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Hor-Pa-Khered, “Horus menino”
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PSICANÁLISE E LITERATURA
o silêncio e os processos
de criação*
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por
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Luiz-Olyntho Telles da Silva
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Deus disse: “Haja luz” e houve luz.
Gênesis, 1:3. |
É mesmo um privilégio participar
de uma mesa de poetas, mormente quando se trata de poetas de minha admiração.
O assunto posto à mesa, o silêncio, este então é
um delicado acepipe a ser saboreado com atenção, cuidado e
carinho. Digo isto porque terão pressentido que ele também
suscita violência. A vingança, la vendetta, é filha
do silêncio, como Morris West não nos deixa esquecer. E a proposta
hoje é a de que se olhe para o tema desde duas vertentes: a da Psicanálise
e a da Literatura.
Ora, nesta mesa, entre os cinco componentes - se registrarmos como presença
a ausência de Donaldo Schüler - temos quatro poetas e dois psicanalistas.
Isto quer dizer que um dos componentes é, vamos dizer assim, epiceno,
pertence aos dois campos, ao da poiesis e ao da praxis. Refiro-me
a Luciano Fialkowski, organizador desta mesa, que empresta sua sensibilidade
de Psicanalista à Poesia, ou talvez, a contrario, seja mesmo
sua sensibilidade poética que o faz ser o Psicanalista que é.
Seu recente livro “A revolução silenciosa” nos mostra, desde
seu primeiro poema, como do silêncio nasce a vida.
Suponho que de mim se espere algo que diga como o Psicanalista pode transformar
o silêncio em palavra criadora.
Embora eu esteja em um campo diametralmente oposto, uma vez que a poiesis
funciona muito bem desligada da presença de seu autor, na presença
de tantos poetas não posso não tomá-los em consideração,
mesmo porque são os Poetas que sempre andam na frente, abrindo o caminho
para nós outros.
Fabrício Carpinejar me encantou com a sua “Biografia de uma árvore”.
Estarão lembrados que se trata de uma ficção havida,
preciso dizer assim, a la Orwel, havida no futuro ano de 2045. Relata um
fato inusitado: um tal Dr. Ossian - ou se pronunciará Ocean? – recebe
de um Poeta de origem desconhecida chamado Avalor a orelha de uma árvore.
Sabem que a riqueza da poesia está também nas viagens
que ela possibilita. No antigo Egito havia esculturas em pedra, alto-relevos
de orelhas, tão somente orelhas, para as quais se podia contar segredos
jamais revelados. A orelha trazida por Avalor é também uma
orelha que escuta sons sobre um fundo de silêncio, mas é uma
orelha inconfidente; sua inconfidência consiste em confiar àqueles
que por sua vez querem emprestar suas orelhas certos segredos que nos possibilitam
melhor compreender nossos semelhantes e isto desde a marca oxímora
de Avalor, este nome marcado sobremaneira por um ‘valor’, mas também,
como diria Heidegger, por um alfa privativo, um ‘a’ que não creio
remeta a ‘sem valor’, mas que talvez diga de um valor situado não no
nome de quem diz e sim na orelha de quem escuta. Como diz Rosalina, em "Trabalhos
de amor perdidos" de Shakespeare:
A fortuna de um gracejo reside
no ouvido
De quem escuta, nunca na lingua
De quem o faz:...**
(A jest's prosperity lies
in the ear
Of him that hears it, never
in the tongue
Of him that makes it:...).
V,ii
Esperemos que
até 2045 pelo menos, mesmo que muitos de nós já não
estejamos por aqui, mas o Fabrício que é mais jovem provavelmente
sim, esta verdade possa já ser reconhecida por todos.
Na relação com o outro é que aparece o valor, e isto
me remete a Armindo Trevisan, padrinho do Luciano. Já fazem alguns
anos, não preciso dizer quantos, fui escutá-lo falar sobre
este assunto. O Prof. Trevisan se lembrará de uma aula proferida por
ele na Biblioteca do Centro Cultural Norte Americano (naquela época
ficava na Rua Riachuelo). Pois para falar do outro, do nosso semelhante, ele
recorreu à Parábola do Bom Samaritano contada por São
Lucas. Nunca esqueci da história: ela começa quando um Legista
pergunta a Cristo o quê é preciso fazer para herdar a vida eterna?
