O NARCISO ERRANTE DE DONALDO SCHÜLER
Uma leitura desde o ângulo da Psicanálise
 
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
http://www.recort.com.br/lots/
 
 
  
Você acha minhoca nojento? 
Eu não. 
Minhoca é um ser inferior? 
De jeito nenhum. 
O que é que falta na minhoca?  
Nada! 
... 
Bom, talvez um certo distanciamento crítico. 
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L.F.VERISSIMO, As cobras. 

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O rosto do homem histórico não se reflete em superfície alguma, já que esse está além de si mesmo. 
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D. SCHÜLER, Narciso Errante.

  
 

        Como classificar este livro? Este é um dos problemas. Ensaio? Crítica? - De crítica ele tem algo, sem dúvida, mas não fica nisto. Ainda que a maioria dos textos sejam curtos, sua profundidade não me permite classificá-lo como ensaio. Prefiro examiná-lo desde outra vertente: gosto de um texto quando ele me surpreende, me espanta, me faz pensar e produzir. Narciso Errante tem tudo isto. 
  
        O livro, publicado pela Vozes (Petrópolis), em 1994, está estruturado em torno a doze capítulos (161 páginas), acrescidos de uma bibliografia, relativamente curta. Em uma comunicação pessoal, o autor me disse que o texto resultou das reflexões que lhe surgiram por ocasião de um curso oferecido à Maiêutica Porto Alegre ainda nos anos 80. De modo que não nos surpreendemos com suas interpretações originais; elas marcam mesmo todo o texto, desde o primeiro capítulo onde tece o instante da construção dos mitos até o capítulo onze quando decreta a morte de Narciso. O último capítulo, que ele chama de “A última aparição de Narciso” é uma homenagem a Cyro Martins, escritor de ficção, que valorizou de modo singular o gaúcho a pé, e também Psicanalista, autor de “Do mito à verdade científica”. 

        Narciso Errante não é um livro de fácil leitura. Pelo menos para mim não foi. Embora ele esteja comigo desde sua publicação, como gesto amigo do autor, não faz muito tempo que consegui penetrar um pouco mais por entre suas linhas. Assim que os comentários seguirão capítulo a capítulo, pois, eles estão em uma ordenação conseqüente. Como eles guardam entre si uma certa interdependência, sempre que possível acompanharei alguns temas pelos diversos capítulos em que aparecem e eventualmente proporei alguma discussão. 

        O método proposto não é outro do que aquele que Donaldo e eu temos tomado para nossas conversas. Ele, desde a literatura, se interessa pela Psicanálise na medida em que ela o ajuda a melhor entender seu campo e eu que, além da recíproca, levo ainda a vantagem de aprender com o brilhantismo das idéias deste mythoplokos, como disse Safo de Eros, este tecelão de narrativas (conforme sua própria tradução [p.100]) que tenho o privilégio de ter como amigo e que não me canso de admirar! – É um pouco disto que quero compartilhar com vocês. 

        1. Narciso nas malhas do mito. 

        A genealogia de Narciso começa com o Espanto. “Espanto” já é uma interpretação schüleriana. Espanto traduz o grego Thauma (QaumaV), que Junito Brandão (1) traduz por ‘pasmo, admiração’. Em outros textos seus Donaldo também diz da importância do Espanto. Em O homem que não sabia jogar, de 1998, por exemplo, ele justifica sua tradução.  Donaldo também se espanta! 
  
        Desposando Electra, Espanto gera Íris, a mensageira dos deuses, aquela que aproxima e é signo da aliança entre Deus e toda a carne, mesmo no Gênesis (9:12-17). Relacionando Thauma a Theaomai, “ver”, Donaldo conclui que a visão requer distanciamento: para ver, como o homem vê, é preciso estar afastado da natureza. Logo o Espanto implica em distanciamento enquanto sua filha Íris – retratando o eterno conflito entre pais e filhos – implica em aproximação. Um não é sem o outro. 

        Ainda no primeiro parágrafo lê-se a operação dos opostos “Espanto e ôris” (p. 7). Suponho que se trate de um erro de impressão: ôris em lugar de Íris. De qualquer modo, temos também a ‘orismologia’ que trata dos limites, como em horizonte, conforme o Houais. 

        Mas a questão é que a ligação etimológica com Theaomai implica que os animais, por estarem ligados a natureza, não vêem. Só o homem vê. Fruto desta distância o homem é também seu instaurador e isto a tal ponto, diz Donaldo, “que nem a si mesmo presente o homem está” (p. 8). E ele continua: “Vivendo distante de si, ele [o homem] para si mesmo é mistério” (p. 8). A mim não surpreende que Donaldo fale do descentramento, surpreende-me é o caminho através do qual ele o alcança. Como médium destas distancias temos a palavra, caminho ainda que precário a cobrir os espaços abertos. “Discursos são redes”. Íris, que se apresenta como arco, “é caminho, mensagem, mito” (p. 8). Assim como o discurso, o mito também é rede. Mito é igual a discurso. Discurso oral, transmitido de geração em geração até que Hesíodo declara a morte do mito oral ao dar vida ao mito escrito, ao poema. Enquanto “o referente do poeta é a realidade emergente e viva” (p. 9), “o mito, no contínuo retorno às origens, apóia o transitório no permanente. Só é possível prever o que será a partir do que já foi” (p. 10). Mesmo o filósofo ao se avizinhar das origens não repele o mito, inventa outros originais. O exemplo é o mito da caverna, de Platão. “O mito fornece à consciência crítica, provocadora da crise, os andaimes que a elevam à seca região dos conceitos onde as imagens esmaecem (p.12)”. Para Aristóteles o mito é a estrutura narrativa. 

