas
questões.
Explico-me: se o que mantém uma análise é o desejo
do analista e o que nos mantém na Psicanálise é o que
poderíamos chamar de desejo de Freud, a angústia provocada
pelo desejo do Outro (A) poderia ser uma resposta. Lacan diz que “suportar
a culpa é sempre preferível à angustia”.
A angústia está ligada ao desvanecimento, não se pode
abordá-la sem uma certa vertigem. Retomemos aqui nossa primeira
epígrafe: a afirmação salomônica de que “tudo
é vaidade” é ainda mais dura quando se a toma na sua forma
hebraica, primitiva, escrita – salvo melhor aviso – com três letras,
a lamed (l), a kaf (k, kh) e a het (h). Nas versões
tradicionais, estas letras traduzidas por ‘vaidade’ (qualidade do que é
vão), significam, antes de tudo, “vapor”, “sopro”, pertencendo ao
repertório das imagens (água, sombra, fumaça, etc.),
que na poesia hebraica denotam a fragilidade humana. Lacan prefere traduzir
por “vento”, “hálito” e “bafo”. Sem o vento não há
vida, Júpiter não infunde o espírito no húmus
heideggeriano e as naus de Agamêmnon não saem do porto para
guerrear Tróia. Mas isto parece ser tudo: nada mais que hálito.
Mesmo a última palavra do moribundo não é mais do que
a expiração da primeira letra do alfabeto - como diz Joyce
na segunda epígrafe - nada mais que um longo a. A vida é bafo!
Por vezes parece abafada.
Mas o que importa é que, para nós, este bafo é linguagem!
Ainda que gasta, como queria Mallarmé, que mal armado não
estava para dizer o que dizia! Se estamos falando de moeda, talvez possamos
ver seus dois lados: verso e anverso. O seu valor de verso é, como
diz Mallarmé, gasto: “Será que hoje chove?” “Que frio nesta
época, imagine só!” “E o Grêmio, hem?” A marca da moeda
gasta é a impessoalidade. Através dela não se reconhece
seu proprietário; o Ministro da Fazenda assina por todos. Por outro
lado, o desgaste que a linguagem sofre com o uso, no entanto, é peculiar:
se por vezes ela perde parte de seu conteúdo, de seu sentido, por
vezes se acresce. A comparação é muito feliz: cada vez
que alguém usa uma palavra, tal qual a moeda, no momento que a usa
ela é sua (salvo alguma acusação de apropriação
indébita) para já deixar de ser sua no momento imediatamente
seguinte. Alguns têm mesmo o dom de introduzir palavras na linguagem:
a estes se os dignifica com o nome do pai.
Às vezes o efeito de tomar a palavra como moeda gasta pode ter seus
efeitos na leitura da palavra escrita. Há uma tendência a
tomar o escrito como expressão do verdadeiro: ao final da segunda
página da classe de 20 de novembro de 1963, por exemplo, onde vocês
lêem que Lacan fala da importância de desprender-se de toda
a concepção que faça do sujeito “un poro correado
de lo inteligente a lo inteligible, del vous;”, penso que aí
não se entende nada. Pois experimentem ler assim: onde está
“poro correado” escrevam ‘puro correlato’, e onde está “vous;” escrevam
apenas a palavra grega nous (nouV). É possível que assim fique um pouco
mais claro. Uma coisa é que a angústia seja um afeto do sujeito,
outra é querer transformá-lo em um puro correlato do inteligente
ao inteligível, do nous dos antigos gregos, entendido como faculdade
de pensar, como a inteligência objetiva capaz de penetrar os objetos,
pois aqui a angústia se mostra em posição crucial.
Talvez vocês me digam – neste momento – que Mallarmé não
estava pensando em erros de datilografia ou digitação, e eu
estarei completamente de acordo; o que quero lhes chamar a atenção
é para os efeitos insuspeitos da angústia. Indo por este caminho
chega-se a teorias como a da “inteligência afetiva” e outras pelo estilo,
onde a inteligência não é senão ‘inteligência
obscura’ e obscurantismo é a última coisa que queremos.
