Luiz-Olyntho Telles da Silva  Psicanalista




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AS FENÍCIAS

PARA UM DESDOBRAMENTO DO COMPLEXO DE ÉDIPO

Luiz-Olyntho Telles da Silva


A guerra é o pai de todas as coisas.
(HERÁCLITO).                                      

        

     
Consta que As Fenícias foi apresentada pela primeira vez no mesmo ano da morte de seu autor, Eurípides, no ano de 406 a.C., quando ele já contava setenta e nove anos.

Quando foi que a escreveu? Já não sei responder. Em todo o caso, dizem que a peça foi escrita por encomenda. Eurípides aceitava este tipo de encomendas, encomendas como estas que não são raras nos dias de hoje quando tomamos conhecimento que os autores das novelas televisivas modificam constantemente não apenas o fim, mas muitas vezes o enredo das peças, colocando mais peso ora em um ora em outro dos personagens conforme ao nível de audiência, quer dizer, conforme ao gosto do público. Parece que com Eurípides se passava também algo assim!

Há mesmo quem diga que a peça sofreu interpolações e que o êxodo, principalmente, deve ter sido obra de outro autor, um sobrinho quiçá. Não sei. Vocês sabem que não sou especialista no assunto. Interesso-me pelo texto tal qual está.

De certo modo, creio que se o pode tomar assim como tomamos os textos históricos: como saber a verdade? A história é o que os historiadores dizem que é. Ninguém duvida da existência de Alexandre, o grande. Este é o apólogo tomado por Freud para dizer da verdade do que diz o analisante: o que importa não é se ele diz a verdade ou não, trata-se antes de buscar a verdade do que ele diz. É assim que trataremos As Fenícias.

Esta peça, As Fenícias, que não sei se devo incluí-la entre as tragédias (o Prof. Donaldo, ele que conhece mesmo este assunto, comentou comigo certa vez que uma das passagens centrais, a da briga dos dois irmãos, parecia mesmo uma piada, referindo-se à descrição dos movimentos dos contendores. Além das armaduras de bronze, portavam ainda pesados escudos com os quais protegiam o corpo inteiro. Escondidos atrás destes escudos vigiavam os movimentos do inimigo através de minúsculos buracos feitos especialmente para isto, na altura dos olhos, e, quando Polinices, um tanto distraído, temos de dizer assim, põem uma perna para fora do escudo ao chutar uma pedra que incomodava seus movimentos, Etéocles aproveita o descuido para rapidamente feri-lo. O Prof. H.D.F.Kitto, ainda que um pouco titubeante, classifica-a de melodrama.), pois esta peça, dizia-lhes, certamente foi escrita quando já estavam publicadas as outras tragédias do ciclo tebano escritas pelos companheiros da trindade trágica, como a eles se refere o Prof. Donaldo. A referência é a Ésquilo, o mais velho deles – nascido em 525 a.C. e morto em 456 a.C. –, inventor da tragédia antiga, de quem eu destacaria especialmente Os Sete contra Tebas, e também a Sófocles – que viveu entre 496 e 406 a.C. morrendo no mesmo ano de Eurípides – que nos deixou, entre outras, Édipo Rei e Antígona.

Todas tomam por base a lenda de Édipo e sua desgraçada vida. Eurípides também, embora seu êxodo seja diferente dos outros. O centro da história, aqui, é a disputa dos filhos – e irmãos – de Édipo pela herança, uma herança que parece não poder ser dividida! Manifestamente, trata-se do cetro de Tebas.

Se as outras tragédias nos mantêm, enquanto espectadores, atentos, com a expectativa aguçada pelos enigmas, nesta, diria que Eurípides prende nossa atenção jogando com o elemento surpresa: As Fenícias abre com uma fala de Jocasta, a mesma Jocasta que em Sófocles havia cometido suicido como ato contínuo à tomada de consciência de seu incesto. Aqui ela tem consciência de tudo, ou melhor, de quase tudo.