        Nas Metamorfoses, Ovídio, “familiarizado com a robusta história literária” (p.12), entrecruza os textos recolhidos tanto de fontes orais como escritas dando-lhe um aspecto teatral e fornecendo, para Donaldo, a versão mais completa do Mito. É desta versão que parte, começando por uma tradução pessoal conforme a proposta de “recriação” a partir de seus próprios recursos. 

        É sobre este fundo que Donaldo quer acompanhar a história de Narciso na história ocidental. Seu objetivo: refletir sobre nós mesmos, pois, no seu entender, sempre que falamos do homem, falamos de Narciso. 

        2. Narciso segundo as metamorfoses de Ovídio. 

        A tradução de Donaldo é fiel ao texto. O mito de Narciso começa muito antes de seu nascimento. Começa mesmo com uma disputa entre os deuses, entre Júpiter e Juno, uma vez que estamos sob uma constelação latina. 

        Creio que não há necessidade de lhes contar a história. O importante a destacar é o quão antes do nascimento pode começar a história de um sujeito, uma história que é fundamentalmente discurso. Discurso que se abre desde dúvidas e que mostra a força de destino dada às interpretações. 

        Merece destaque também, como já apareceu no primeiro capítulo, a importância dada a visão. Tirésias, o desventurado adivinho, se transforma conforme aquilo que vê! Sem falar de Narciso, vítima também do que vê. 

        Neste ponto surge uma dúvida na tradução: Quando Tirésias é chamado a vaticinar a longevidade de Narciso, este se pronuncia dizendo, no texto tomado como referência por Donaldo, que Si se non noverit (v. 348), “Sim, se não se conhecer” (p. 16). No texto abordado por J.Brandão o vaticínio é Si non se uiderit, “Se ele não se vir”. Lamentavelmente não posso criticar o latim, mas talvez alguém possa. Fica em aberto. 

        Nos capítulos seguintes veremos como Donaldo vai tomando em consideração todas as venturas e desventuras dos personagens que circundam a Narciso. 

        Não posso seguir, contudo, sem citar-lhes uns poucos versos que eu chamaria de o 'discurso do lago'. Narciso se olha no lago e reflete, nos versos 462 a 470: 
 

Se interpreto bem o movimento dos teus belos lábios, me envias  
     mensagens que não chegam aos meus ouvidos. 
Esse sou eu! Entendi. Não me ilude minha imagem. 
Ardo de amor por mim. As chamas, eu as provoco e sofro. 
Que fazer? Rogar ou ser rogado? Rogar o que ainda? 
O que desejo está comigo. Minha riqueza me fez indigente. 
Pudesse eu separar-me de meu corpo! 
Quero em outro amante o que desejo, longe de mim, o que amo. 
A dor devora minhas forças. 
Não resta muito à minha vida, sumo extinto na flor dos anos.
 

  

3. O triste fim da imagem gloriosa 
 
Narcismo primário 
O divã de Freud
  
        O paradigma de Donaldo é a Paidéia. É desde aí que ele analisa o desenvolvimento de Narciso. O efebo não anda só. “Conviver com os demais, constituir família, perpetuar a espécie figuram no elenco das obrigações sagradas”. Quem ofende estas leis é punido por Ramnúsia, conforme nos conta Ovídio. Ramnúsia é uma provável referência a Nêmesis, pois havia em Ramnunte, próximo de Maratona, um famoso santuário a ela dedicado. Aqueles que querem ultrapassar o métron, a medida de cada um, devido a um excesso (hýbris), são punidos pela deusa. Isto leva Donaldo a concluir que “vida solitária só se consente a deuses e a animais”. Esta parece ser uma conclusão importante para o autor que a retoma mais duas vezes neste mesmo capítulo e ainda uma outra vez no cap. 6. Quando ele insiste no oxímoro “divinamente animalesco” ou “animalescamente divino”, ainda que inspirado por Aristóteles, não posso deixar de pensar na função do totem tal como a descrita por Freud, que dota o homem de um antepassado animal. No cap. 7 Donaldo retomará a questão levando-a por outro caminho: primeiro dizendo do que vive sem vínculos com a cidade, como podendo ser um apolis, um deus, ou então um degenerado, um phaulos. Finalmente retoma o tema, com Aristóteles que define o homem como “animal político”, um animal dotado com exclusividade de logos. A relação com o outro é mesmo a medida, o métron. 

        Para Ovídio, o antepassado de Narciso - como na cultura totêmica - também vem da natureza, não de um animal, mas sim de um rio. Céfiso é o rio que persegue Liríope, uma ninfa das águas. Donaldo vê aí o anúncio de uma nova fase, a da geração heterossexual dotada, como todo rito de passagem, de estigmas de violência. 

        O efeito desta violência aparece em Narciso, no dizer de Donaldo, quando este fica “preso no meio da corrente” do fluxo aquoso. E aqui, sutilmente, Donaldo fala de dois Narcisos: um que se conhece e outro, anterior, que não se conhece. O que não se conhece tem seu nome associado a narke, o entorpecimento, o embotamento. Para se conhecer é preciso tomar um certo distanciamento, como no quadro de Salvador Dali, Retrato do Presidente Wilson para ser visto a vinte metros. É só com uma certa distância que se configura a gestalt mais adequada. Sem se conhecer, embotado, invaginado, “Narciso vive como se nada lhe faltasse” (p. 27), conforme a fórmula als ob de Hans Vaihinger, própria da psicose. 
  