A resposta do Mestre é socrática, responde com outra pergunta:
“O quê diz a lei?” E a seguir o doutor recita: “Amarás o senhor
teu Deus, de todo o coração, de toda a alma, com toda a tua
força e a do teu entendimento; e ao teu próximo como a ti
mesmo”. Jesus concorda, mas o legista não se dá por satisfeito
e insiste, como que para apertá-lo, com a pergunta: “E quem é
o meu próximo?” Aí então aparece a história
do Bom Samaritano. Depois de escutar o Prof. Trevisan fiquei a pensar que
na verdade a conclusão da história - vários maus, dois
indiferentes e um bom – levava a pensar em uma trança: o outro deve
ser feito de uma grande quantidade de maldade, um pouco de indiferença
e um tiquinho de bondade, tiquinho que em todo o caso pode fazer uma grande
diferença.
Pois bem, estão a ver que o silêncio que me interessa é
este que ocorre entre as pessoas, entre um e outro.
Os poetas sempre valorizam o silêncio de alguma maneira. Para o nosso
ilustre ausente de hoje, o Prof. Donaldo, o silêncio é o contraponto
da palavra. No seu “Martim Fera” ele faz o Trovador dizer que
A palavra é
dos sábios
o silêncio, dos macacos.
A palavra distingue o homem, como a luz da sombra, pelo afastamento. Quando
o homem fala, ele se afasta da coisa; quando um bicho fala, por assim dizer,
este afastamento não acontece. Por isto, por mais barulho que faça,
o macaco permanece silencioso. O Poeta Bruno Tolentino em seu último
livro “O mundo como idéia”, construído sobre obras de arte,
diz algo parecido partindo de um auto da idade média: nec lux sine
ombra. Não há luz sem sombra. O distanciamento está
implícito. É como dizer que não há figura sem
fundo. São implicações lógicas, uma coisa se
diferencia daquilo que ela não é. O preto no branco nos mostrava
claramente que as coisas eram assim mesmo, pelo menos até surgir Escher,
me refiro a Maurits Cornelis Escher (1898-1972) quando ele nos mostra que
o fundo pode ser tão figura como a própria figura.
A pergunta então é esta: servirá isto como argumento
para dizer que o silêncio também pode valer como palavra?
Vejamos o que diz Emily Dickinson em um poema conhecido pelo número
1681:
A palavra é um sintoma
do afeto
E o silêncio é
A comunicação
mais perfeita
Que ninguém pode
ouvir.
Esta poetisa já no século retrasado (1830-1886) acreditava
no valor do silêncio como palavra, e Thomas Carlyle, seu contemporâneo,
chama a atenção para um aspecto que me parece muito importante:
a palavra é pontual, faz parte do tempo. Vejam-se, por exemplo, as
diferentes formas ortográficas pelas quais tem passado nosso português
ao longo da história, enquanto o silêncio, este corresponde
à eternidade. Quero dizer com isto que há um tempo para a palavra.
Ela não faz parte da eternidade. A eternidade, como diz Borges, espera
na encruzilhada de estrelas. É como já suspeitava Pascal (1623-1662)
antes que Newton (1642-1727) confirmasse: no universo reina eternamente
o silêncio dos astros. Jacques Lacan, irônico, diz que os planetas
não falam porque não têm boca; não falam porque,
sendo redondos, são idênticos a si mesmos. É sua maneira
de dizer que depois que Newton unificou o universo através de sua
lei da gravitação já não se pode pensar nos astros
senão como marcados por um silêncio universal. A palavra
faz supor uma diferença. É o que aparece quando cada um fala,
desde que se respeite a lei. Não é o que Cristo diz ao Legista?
Cada um se diferencia do outro pela sua força e pelo seu entendimento.
E por falar em lei, há lugares em que a lei proíbe falar, há
lugares em que se exige o silêncio. Um exemplo disto é apresentado
por Sófocles na tragédia “Édipo em Colono”. Quando Édipo,
desterrado, chega a Colono em busca de abrigo, o primeiro lugar que encontra
é um bosque consagrado - conforme informação do primeiro
transeunte - às Erínias, e aí não se pode falar
sob pena de provocar sua ira. Os romanos as chamam de Fúrias, tão
furiosas se as imaginam. São ao todo três, Alecto, Tisífone
e Megera. Nascidas da terra umedecida pelo sangue de Urano mutilado por Cronos,
elas são encarregadas da vingança, da vendetta; elas devem
vingar os crimes, especialmente os atentados contra membros da família.