Em 53 Lacan propõem um roteiro para a análise. Um roteiro
que começa por rS e, depois de todo um périplo, termina
por rS. Estamos em uma circularidade. Visto pelo ângulo
da literatura, diríamos que se trata de um ritornelo e desde aí
podemos ler Salomão, Vico e mesmo Joyce que começa seu FW
já com letra minúscula, quase como Lacan. Enquanto Joyce começa
com riverrun, aludindo a um rio que corre por uma planície
formando o típico S, Lacan usa o mesmo desenho para falar da inicial
e recorrente necessidade de realizar o símbolo. Se no início
de uma análise o analista está colocado neste lugar de “símbolo
de toda a potência”, como ele se refere neste momento, é também
aqui que se levantam todas as resistências do sujeito levando-o a tentar
fazer com que o analista entre em seu jogo. O que está em cena é
a presença da angústia.
Trata-se na verdade da entrada em um novo contexto. É como um nascimento.
Salomão diz que depois que o sol se deita, ele se apressa para tornar
a nascer. Esta pressa, esta agitação, não é
própria de alguém que já conhece bem o caminho, mas
sim de alguém que descreve o desconhecido e o vive internamente. O
nascimento é traumático, concorda Lacan, mas não pela
separação do corpo da mãe e sim “pela aspiração
em si de um meio basicamente diferente” (Sem. X).
Os analistas sabem disto. De certo modo, todos aqueles que se encarregam
do cuidado de pessoas sabem disto e tratam de tomar suas providências,
cada um a sua maneira. Os analistas cuidam para não entrar no jogo
de seus analisantes, embora Lacan reconheça neste momento inicial
que sempre há uma parte de real nas analises que nos escapa. Lacan
aponta para isto ao criticar o modo como Freud descreve o Homem dos Ratos
através da “personalidade de um homem fino, inteligente e culto”.
No relato de um caso de análise, realizada ainda nos anos 70 e publicado
em Da miséria neurótica à infelicidade comum,
a descrição da analisante como sendo “uma moça simpática”
merece a mesma crítica.
A tendência da angústia é estreitar o caminho a ser
percorrido: é isto que faz a esfinge com os tebanos e mesmo com Édipo.
É esta a função da sphinx, a função dos
esfíncteres: apertam tornando o caminho estreito. Percebem como facilmente
se produz um imaginário? Pois neste momento, quase ao final da conferência
de 53, Lacan chama a atenção para uma conseqüência
particular do enodamento dos registros: ao mesmo tempo em que o real força
a ação do imaginário, levando-o a produzir de tal modo
que passamos a acreditar que as coisas funcionam conforme a imagem, que o
hábito faz o monge, que o sol se põe, por exemplo, pois ao
mesmo tempo este mesmo imaginário anula “mais ou menos” – diz Lacan
– a função simbólica da linguagem. Uma das conseqüências
disto é a impossibilidade de reconhecer a função do
instinto de morte. – O programa de associações livres, proposto
pelo analista, vem como contrapartida, como modo de ampliar, de dar largueza
ao caminho a ser percorrido.
Este Projeto Piloto que estamos vivendo é um modo de irmos elaborando
o enfrentamento com o novo contexto. Na semana passada, quando os coordenadores
dos cartéis apresentavam o contexto da descoberta dos textos ora
em apreço, a Profª. Marta D’Agord fez uma oportuna e espirituosa
caricatura disto quando, ao final de sua apresentação, disse
assim: “Como podem ver, é fácil!”. A reação
da mesa à ironia saiu rápida através de uma frase da
Colega Tamara, uma exclamação do tipo ‘Acreditem nisto para
ver no que dá!’.
Pois é verdade, não é fácil! Os inícios
nunca são fáceis. Embora a comparação com o
jogo de xadrez nos diga que sabemos como começa e como termina isto
não facilita muito as coisas. A entrada em um novo contexto é
sempre difícil.
Eu mesmo expressei esta dificuldade em meu improviso da semana passada.