        Decorrido cerca de um terço deste capítulo, Donaldo abre um parágrafo com uma pergunta pela existência do Narcisismo primário. Mais um terço e ele lembrará de Freud, o que já me leva a pensar que aqui ele começa suas voltas cefísicas com o conceito freudiano. 

        É preciso ler com atenção para ver como Donaldo concorda desde o início com Freud, pois ele propõe que se considere Narciso antes de que ele se veja no lago. É preciso acompanhar suas voltar para ler na interrogativa que se segue uma verdadeira afirmação. Diz o autor: “Não temos aí narcisismo pleno, anterior à oposição eu/outro?” (p. 29). A continuação do argumento dará lugar a que já se pense aqui no estádio secundário do narcismo ao dizer que “narcisismo sedento de aplauso não é primário. Não está seguro de suas excelências o Narciso que solicita aprovação” (.p. 29). Um pouco antes de terminar o capítulo (p.35) Donaldo dirá da importância do olhar da mãe. Na verdade Donaldo continua com o artifício de afirmar pela interrogação através da negativa: na interminável contemplação de Narciso misturam-se dois olhares, o dele que vê a sombra mais o significado que os olhos encantados da mãe lhe acrescentaram. Donaldo vê na sombra um significante (p. 35). Estaremos de acordo se o considerarmos desde a vertente saussuriana, quando o destacado será a imagem acústica. Para pensá-lo com Lacan creio que teria de ater-me ao significado, desde logo inconsciente, da imagem do infante divino – para aproveitar a bela figura do autor – para esta mãe que não vê vantagem na circulação de seu filho pelo rio: isto significaria entrega-lo a Céfiso, o pai. O que o texto reforça é a figura do narcismo primário. A manutenção deste narcismo dever-se-á mesmo a dificuldade da introdução do significante indicador da falta. Como no ‘discurso do lago’, as “mensagens não chegam ao ouvido”, não tocam em Narciso. 

        No início do capítulo seguinte, o quinto, Donaldo abordará a questão com todas as letras: “a freudiana definição do narcisismo primário (período de onipotência, anterior a divisões internas ou externas) lembra os argumento de Aristóteles ao estabelecer o absolutismo do ato puro” (45-6). E logo a seguir afirma que só “o limite lança o homem ao narcismo secundário” (p. 46). 
No capítulo onze, quando declara a morte de Narciso, Donaldo reconhece o caráter letal do prolongamento do narcismo primário (p.138) e, avizinhando-se do final do capítulo, e também do livro, ao enumerar os narcisos trabalhados no texto, ele não hesita em abrir sua lista com o “Narciso primário”. 

        Os autores citados por Donaldo são vários, desde Homero que viveu no sexto século antes de Cristo até Derrida nos nossos dias, passando por Hesíodo, Heráclito, Platão, Aristóteles, Freud e Lacan, para dizer apenas, entre outros tantos, os mais citados. 

        Como já lhes antecipei, ainda no cap. Três Freud faz sua primeira aparição: Donaldo, como que antecipando uma discussão do cap. Cinco (p.48), entre os olhos e os ouvidos, privilegiados pelos hebreus, dirá que Freud (p.33) busca [o divã para] proteger-se do olhar das pessoas que o procuram. Ainda que o argumento lhe seja próprio e o autor encontre para isto motivos sobrados para justificar a autoproteção, a crítica não é original. De tempos em tempos se a escuta! Na verdade, não sei bem por quê.  Se se tratasse de proteção, não seria mais lógico pensar na proteção do paciente, uma vez que seus olhos poderiam fazer uma imagem distorcida de uma eventual careta do analista? Pensar em Freud, já nem digo nos analistas, como alguém que precise defender-se de seus pacientes? E deste modo? Para mim não faz sentido! Roberto Harari costumava dizer que o divã é um corolário teórico do funcionamento do aparelho psíquico. Deitado, em uma posição mais relaxada, o sujeito está mais afeito ao sonho, momento da vida em que os restos organizam-se como que por si mesmos. Para sonhar é preciso abstrair-se do imaginário presente. A comparação com Sartre - feita por Donaldo - leva-me a interpretar a denúncia à preocupação de Freud como sendo uma preocupação narcísea. Espero ter mostrado que no meu entender não é este o caso, mesmo porque o argumento conclusivo de Donaldo, “O homem que devora com os olhos expõe-se a ser deglutido pela imagem que o seduz” (p. 34), não se aplica a Freud; basta lembrar a impressão de Ernest Jones quando este conheceu Freud: o que lhe chamou a atenção é que Freud era um médico que escutava as pessoas, coisa que ele nunca tinha visto antes! 

        Os sonhos nos aparecem por imagens as quais, como no conhecido ditado chinês, valem mais que mil palavras. A análise possibilita descongelar estas imagens de modo diacrônico. O divã, ao propor a observação da imagem, do quadro, e seu concomitante espedaçamento palavra trás palavra, abre com isto a possibilidade do deslizamento metonímico do desejo. 

        Donaldo dá mostras de saber disto ao antecipar ainda neste capítulo a causa da morte de Narciso: a “falsa concepção do belo” (p. 36). Narciso queria imóvel [na imagem] aquilo que todos os dias se constrói (p. 36). 
 
 

4. Ecos de Eco em Narciso – 
 
o espedaçado e o pleno. 
o final de análise. 
  
  
  
Gárrula, contudo, como agora, tinha boca para repetir as derradeiras palavras de frases.  
Obra de Juno.  
Versos 360-61.
  

