“Freud, um mentiroso?”
Senhoras e Senhores
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Apresentado na Mesa-redonda homônima promovida pelo Recorte de Psicanálise,
no Salão Mourisco da Biblioteca Pública, em 5 de julho de 2000.
Notas:
* Este verso, tomado como epígrafe por Eliot, pertence à Divina Comédia de Dante, Inferno, XVII, 65-66.
i. ZH Volume: 037 Edição: 12.701 Domingo 28/05/2000 Página: 21
Editoria: Opinião
Assunto: Indlet, Dúvida, Questionamento, CuraFreud, um mentiroso?
Cada época histórica costuma fazer ajustes de contas com a época pretérita - seus valores e seus ícones -, e o faz de forma cruelmente iconoclástica. Marx, pensador da utopia social, está reduzido a cacos. Freud, pensador da cultura moderna, sofre ataques que sequer poupam sua probidade científica.
DÉCIO FREITAS *
A era das suspeitas sobre a probidade científica iniciou-se com audaz livro de Frank Cioffi (1973): Foi Freud um Mentiroso? Henri Ellenberger tachou a probidade científica de Freud de "vasta lenda". Historiadores da psicanálise questionaram suas curas. Acusam-no de inculcar como casos "objetivos" fragmentos de sua auto-análise, de esconder as fontes, de atribuir aos pacientes "livres associações" por ele próprio elaboradas, de exagerar sucessos profissionais, de difamar os oponentes. Ano passado, saiu em alemão livro do holandês Han Israëls, Der Fall Freud: Die Geburt Der Psychoanalyse Aus Der Lüge (Mais ou menos: O Caso Freud: o Nascimento da Psicanálise, Gerada pela Mentira). Na London Review of Books de abril, Mikkel Borch-Jacobsen, da Universidade de Washington, autor de Lembrando Ana O: um Século de Mistificação, fez sobre o livro extensa e erudita resenha, base deste artigo.
Israëls propõe-se fazer o diagnóstico da mendacidade de Freud. Com argumentação meticulosa, tenaz, devastadora, sustenta que ele confiava tanto em suas teorias que anunciava publicamente sucessos terapêuticos ainda não confirmados. Quando os sucessos não se materializavam, abstinha-se de dar a razão verdadeira - a prática de grave fraude científica. Como criança apanhada em flagrante, recorria a novas mentiras, acusando outros de lhe terem mentido. Sim, como dizia Cioffi, "Freud era um inveterado mentiroso que não hesitaria um só momento em reescrever a realidade se isso lhe permitisse sair da apertura". Fazia passar seus fracassos terapêuticos por avanços científicos. A despeito da retórica positivista, a psicanálise teria sido, desde o início, prática puramente especulativa, na qual fatos e provas tinham, na melhor das hipóteses, papel marginal. Como podia acreditar em todas aquelas bobagens que lhe contavam? Punha a culpa em outros, convertendo fracassos em vitórias: afinal, não fora ele próprio quem revelara as mentiras? Para Israëls, as mentiras começaram antes mesmo do nascimento da psicanálise. O primeiro grande fiasco foi em artigo (1884) no qual recomendava a cocaína para males tão diversos como desordens digestivas, enjôos a bordo, neurastenia, nevralgias faciais, asma e impotência, garantindo que a droga não criava dependência, como comprovara na cura de paciente (na verdade, o paciente de Freud era um amigo e o tratamento revelou-se um trágico desastre). Eminente especialista, o doutor Alnrecht Erlenmayer divulgou que testara o tratamento, sem resultado. Ao contrário, o paciente viciara-se em cocaína. Acusou Freud de adicionar à morfina e ao álcool "a terceira praga da humanidade". Réplica de Freud: o colega administrara mal a cocaína. Nunca mais voltou ao assunto, sempre ocultado por seus biógrafos.
Freud datava o nascimento da psicanálise do dia em que seu amigo Josef Breuer teria conseguido eliminar os sintomas histéricos de sua paciente Ana O. Demonstra Israëls que ela não foi curada pelo método psicanalítico ("cura pela fala"), mas após vários períodos de internamento em clínicas. Freud jogou a culpa no amigo, que não reconhecera o papel da sexualidade na etiologia da histeria (texto de Breuer desmente isso). Israëls denuncia a fraude da "Teoria da Sedução". Em conferência de 1896, Freud sustentou que os sintomas da histeria podiam ser atribuídos a traumas sexuais da infância, proclamando que em 18 casos descobrira a conexão e tivera sucesso terapêutico. Quatro meses depois, confessou ao amigo Fliess que nenhum dos tratamentos fora concluído. Não o comunicou porém, a seus colegas. Só 17 anos depois admitiu haver errado na teoria da sedução, sem mencionar seu fiasco terapêutico e o papel deste no abandono da teoria. Haviam-no confundido os "relatos em que pacientes referiam experiências sexuais passivas nos primeiros anos da infância", até que percebeu tratar-se de fantasias oriundas da "vida sexual da criança".
Jacobsen relativiza as denúncias de Israëls. As mentiras de Freud sobre questões clínicas não bastam para condenar a psicanálise. Só a reconstrução do contexto teórico de Freud permitirá explicar por que tão facilmente tomou suas especulações por realidade. Se a psicanálise deve ser criticada, não é por "fabricar" a evidência, mas por recusar-se a reconhecer isso e tentar encobrir o artifício. Freud não mentia cinicamente - só se convencia do próprio sucesso. Para Jacobson, à diferença das modernas ciências experimentais, a psicanálise se baseia em "observações" que, devido ao sigilo médico, não são acessíveis a outros pesquisadores, inibindo a contestação e o consenso. Como Lacan candidamente admitiu, isso é o que vincula a psicanálise a uma prática pré-moderna como a alquimia, que exigia "pureza d’alma do operador". Jacobsen: se não se pode confiar na "pureza d’alma" de Freud, o que resta da psicanálise?