Sabem o quê é um improviso. O campo da música nos ajuda
a compreendê-lo sem maiores dificuldades: uma pessoa se prepara por
toda uma vida para enfrentar as surpresas e depois, quando surge a ocasião,
chama isto de improviso. Mas é assim mesmo! Em meu improviso eu lhes
dizia que os créditos desta iniciativa deveriam ser debitados inteiramente
na conta do Dr. José Luiz Caon, o que equivale a dizer que o desejo
presente na iniciativa é, antes de qualquer outro, dele. Isto o coloca
no lugar de grande outro (A) para todos aqueles que assumem o projeto de
adotar para si este desejo. Eu lhes disse também, em ato, que não
sabia bem porque havia sido convidado. Ao dizer isto, eu estava confessando
minha angústia. Para dizê-lo de modo lógico, eu não
sabia que tipo de a minúsculo eu era para o desejo deste A grande.
É assim que se expressa a função angustiante do desejo
do Outro. O objeto a minúsculo é provocador de desejo.
Para tratar desta relação da angústia com o desejo
Lacan propõem seguir a Freud no exame que este faz da religião,
definida por Lacan, segunda a tradução ao espanhol, pela coartada
de sua época. “Coartada”, em espanhol denota um termo jurídico
através do qual se inocenta uma pessoa porquanto ela estava em outro
lugar no citado momento. Trata-se de um álibi. Se estiver adorando
o pai, não o está matando! É verdade, Freud tratou deste
tema em diversos momentos, desde Totem e Tabu até o seu querido
Moisés e o monoteísmo. Há, contudo,
uma passagem muito interessante: ao comentar as primeiras entrevistas com
um senhor muito importante que lhe pedia autorização para
não mencionar em sua análise certos detalhes, pois eles certamente
envolveriam a vida particular de muita gente, Freud considera que se a catedral
de Viena, a catedral de Santo Estevão, fosse declarada um local onde
a polícia não pudesse entrar, onde se esconderiam os bandidos?
Consigo lhes dizer com esta anedota que no meu entender a religião
não era para Freud o melhor dos álibis?
Mas aqui, em 1963, Lacan quer saber como se pode fazer a separação
do Outro. Para isto ele retoma cuidadosamente, mais uma vez, toda a relação
da mãe com a criança através dos cinco objetos que
desta relação vão caindo.
Mas ele não entra no assunto sem passar pelo pai, especificamente
pelo mito do assassinato do pai. É neste momento que assistimos a
recorrência à religião.
Um amigo meu me disse certa vez que o Dr. Lacan é um Teólogo!
É verdade. Dizem mesmo que quando Lacan dissolveu a Escola Freudiana
de Paris, propondo a fundação do Campo Freudiano, até
o Papa pediu inscrição em consideração ao lugar
que ele havia dado ao Nome-do-pai. Mas em todo o caso, em vez de dizer-lhes
o nome do meu amigo, para autenticar suas palavras, me parece mais oportuno
dizer apenas que ele se ocupa, entre outras coisas, de examinar a conferência
dos graus de Doutor por parte das Universidades; suponho que lhes dando
este dado poderão ver que a afirmação não vem
com nenhuma leviandade. Pois é verdade! A aparência por vezes
parece ser mesmo esta, tanto Lacan se ocupa do tema. A diferença entre
Lacan e um teólogo propriamente dito, é que Lacan se interessa
pelo tema na medida em que vê aí um espelho privilegiado das
projeções do sujeito.
Em 63 ele entra no assunto através da crítica a Santo Agostinho
que no seu De Trinitate descreve muito bem tanto o Filho como o
Espírito Santo, enquanto a figura do Pai se esfuma como automaton.
Será preciso ler o Seminário seguinte, o 11, para saber o
quê Lacan quer dizer com automaton. A figura do pai foge sob
a pluma de Santo Agostinho como automaton, quer dizer, como rede
de significantes, uma rede a qual, em todo caso, Agostinho não consegue
promover a eutychia, o bom encontro promotor da significação.
O que Lacan não entende é como um espírito tão
cheio de luzes pode tomar a figura de Deus como causa sui. Agostinho
traduz o hebraico Asher Ehye pela forma latina ego sum qui sum:
“Eu sou o que sou”. Isto é um absurdo, diz Lacan. Poderíamos
acrescentar – sem pejo – que se trata de uma tautologia. Mas o que importa
é que o Santo não se deixa convencer e responde a Lacan com
o seu famoso Credo quia absurdum.