        Para compreender o presente, busca-se as origens. Mesmo para entender o presente do mito é preciso buscar suas origens em mitos anteriores. Os deuses, na sua simplicidade, não deixam ação sem reação. 

        Ainda no capítulo anterior Donaldo havia aproximado da figura de Narciso, as de Baco e Medusa, todos vítimas do espelho. 

        Agora, no quarto, começa pela reação de Juno ofendida. A ação abre uma fenda no outro que, ofendido, responde. Ofendida pelo marido, Juno fere Baco, o filho mimado e super-protegido pelo pai, na razão; Tirésias, aquele que se transforma conforme ao que vê, na visão; e Eco, a garrulante,  na fala. Uma vez feridos enfeitiçarão com suas feridas, tal qual Midas, aqueles em que tocam. 

        No capítulo Três mencionara Freud e agora menciona Lacan, concorde com Roberto Harari: “Se Lacan, então Freud!” 

        Donaldo recorre a Lacan para dizer da construção da criança como unidade desde um corpo que começa como partido, tal qual o primeiro Baco, tal qual Eco, através do espelho. Se Eco é espedaçada, é porque se contempla nos fragmentos do espelho. Nos mitos em que aparece seu fim é sempre o espedaçamento. Em Ovídio nasce assim, como castigo pela tagarelice: refletida aos pedaços, reflete dos pedaços os derradeiros. 

        Para Lacan o estádio do espelho, concorde a Baldwin, se dá em torno aos seis meses de idade da criança. Antes disto temos corpo fragmentado, morcelé. A unificação, a verheinigung, se dá pela presença de um objeto externo, como antecipa Freud na conf. XXI, para dizer na XXXI que esta unificação supõe já a estruturação de um eu distinto de um isso, um crescimento. Para Lacan o estádio do espelho precipita o sujeito da insuficiência à antecipação, levando-o a construir dos retalhos uma imagem ortopédica do corpo. Para Lacan é o outro que desempenha a função de espelho para o bebê. 

        Para fazer parte da sociedade é preciso, depois de ver-se como um todo se reconhecer como parte de outro todo. Eco não chega a ver-se como toda e Narciso desta visão plena não quer sair. 

        Donaldo identifica Eco ao objeto a minúsculo de Lacan, qualificando-o com o poder de servir à fecundidade (p. 41). Pois é isto mesmo, o objeto a tem o poder de ser causa de desejo. É devido a esta insubordinação intrínseca do objeto a que Eco desafia Juno, conforme nos diz o autor (p. 40). Pois eu diria que é disto que fala Lacan quando, no seminário cinco, na aula de 21 de maio de 1958, ele fala dos efeitos dos objetos no seu ambiente como de uma “refração” do mesmo através do objeto em causa, mediado pelo objeto. O objeto é que sub-ordena! 

        Eco é uma ninfa que não seduz a Narciso. O som que emite soa como palavra, mas não é palavra. Fosse um pássaro, lhe diríamos um psitacídeo. Eco psita! Na verdade não conheço uma Ninfa que tenha dito algo original; são feitas para o casamento, e o conúbio não requer palavras... Liríope não quer saber de palavras, não é da sua natureza, como talvez dissesse Aristóteles. De modo que não há de ser pelo eco que se há de alcançar o pleno Narciso. A insistência de Eco tem o mesmo efeito do olhar de Medusa: a transforma em rocha, limite da palavra (p. 44). É assim que Donaldo termina o capítulo, dizendo que, “na rigidez, Narciso e Eco traçam símbolos de morte” (p. 44). Pois Freud vê também por aí o fim - enquanto término - de uma análise: uma análise termina quando encontra a rocha viva da castração. Esta rocha, interpretada em Freud como sendo aquela que faz limite a terceira margem do rio, seu fundo, possibilita agora uma outra leitura: esta rocha diz de um limite de Céfiso, diz de um limite do nome-do-pai. 

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        5. Conflitos narcísicos nas aventuras de Tirésias.  
 
  

Pois, em verde selva, o coito violara de duas serpentes, golpeando, com o báculo, os corpos imensos.  
De homem que era – pasmem! – virou mulher, atravessando assim sete outonos.  
Versos 324-27
  
        O instrumento de Tirésias é o bastão. Lembrança sóbria do tirso de Baco, o bastão de Tirésias é “fronteira entre a natureza e o homem” (p. 47). Com ele ataca a conjunção dos corpos em busca da unidade perdida. O resultado é sua transformação em mulher. O encontro do bastão faz a mulher. Viajaremos longe de mais ao perguntar se isto estaria presente para o Fray Gabriel Téllez, quando, ao escrever pela primeira vez sobre Don Juan levando-o a tomar as mulheres uma a uma, esconde-se sob o Pseudônimo de Tirso, Tirso de Molina? A transformação só é grave, diz Donaldo, porque acentua a plenitude negada (p. 47). “Alternância é privação”, conclui o autor. “Tirésias [...] é sábio porque conhece, como poucos o muito que perdeu” (p. 50). No meu entender estamos falando de castração. A passagem pelo feminino implica em castração. A privação, para Lacan, implica em uma falta real de objeto, enquanto a castração implica na falta simbólica de objeto, como nos diz na aula de 3 de abril de 1957. “A cegueira [de Tirésias] ensina que só em parte o conhecimento de si é formado pelo espelho” (p. 51). O conhecimento de si precisa ser alcançado via secundum intelectum. A cegueira, no caso, impõe um limite que, reconhecido – esta é a referência à castração simbólica – possibilita uma iluminação interior (p. 51). 