Os atenienses, quando não querem provocá-las chamam-nas de
Eumênides, as Benfazejas. Viram de quê crime é a vingança?
As Erínias vingam a morte do pai. E Sófocles não pode
ser mais irônico. Édipo está aí, nas condições
em que está, cego, pobre, dependente dos olhos de sua filha Antígona,
justamente por ter matado o pai, e vai buscar abrigo justamente junto aquelas
que o que mais querem é vingar a morte do pai, do pai morto precisamente
pelo filho (Cronos).
E elas não são as únicas. Outro que vinga a morte do
pai é Horus, o deus egípcio, armado e guerreiro. Mas Horus
nem sempre foi grande e forte. Quando pequeno foi fraco das pernas, talvez
um pouco tímido, e conhecido como Hor-Pa-Khered, “Horus menino”.
Segundo Plutarco, nasceu antes do tempo, das relações póstumas
de Isis com Osíris já morto. Por isto é fraco e representa
o sol débil do amanhecer, do inverno, nu e desprotegido. Na medida
em que o dia avança, vai se tornando no sol forte e vingador. Quando
criança, em todo o caso, era representado assim, nu e com um dedo
sobre os lábios. Os gregos, quando o conheceram, chamaram-no de Harpócrates***
e, confundidos por seu gesto, pensaram que se tratava do deus do silêncio.
Viram que interessante? Aqueles que estão dispostos a vingar a morte
de um pai, como a Erínias, fazem pensar em silêncio. Ao adotarem
Harpócrates, os gregos incluíram alguns detalhes em sua história.
Fizeram-no assistir, por exemplo, aos amores de Afrodite com um de seus
inúmeros amantes e depois disto, Eros, filho de Afrodite, que andava
pelas redondezas, oferece a Harpócrates uma linda rosa para garantir
com seu silêncio a reputação da mãe. Quando Cronos
mata o pai, também está pensando em salvar a mãe. |
Hor-Pa-Khered, “Horus menino”
Harpócrates
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Percebem como o silêncio remete a algo? Ele é uma exigência
da mãe, de Gea, da mãe terra. Quando Lacan examina os escritos
técnicos de Freud, ele diz que em uma sessão de análise
- porque, enfim, a teoria psicanalítica nunca pretendeu ser uma weltanschauung,
nunca pretendeu ser uma explicação para tudo - há vários
momentos de silêncios e silêncios com diferentes sentidos. Quando
há transferência, porque sua presença é fundamental,
o silêncio pode representar mesmo a apreensão mais aguda da
presença do outro como tal.
Bem, mas tal qual Édipo, eu queria seguir um pouco mais pela mão
de Antígona e examinar um ponto considerado central em outra tragédia
que Sófocles lhe dedica, para poder concluir. Trata-se dos versos
368 e 369 da Antístrofe 2:
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O Prof. Donaldo Schüler, quando traduz a Antígona de Sófocles
para a L&PM, diz assim:
Una as leis da terra
à justiça
jurada dos deuses.
Os elementos fundamentais estão aí presentes e a tradução
é ótima. Trata-se das ‘leis da terra’, nomos ctonòs,
e da Díke, esta dimensão propriamente enunciadora. Dito
de outro modo trata-se do silêncio e da palavra trançados através
do verbo pareíron. O Padre Isidro Pereira, no seu "Dicionário
de Grego", nos oferece para pareíron, como traduções
possíveis, meter de lado, introduzir suavemente, e misturar. Lacan,
em todo o caso, leva às últimas conseqüências as
possibilidades oferecidas pelo grego e aceita a possibilidade de misturar,
de trançar as leis da terra com as leis da enunciação.
A Díke é a justiça, mas é também
o costume, o uso, a maneira, e o modo, pelos quais também se traduz
o Ethos etimológico da ética. A Díke é
também o debate e a discussão e vem acompanhada por énorkon
que implica em uma ‘confirmação por juramento’ aos deuses,
theõn. Por isto, quando o analista reconhece o
momento de propor ao analisante romper com o silêncio, como Lacan assinala
de forma muito clara no seminário que dedica à ética
da psicanálise, ele não diz ‘Fale’, ou ‘Enuncie’, ou ‘Conte’,
ou qualquer outra fórmula sedutora; restringindo-se ao valor da lei,
o analista simplesmente enuncia a Dike evocadora da trança entre as leis da terra
e as da linguagem através de um singelo “Diga”.
Muito obrigado.
Porto Alegre,
06 de novembro de 2003.
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