Sempre se poderia argumentar que Deus escolhe ser denominado por um verbo
em especial, e não por um verbo qualquer: o verbo ser. Sabem que
uma de suas principais características é ser um verbo auxiliar,
sendo também conhecido como verbo de existência e cópula,
quer dizer, de ligação. Deus é na medida em que é,
é sendo! Mas o que importa é a posição trinitária
do pai como automaton.
E neste preciso momento Lacan recorre ao objeto a, dizendo que na
angústia ele cai. Para dizer como isto se dá, começa
seu périplo pelo seio, do qual ele diz que há que tomá-lo
fundamentalmente como sendo de pertencimento do bebê. E aqui se abre
a possibilidade de um acontecimento extraordinário. Cito, com algumas
interpolações, a Lacan: “Se neste momento [da mamada] este
objeto [o seio] se introduz na demanda ao Outro, no chamado à mãe,
ela delineia sob um véu o além onde se enoda o desejo da mãe:
assombrado, o bebê volta a cabeça desprendendo-se do seio”.
O surpreendente deste momento é que o bebê tem a oportunidade
de experimentar que ele não é tudo para a mãe. Existe
um além.
Ando muito rápido ou já se pode ver como se imbricam os campos
do imaginário e da religião?
Lembram que religião vem de religare? Desprendido do seio,
este cai constituindo-se então como a, como objeto perdido,
para sempre. Deste momento em diante a presença do objeto perdido
será apenas fantasmática, o que de modo algum será o
mesmo que dizer que sua presença será pequena.
Mas há uma segunda forma do objeto a. Como se seguisse o
caminho das zonas erógenas freudianas, Lacan passa do objeto oral,
o seio, para o objeto anal, as fezes. Estamos na fenomenologia da dádiva,
diz Lacan, lembrando ainda no Seminário 10 que as parteiras sempre
se detiveram ante o particular e pequeno objeto representado pela aparição,
no recém nascido, do mecônio. (Embora a pediatria tenha um
nome especial para isto, que é “ferrado”, parece que mecônio
é ainda a palavra mais usada).
Neste périplo, o terceiro objeto a aparece como sendo o falo, j. Lacan diz aí,
a propósito, como que para deixar claro que o falo não é
o pênis, que a mulher, em sua função de bainha, de algum
modo se sai melhor. O argumento vem dado pelo mito de Narciso e na versão
da conferência em espanhol que temos disponível, um de seus
tradutores, Héctor Rupolo, nos faz a gentileza de incluir, como nota,
os primeiros versos do mito, que vão de 316 a 335. (Destaco-lhes esta
gentileza porque estes versos na verdade não são fáceis
de encontrar. Eu mesmo disponho de três versões das Metamorfoses
de Ovídio e em nenhuma delas constam estes primeiros versos. Se quiserem
lê-los em português, recomendo-lhes a tradução
de Donaldo Schüler em Narciso Errante; aí o mito aparece
completo).
O quarto objeto a é o da pulsão escópica, o olhar.
Como argumento Lacan recorre ao mito de Édipo para dizer que aí
o olho é o equivalente do órgão a castrar. O pecado
de Édipo é a cupido sciendi: ele quer saber o que acontece
se violar a proibição relativa à conjunção
do a – no caso j - com a angústia; ele quer ver o quê
há além da satisfação de seu desejo, mas o que
vê, paradoxalmente, são seus próprios olhos lançados
por terra. – Contudo, não é disto que se trata: o que importa
é sua imagem especular, que Lacan escreve como i(a), é
aqui, neste complemento fantasmático que parece ter caído
algo dele. É esta imagem especular que, ao mesmo tempo em que sai
dele, o afronta. Freud nos conta uma experiência pessoal: em uma de
suas viagens, quando se preparava, no trem, para dormir, eis que de repente
a porta de sua cabine se abre e entra cabine adentro um velho “antipático”
em pijamas. É só depois de recomposto que se dá conta
da impostura: em um movimento brusco do comboio, a porta se abrira deixando-o
frente a frente com sua própria imagem refletida no espelho. A pujança
do relato de Freud, sua confissão de antipatia pelo invasor, nos
faz perceber o quanto o sujeito na pulsão escópica está
aprisionado. Temos aí, diz Lacan, o retorno da angústia mais
basal, e ele acrescenta tratar-se aí do Aleph da angústia.