        Na cegueira de Tirésias vemos a morte do “Narciso preso para todo o sempre à imagem fascinante” (p. 50). Na medida em que Júpiter, o pai supremo, compensa-o com o dom de ver o futuro, revelando-o a outros, Tirésias fica a salvo da imagem estática, congelada e congelante, de Narciso. 

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        6. A perda do esplendor narcísico e a lanterna de Diógenes.  

        No capítulo anterior vimos a importância da iluminação interior para o conhecimento. Mas isto não é suficiente! No início do séc. XX “Max Scheler declarou que já não possuímos nenhuma idéia clara e coerente do homem” (p. 53). Donaldo busca dar conta do adensamento das trevas em torno ao seu objeto de estudo: o homem. Para ele, Heidegger parece ser o primeiro a provocar a decida do homem do pedestal em que havia sido colocado pelo humanismo cristão. Com Heidegger o homem é “degradado a Dasein, ser-aí, clareira do ser”. Donaldo diz assim: “Sensível à argumentação de Heidegger, Lacan, depois de Freud, derruba o eu do trono em que o classicismo setecentista o tinha instalado” (p. 53). A frase situa a ambos os autores depois de Freud, ou apenas Lacan? Bem, o que importa é o reconhecimento de que “o Ser de Heidegger tornou-se Linguagem em Lacan”, e nunca é demais lembrar que toda a obra de Freud, desde a invenção da Psicanálise, mostra um homem feito de palavras. 

        Se para Foucault, que situou o nascimento do homem no século XVIII, a diminutos 200 anos, como nos diz Donaldo, urge assassinar o homem, este que se adonou de qualidades divinas (p. 54), lembremos aqui do conceito de sujeito tal como empregado por Lacan. Embora Freud já tivesse utilizado o conceito de Subjekt (2) , não do mesmo modo que Descartes, Kant e Husserl que o confundiam com o homem, mas sim como ‘objeto’, é Lacan quem dará o sentido atualmente utilizado pela Psicanálise. Trata-se justamente da teoria do significante onde encontramos o sujeito do inconsciente. A ofensa narcísea de Freud consistiu justamente no descentramento do sujeito; o eu já não era para Freud o senhor do universo e Lacan dá o golpe de misericórdia ao submete-lo ao significante que o representa para outro significante, através de uma cadeia, deixando-o como tal, no inconsciente, para sempre inacessível. 

        Talvez possamos interpretar no mencionado “procurei-me a mim mesmo”, de Heráclito, o reconhecimento de Donaldo de um sujeito para sempre perdido. Mas Donaldo está apontando para outro lado. Heráclito é um aristocrata que se obriga a escutar as pessoas do povo, inclusive Arquíloco, poeta e mercenário, que pergunta pelo sentido ético da vida, desde a covardia e o opróbrio. A Heráclito segue Sófocles, o criador de Édipo “o infortunado esposo e filho de Jocasta [que] enxergava tão mal, entendia tão pouco que nada lhe diziam as marcas inscritas pela crueldade paterna no seu próprio corpo” (p. 58). As marcas de Édipo são as marcas significantes, um automaton a espera de um código que intervenha possibilitando significação. 

        Enquanto Platão, discípulo de Sócrates, procura pelo homem nas sombras projetadas no recôndito da caverna, Donaldo lembra do colega de Platão, o irônico Diógenes, de farol aceso em pleno dia, pelas ruas populosas de Atenas, a procura de um homem: Oú est’ce q’il est? Poderia perguntar Derrida. E Lacan, com Donaldo e Diógenes, responde: procure-o no cotidiano; e depois, retornando a Freud, responde de modo mais específico: procure-o na psicopatologia da vida cotidiana!  
 
 
          7. A imagem narcísica e a cidade antiga – Platão vs. Aristóteles.  
  
        Este capítulo está dividido em oito sub-títulos: ‘O último pensador da pólis’, ‘O animal político’, ‘O governo de iguais’, ‘O estado’, ‘O cidadão’, ‘O discurso’, ‘A lei’ e ‘O fim’. 

        O paradigma continua sendo a Paidéia. As possibilidades são pensadas desde a condição de que Naarciso vença a sedução da imagem lacustre. Sem esta vitória,  nada ! 

        Aristóteles é o último pensador da pólis. Ele acredita no zoon politikon, um animal que se relaciona com os outros aravés do discurso. Aristóteles acredita no animal político por conseqüência de sua  crença na natureza: é sempre ela que provoca o desenvolvimento, mesmo o desenvolvimento das cidades está na mira da natureza, é através dela que se alcança o bem supremo, o telos da natureza: o homem livre. 

        O contraponto é Platão que situa o bem acima de tudo, “em alturas só disponíveis ao esforço da dialética” (p. 65). 

        A natureza em desenvolvimento estratifica a sociedade em camadas, colocando no topo um superior, um chefe; o modelo da pólis é a família. 

        A República de Platão, a contrario, implica no governo de iguais, daqueles que se reconhecem. Na medida em que na República temos o reconhecimento do múltiplo, podemos pensar que aí Donaldo situa um maior afastamento da posição narcísea. “Erram as constituições – diz Donaldo – que anulam as diferenças como faz a democracia demagógica” (p. 68-9). Não se consebe um estado só de pernas ou só de bocas. “Conceder privilégios desmedidos aos ricos é erro da oligarquia, favorecer indevidamene os pobres é erro da demagogia” (p. 69). 