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*Historiador
ii. ZH Volume: 037 Edição: 12.708 Domingo 04/06/2000 Página: 22
Editoria: Opinião
Assunto: Indlet, Polêmica, DiagnósticoFreud era mesmo um mentiroso?
LUIZ ERNESTO CABRAL PELLANDA *Fico triste ao ver um conterrâneo, cujos escritos tanto respeito, entrar nesse vagão do ataque indiscriminado a tudo o que se move ou tem valor, tão ao gosto deste fim de século. Não tenho procuração para defender Freud, nem preciso: sinto-me suficientemente incluído no ataque para agir em legítima defesa. É verdade que"Décio Freitas se diz apenas reprodutor do resenhador de um certo holandês Israëls, um outro Borch-Jacobsen. Dito assim, parece apenas uma briga de família, mas o que está por baixo é o mais grave: trata-se de um ataque sistemático e orquestrado contra os avanços do conhecimento sobre a alma humana, previsto desde o início pelo próprio Freud.
Freud advogava o silêncio como resposta a estes ataques, alegando não serem estas pessoas capazes de perceber a extensão das verdades psicanalíticas por não disporem da experiência pessoal, única forma capaz de gerar convicção. Até por isto foi acusado de incluir o insight psicanalítico entre as revelações religiosas... Rebater uma por uma das acusações de "mendacidade" de Freud seria tudo o que estes detratores desejariam: ficar-se-ia discutindo a rama sem penetrar no cerne. Poucos cientistas, em todas as épocas, tiveram suas vidas tão dissecadas quanto Sigmund Freud. Pode-se acusá-lo de tudo: de ingênuo ao se despir tão completamente diante de seu público, única forma de mostrar a universalidade dos seus achados sobre a existência do inconsciente. De idealista, ao tentar a solução de tanto sofrimento humano com tão poucos instrumentos. De pretensioso, ao se perceber em um campo inteiramente novo, onde só ele foi o desbravador, a ponto de até hoje não se poder escrever sobre qualquer tema em psicanálise que não tenha sido ele o primeiro a abordar, mesmo que superficialmente, de modo que se hoje avançamos bastante, o foi sobre a base que ele deixou. Mas mentiroso? Porque pensava ser "cura" o que hoje percebemos como etapa em um desenvolvimento sem fim? Ele mesmo foi extremamente pessimista em seus últimos escritos, como Análise Terminável e Interminável, quanto à possibilidade de uma "cura" real. Seria o mesmo que tachar de mentirosos os cientistas que defenderam a existência do "éter" no espaço e desconhecer todo o esforço de milhares de outros que contribuíram para um melhor entendimento do tipicamente humano em tantas áreas do conhecimento.
E que estranho edifício este da psicanálise, que a tantos vem beneficiando, se construído sobre mendacidades... E que belas mentiras estas, que permitiram o avanço da humanidade na compreensão dos seus mecanismos mentais. Que Deus tenha feito o mundo em sete dias também é uma mentira... tomado pelo ponto de vista deste senhores. Mas que lindas conseqüências o acervo destas e de outras, reunidas em um livro, pode gerar. Pode-se acrescentar, quem sabe, que mesmo sobre isto avançamos e podemos reinterpretar como simbólicas essas "mentiras", o que delas faz outra coisa que não mentiras. Se todas as "verdades" estão contidas em um único livro, corremos o risco de que todos os outros sejam ou redundantes ou deletérios, como já aconteceu em momentos desta nossa humanidade. Por isto respeito o direito de "pensar diferente" que todos temos, mas atacar por atacar é apenas tentar obter um pouco da glória de quem atacamos, como o assassino de Lincoln pretendia.
Freud é muito mais importante para a ciência em geral do que apenas para a psicanálise: graças em grande parte a ele foi possível a mudança paradigmática, vivida hoje em dia, que rompe com a dicotomia cartesiana entre corpo e mente e que considera a emoção um impedimento ao conhecimento. Ele mostrou que, ao contrário, a emoção é condição para saber, como aliás vem sendo amplamente demonstrado pelas neurociências modernas. De modo que, na minha opinião, Décio não é um mentiroso, apenas se deixou levar pela ilusão, conduzido ao engano num destes momentos de obnubilação que nos acomete a todos, a alguns com maior freqüência.
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*Psicanalista1. FREUD, S. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência I (1916[1915]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XV, 1976, p. 30.
2. FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol I, 1977, pp. 468-9.
3. LACAN, J. “Propos sur la causalité psychique” [1946]. In Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 154.
4. FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos [1909]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol X, s/d, p. 127. Itálicas do autor.
5. FREUD, S. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides)[1911]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol XII, .p. 23.
6. FREUD, S. Além do princípio de prazer [1920]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, 1976, p.32.
7. FREUD, S. Psicanálise e telepatia (1941[1921]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, 1976, p. 223.
8. FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia [1923]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, 1976, p. 287.
9. FREUD, S. Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIX, 1976, p. 252.
10. FREUD, S. Construções em análise [1937]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXIII, 1975, p. 303.
11. HEIDEGGER, M. Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, p.55.
12. LACAN, J. “Propos sur la causalité psychique” [1946]. In Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 161 (a tradução é minha).
13. Ver “Si vis vitam, para mortem”. In L.-O. Telles da Silva, FREUD / LACAN: O desvelamento do sujeito, Porto Alegre, AGE, 1999.