O quê é que Lacan quer dizer com isto? Com este Aleph? Temos
pelo menos uma referência, como foi apresentado no ‘Contexto da Descoberta’:
a referência à falta, na medida em que o texto bíblico
começa com um Beth. Deixemos registrado também, neste
momento, que na sua grafia mais simples o Aleph se simboliza por um A invertido,
". Reparem que se parece a uma cabeça de vaca.
É aí, na pulsão escópica, que Lacan irá
denunciar a presença deste fantasma que ele articula sob o termo
de agalma, este objeto ao qual se acredita apontar o desejo.
Lembrem do bebê soltando-se do seio para olhar além e já
verão que estamos chegando ao fim do périplo. Pois é
assim que Lacan chega ao quinto termo desta função do objeto
a minúsculo na relação pré-genital com a demanda
do Outro. Trata-se da voz e ele nos diz que “a voz do Outro deve ser tratada
como um objeto essencial”. E quando ele pergunta “Quem é este alguém
que está mais além, de quem o sujeito, cada vez que fala,
toma a voz?”, a resposta que aparece não é, como se poderia
esperar, o pai, mas sim ‘o mito do pai’.
O programa de retorno a Freud implica nisto, em reconhecer o valor de suas
verdades. Ao retomar a importância do mito, como uma construção
fruto da necessidade do sujeito, Freud rompe com a ciência do século
XIX que havia invalidado sua contribuição. O homem, feito
do barro, precisa de um antepassado animal. O totem cumpre esta função.
Não é por nada que esta é a primeira letra do alfabeto,
o Aleph cabeça de vaca. O primeiro totem bem pode ter sido o da
vaca. É aí que se insere a história de Abraão
e Isaac com El Shadday.
Para lhes antecipar o fim da conferência de 63, Lacan aponta no cordeiro,
substituto de Isaac para o sacrifício, ao antepassado da raça
de Sem. O que é sacrificado, o que é assassinado por Abraão,
é o Deus de sua raça, ergo o pai.
Observem, contudo, que antes de chegar a isto Lacan faz questão
de pronunciar um dos nomes de Deus: Elohim. Procurei em vão este
nome na Bíblia que costumo consultar. Se a Bíblia que consultam
é também a conhecida como A Bíblia de Jerusalém,
penso que terão o mesmo destino. Trata-se de uma Bíblia javista,
que se refere a Deus como Iahweh. Para encontrar Elohim é preciso
ler uma outra, é preciso ler uma Bíblia eloísta. Em
todo o caso, é interessante que as coisas se coloquem deste modo.
Desde a forma simples Eloah, que nos leva ao hebraico Elohim, teremos
ainda, na versão árabe, Allah, no caldeu, Elaha,
no sírio, Alaho, no samaritano, Eleha e no fenício,
Aleh. O h final, mudo, indica ao pronome para
dizer que é ele quem representa a força e o poder e que, por
respeito, não se o pronuncia. Não deixa de ter interesse notar
que é este mesmo h, este mesmo het que aparece como
última letra do “sopro” traduzido como ‘vaidade’ no Eclesiastes.
Será que temos aí uma pista para o plural dos nomes do pai,
tal como o sufixo im, de Elohim, que também indica uma potência
plural?
Seja como for, completamos o périplo pelos objetos a, desde a pulsão
oral até a pulsão invocante. E agora podemos ver com mais
clareza o que é que chama atenção da mãe levando
o bebê a olhar mais além, se separando, por conseqüência,
do seio. Trata-se do Nome-do-Pai. Embora Lacan não mencione aqui a
metáfora paterna, eu diria que ele encaminha a questão de modo
a que possamos ver claramente como é que ela se constitui. É
a inclusão do nome-do-pai no desejo da mãe que a torna possível.
Ao mesmo tempo abre-se em leque a gama de possibilidades do que pode estar
neste lugar.
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Porto Alegre,
27 de maio de 2003
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