        Em busca do ideal de viver bem, Platão retira o bem dos olhos escarvizadores do Narciso lacustre. Agora o bem é meta do discurso a ser alcançado pela dialética, não pela retórica que toma demasiadamente em conta os sentimentos. Freud diz, a propósito, que a pulsão inscrita no aparelho psíquico como representação coisa passa à consciência, de modo bífido, como representação palavra e como representação afetiva. A pergunta que fica é esta: como reconhecer os afetos senão por palavras? – Tanto Donaldo como Freud parecem ter mais simpatia por Platão. Donaldo então, é bem explicito. Em entrevista concedida ao jornal Zero Hora, recentemente, ele diz com todas as letras que “os especialistas são uns chatos”. Especialista é Aristóteles. 

        O sétimo sub-título é o único no feminino. Fala de Themis, a titânida representante da lei divina, da qual Donaldo diz “misteriosa”. Ora, misteriosa é a mulher, comparada por Freud ao então desconhecido continente negro. Donaldo nos diz que o mistério de Themis vem desde sempre. Tendo origem divina tende a ser imperativo e dominador. A escritura da lei é uma maneira “de resguardar os códigos da invasão dos mistérios” (p. 73) através do acordo entre os homens que se reconhecem entre si e legislam sobre as diferenças. 

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        8. A imagem narcísica e a cidade moderna – Blow-up.  

        Se o capítulo anterior foi dedicado à pólis e aos elementos estruturais de sua constituição, neste a atenção está focada nos actantes que a compõe: ‘o flanador’ consumista de imagens, ‘o trapeiro’ que recupera o lixo, ‘o homem absurdo’, ator que vive das efêmeras glórias perecíveis, ‘o homem sem qualidades’, como o de Robert Musil, um Narciso que alcança a longevidade sem se conhecer, ‘o fotógrafo’, que com ‘o telespectador’ tem na máquina fotográfica um traço de união ao mesmo tempo aproximante e separador. Aproximante na medida em que dota a ambos de um olho mecânico e têm em Blow-up, de Antonioni, uma sábia representação a ponto mesmo de Donaldo usar o mesmo texto de um dos parágrafos de um sub-título no outro sub-título. Separador enquanto de um lado mantém o ‘fotógrafo’ flanante e de outro interna o ‘telespectador’ em sua caverna com toda a parafernália eletrônica à sua disposição. O ‘telespectador’ já não precisa sair de casa para nada. 

        Depois temos ainda ‘o cinemaníaco’ que vive da identificação com os atores todo-poderosos, junto com o ‘radiouvinte’ eles se deixam inebriar pela voz sirênica do outro. 

        Donaldo enumera ainda ‘o leitor’ e ‘o violento’: o primeiro, enquanto leitor de livro, é um tipo raro; na medida em que se exige menos do leitor seu número cresce um pouco, mas não muito. O segundo, ‘o violento’, é um tipo que, ao contrário, cresce assustadoramente. A expressão não pode ser mais adequada! O quadro deste actante é tão preocupante que parece mesmo diferente de todos os outros. Donaldo diz que “o violento não se constrói através dos outros [porque] não vê a face dos outros” (p. 93). É claro que com isto Donaldo está apenas apontando para uma dificuldade particular deste tipo, pois certamente ele não acredita que ‘o violento’ seja causa sui. Basta ler algumas páginas adiante, no início do próximo capítulo, para ver a relação do violento com Eros (p.100). Pois eu diria que estamos aqui às voltas com fantasmas sádicos, não como em uma estrutura obsessiva em que o sujeito se relaciona com o objeto através de tentativas de reequilíbrio, como nos diz Lacan no Seminário cinco (aula de 21 de maio de 1958), e sim como em uma estrutura perversa em que o sujeito é levado a transgressões contínuas em busca da lei, em busca do pai. 

        O último actante mencionado é ‘o político’. Neste item a descrição já não é do personagem. O foco está no controle. Se na cidade antiga era ele que, graças aos instrumentos de controle, detinha o poder, agora é a massa amorfa que, através do jornal derruba e constrói ídolos. O jornal é agora o espelho mágico petrificante. 

        Para terminar o capítulo, mais dois sub-títulos. Em ‘a moda’ Donaldo vê “o ciclismo das estações” (p.96) tal qual a vida: “O corpo que se reveste com os lançamentos da moda caminha inexoravelmente para a morte” (p. 96). No embate entre a morte e a modo, vence a moda. 

        E no último sub-título, ‘actantes e atores’, temos uma espécie de ricorso em que o autor retoma alguns de seus personagens para deixar claro que ainda faltam muitos para serem descritos. Mas Donaldo não fecha o capítulo sem apontar para além dos atores, sua composição em grupos. “Narciso se delicia com a força do grupo” (p. 97). – O grupo é o espelho narcíseo desde o qual cada membro pensa que é! 

        9. O universo de Eros.  
 
  

Und die Liebe per Distanz,  
Kurzgesagt, missfällt mir ganz.(3)   

WILHELM BUSCH

  

        Permitam-me começar a leitura deste capítulo pelo anterior. A figura a qual recorro á de Blow-up, porém não mais ao de Antonioni, mas ao Blow-up de Donaldo Schüler. O Blow-up de Donaldo Schüler está, na verdade, não apenas presente em todo o livro, mas em toda sua obra. Está bem, a máquina fotográfica nos permite ver melhor que o olho nu, mas o que Donaldo nos está proporcionando é ainda algo mais sutil, é sua fina inteligência, me refiro com isto a sua capacidade de inter legere, quer dizer de ler por entre as linhas aproximando coisinhas daqui com coisinhas dali de modo a nos facilitar a compreensão levando-nos à intimidade do texto. 

        Pois o que aproxima é, como ele mesmo nos diz, antes de tudo, eros, escrito assim mesmo, com letra minúscula, tal qual aparece em Homero antes de ser deificado por Hesíodo. Não há como não evocar também aqui o minúsculo a, objeto denominado por Lacan como objeto causa de desejo. Deificado, Eros sofre inúmeras variantes até ser transformado pela teologia cristã em ágape, seu oposto, e ser marcado pela abstinência no amor cortês medieval. 

        Para entrar nos detalhes implicados pela erotização do texto, Donaldo recorre ao texto de uma mulher, aos fragmentos do texto de uma mulher, Safo. Não parece um modo de dizer que a mulher, para ser erótica, sedutora, não precisa mais do que um pequeno detalhe, um botão aberto por descuido, uma saia erguida de modo displicente, uma letra? Pois o fragmento 
 

              ERA 
              DERATO 
              GONGYLA 
leva Ezra Pound a compor  
 
              SPRING... 
              TOO LONG... 
              GONGULA… 
enquanto Augusto de Campos prefere 
 
              DOMINGO… 
              TÃO LONGO… 
              GÔNGULA… 
        Qual das interpretações é a verdadeira? O mais provável é que nenhuma porque nenhuma delas complementa aquilo que falta ao fragmento No entanto, enquanto suplementos ambas são formidáveis (no bom sentido)! Donaldo se faz acompanhar de Derrida para dizer que Lacan cultiva nostalgia logocêntrica quando afirma que o discurso repele toda certeza de verdade (p.111). O que é colocado em destaque é a questão significante e aqui se trata mesmo do significante tal qual Lacan o concebeu, como representante da falta; é aí que reside seu valor fálico. E o exemplo final é ‘Blanco’, um poema intencionalmente inacabado de Octavio Paz. 

        Enquanto a certeza fecha, a dúvida abre. Enquanto a certeza adere ao narcismo, as afirmações da dialética e da poesia levam a abertura, multiplicando as possibilidades ao infinito. Contudo, Eros é sempre o mesmo, atrai tanto a imagem de si como a do outro. Depende de quem olha; depende de como cada um se enfrenta com seu próprio narcismo. 

        10. Prazer, fruição, proliferação.  
 
  

Arde Lorenzo y goza en las parrillas;  
el tirano en Lorenzo arde y padece,  
viendo que su valor constante crece  
cuanto crecem las llamas amarillas.  
QUEVEDO  

Igitur perfecti sunt coeli et terra et omnis ornatus eorum.  
GÊNESE, 2:1. 

  

  
        Eu comecei esta leitura dizendo da conseqüência dos capítulos trás capítulos. Pois chegamos ao décimo. Não é ainda ao cume, mas estamos chegando a um platô importante. Embora ainda estejamos sob o signo de Eros – e quando não? – partimos agora d’O prazer do texto, de Roland Barthes, o qual, ao sublinhar o prazer, inderdiz a fruição. Este é o foco do capítulo, a distinção entre o prazer e a fruição, vale dizer a distinção entre o prazer e o gozo, a mesma distinção da qual se ocupam também tanto Freud quanto Lacan. Donaldo me ajuda imensamente ao dizer que “enquanto o prazer impregna o dizível, a fruição recua para o indizível” (p. 115). Aí está toda a problemática do gozo do sintoma, do qual a paralisia histérica talvez seja seu exemplo maior. No próprio texto sobre a introdução do narcismo, Freud, citando Wilhelm Busch, diz que quando o poeta sofre de dor de dentes, “concentrada está sua alma no estreito orifício do molar”(4) . Pois a palavra traduzida por ‘concentrada’ é Einzig, cuja tradução literal é “único”. É isto que está em jogo no gozo narcíseo, a fixação congelante do uno. O prazer envolve movimento, construção. A hedoné aristotélica, à qual Donaldo propõe aproximar a ‘fruição’, “se esconde num ponto utópico além do acontecer histórico” (p. 115); ela é plena, nada lhe falta, “arredonda-se num todo”, diz o autor. O movimento, implicando o transcurso do tempo, lhe é alheio. A “hedoné conclui e exclui toda atividade” (p.116). Aí eu colocaria o sonho, a alucinação e também o ideal (p. 131) na medida em que são estáticos. O perigo para o sujeito, alerta Freud, é quando seu eu atual se aproxima tanto do ideal do eu a ponto de fundir-se num todo ao qual ele chama de eu ideal. Para evitar isto, para evitar a entrega, Ulisses se faz amarrar a um mastro – mastro que noutro texto lembrei a analogia com o falo enquanto significante da falta – enquanto seus marinheiros, de ouvidos tapados, seguem remando: assim pode ouvir o erótico canto das sereias sem soçobrar. O interessante é que depois deste episódio nunca mais se ouviu falar do encanto das sereias. Acompanhando Ulisses até o fim, até o regresso aos braços de Penélope, Donaldo situa aí o fim da narrativa: Ulisses narra enquanto exilado; no momento do amor a ninfa Liríope entra em cena e já não há palavras. Mario de Andrade já se dera conta do aspecto intransitivo do amor. O amor, de dois, quer fazer um. Lacan aponta que para nós é muito fácil dizer, intransitivamente, “Penso, logo sou”. Esta é a dificuldade para o psicótico justamente em função da redução da duplicidade do Outro com A maiúscula e do outro com a minúscula. 

        A opção de Donaldo é pelo inacabado. No capítulo anterior citara Blanco, de Octávio Paz, agora cita Igitur, um conto inacabado de Mallarmé. O nome do personagem é tirado da versão latina da Bíblia, cujo versículo apresentei na última epígrafe. Donaldo situa neste versículo a passagem da ação criadora à rebelião humana (p.127). Sim, é verdade! A rebelião começa com a renúncia ao paraíso. É a partir daí que o homem se historicisa. A frecha de Mallarmé é mais precisa que a de Guilherme Tell: situa seu conto em um momento preciso da narrativa bíblica. Ainda que eu esteja de acordo com a leitura de Donaldo quanto a valorização do silêncio aí presente, minha tendência é a de valorizar o “quase nada” de Igitur. O Igitur de Mallarmé é, para mim, de certo modo, uma maneira de dizer não ao Igitur perfecti sunt, Ao “Assim foram concluídos”. Em seu conto, a primeira vez que fala, Igitur diz: Pas encore! “Ainda não!”. Sua invocação é de um não à conclusão, um não à perfeição. O último caminho a escolher será o de Santa Tereza. Donaldo denuncia com firmeza a importância do lugar de intervalo e não podemos desdenhá-lo. As primeiras palavras de Igitur, Pas encore!, evocam ainda o título do Seminário vinte de Lacan, Encore, onde ele fala do gozo e toma A transverberação de Santa Tereza, de Bernini, como motivo da capa. 

        Enquanto a fruição congela e paralisa, o prazer leva a outros textos, leva à proliferação dos textos, leva à vida, dia trás dia, apontando para o futuro, para o escatológico apoclíptico. 
 

        11. A morte de Narciso.  
 
  

Elle [a Ironia] est dans ma voix, la criarde!  
C’est tout mon sang, ce poison noir!  
Je suis le sinistre miroir  
Oú la mégère se regarde.  

Je suis la plaie e le couteau!  
Je suis le soufflet et la joue!  
Je souis les membres et la roue,  
Et la victime et le bourreau. (5) 
. 
CHARLES BAUDELAIRE, L’héautontimorouménos  (o carrasco de si mesmo - Terêncio). 

  
 

        O fim do livro parece confundir-se com a morte, mas esta é só a aparência. Narciso também se multiplica. Em Donaldo Schüler são quatro: o freudiano Narciso primário; o Narciso lacustre, preso à beleza do texto literário e morto de inanição quando este perdeu sua beleza; o Narciso urbano que, embora não tenha perdido a fascinante imagem lacustre, flana pelo mundo; e, por fim, o Narciso cego, infenso à imagem fascinante e não afetado pela cegueira mutilante, capaz de construir o futuro. Penso que nos dois últimos podemos situar o que Freud chama de narcismo secundário. Aliás, sempre que Freud fala em narcismo ele está falando em narcismo secundário; quando ele quer se referir ao primário ele o faz sempre de forma explícita, isto porque o narcismo próprio do sujeito é o secundário. O narcismo primário é o dos pais do sujeito. 

        Como Donaldo lê em Baudelaire, o poeta que se reconhece espelho já não é o primário preso a uma imagem fixa. Se ele chora, é porque já não é um Midas congelante, mas, ao contrário, é como um Moisés capaz de tirar da rocha dura a água capaz de fertilizar um outro jardim ainda que lá a camélia vá dar dois suspiros e depois morrer. 

        12. A última aparição de Narciso. 

        A homenagem a Cyro Martins é uma elegia? Talvez uma écloga?  Pode ser?  Mas antes de tudo, o que me chama a atenção é que ela aponta para um além. 

        O poeta conversa com o Lago. Já não é o Narciso primário. É outro, mas outro que sabe que do espelho nunca se está livre de todo. É desde este lugar que ele tenta negociar com o espelho lacustre a sua vida, buscando convencê-lo de que quem espelha o azul sem fim do céu não precisa da cara de um homem. Mas como o espelho parece indemovível, o poeta diz: 
 

            Se me negas o que te peço,  
            não negues o que te dou.  
            Dou-te o nada despido,  
            o nada que aqui estou. 
        O além apontado pode ser o do über-mensch, do super-homem nietzchiano. Pode ser também que negocie como Ulisses com Polifemo, este Ulisses que aprendeu a vencer a sedução mas sabe que não é possível não se submeter à castração. Mas como saber? 

        De qualquer modo, “na lembrança da flor, desabrocha o discurso, [...] monumento erguido aos conflitos de Narciso. A flor produz outras flores, o discurso gera outros discursos, milhares, nesse e em outros lagos, outros territórios, outras idades. Com a morte de Narciso, eclode a vida que o enamorado de si mesmo aprisionara. A morte deixa cinzas, rastros, recordações, imagens. A saída de cena ressoa” (p. 152-3). A metamorfose continua. 

Porto Alegre, 10 de junho de 2003
 
 
Notas:  
1. JUNITO DE SOUZA BRANDÃO, Dicionário Mítico-etimológico da mitologia grega. 2 vols. Petrópolis, Vozes, 1991. 
2. Ver, entre outros lugares, Triebe un Triebschicksale [1015]. 
3. "Amor à distância, é preciso admitir, não satisfaz nem um pouco minha preferência". Citado por Freud no caso do Joãozinho. E.S.B., Vol. X., p. 26. 
4. S.FREUD, E.S.B., vol. XIV, p. 98. 
5. "Em minha voz ela [a ironia] é quem grita! / E anda em meu sangue envenenado! / Eu sou o espelho amaldiçoado / Onde a megera se olha aflita. 
"Eu sou a faca e o talho atroz! / Eu sou o rosto e a bofetada! / Eu sou a roda e a mão crispada, / Eu sou a vitima e o algoz!" - Trad. de Ivan Junqueira para a Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1985.
 
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