Na abertura desta primeira cena ela nos conta como as coisas evoluíram desde a fundação de Tebas por Cadmo, passando pela infelicidade de seu primeiro marido Laio, até a briga de dois dos seus quatro filhos, os dois meninos, porque as meninas, parece, não brigam, pelo menos entre si; uma delas, Ismene, não entra jamais em cena, sendo mencionada apenas uma vez. O valor atribuído a Ismene é outro que o atribuído por Ésquilo, embora, de modo geral, ela não pareça nunca uma figura de grande importância.

A presença de Jocasta já na primeira cena faz supor um efeito de verdade: a heroína morta volta para contar como as coisas se passaram. Não há como duvidar da morte, ergo de quem desde a morte fala. Se o que dizem os vivos pode ser posto em dúvida, dos mortos não se dúvida nunca, mesmo que não se acredite em bruxas.

Seja como for, Jocasta vai nos contando sua versão da história e, entre elas, coisas que nos surpreendem parecendo não fazer muito sentido.

Tebas é reconhecida por seus corcéis, por seus belos corcéis, e é deles que Jocasta se serve para dar uma vida volitiva ao Sol que obriga seus rápidos corcéis a conduzirem sempre, continuamente, seu fogo em torno ao mundo para iluminar a desgraçada consequência do abandono da pátria. O sol aqui não é um esplendor para cobrir o feio, como virá a ser, por exemplo, para São Tomás de Aquino. Aqui ela começa por Cadmo e termina por Polinices: ambos abandonam a pátria. O sol parece iluminar aquilo que se repete de modo significante. Jocasta – uma iluminista avant la lettre  é o sol a iluminar a história da família. Se a luz não ilumina o interior da pessoa, como queria Santo Agostinho, Febo, o Apolo luminoso aponta para cadeias significantes: depois de Cadmo, Polidoro, o primeiro herdeiro de Tebas também se vai do reino, deixando-o para Lábdaco. O abandono instala-se como marca. Já nos nossos dias, Heidegger dirá que aí está a história do homem. Mais que de um particular, trata-se de um universal: o homem é jogado, geworf, jogado no mundo em estado de abandono. Freud se utilizava da expressão Hilfosigkeit para falar de um estado de desamparo, psíquico e motriz, no qual o sujeito é jogado no mundo. Mesmo sendo filho da Harmonia – filha por sua vez da cipriota Afrodite deusa do amor , Polidoro carrega a marca do pai. Como Jocasta não deixa de anotar, seu próprio nome fora uma escolha de seu pai. A nominação paterna não é sem conseqüências.

A valorização do pai aparece de modo ambivalente: por um lado é ele que nomina, é ele quem põe as derradeiras marcas; por outro, como homem, é inseguro. Laio precisa do apoio do oráculo. Aqui é Laio que não resiste ao desejo, quer porque quer um filho. Em Sófocles é ela que o embriaga para roubar-lhe um filho. Aqui, Jocasta apresenta, com sua descrição, uma mulher desejada, irresistível, o que não combina, de modo nenhum, com o modo pelo qual se apresenta em cena: já velha e vestindo luto! Qual a morte aí pranteada?

Nascido o filho, o pai não o assume. Pelo contrário, abandona-o e, ao abandoná-lo, força-o a abandonar a pátria. Mérope, a rainha que adota o Édipo dos pés inchados, ao levar seu marido, o rei Pôlibo, a acreditar que fora ela mesma quem dera à luz esta criança, nos faz pensar na impotência de seu marido. Está bem, pode ser, ou não, mas o que importa é que não estamos escutando o relato da história a partir da perspectiva de Mérope e sim da perspectiva de Jocasta. O que não se pode deixar de escutar é que de um lado ela mostra com isto ter estado sempre a par do desenvolvimento de Édipo e, por outro, nos confessa que se um homem não deseja sua mulher isto certamente será por um problema dele, jamais dela! O que vemos, em todo o caso, é uma mulher atrapalhada com seu desejo. Se seu primeiro marido é um fraco, seu filho é altivo, valente e varonil. Quando mata Laio, ela nos conta, é por simples indignação! Decifrar a Esfinge foi um “simples acaso”. Apossar-se do cetro de Tebas e casar com a rainha, uma conseqüência lógica. Não há nenhuma suspeita de que ela mesma, conhecedora que era das andanças de seu filho, tenha assoprado ao ouvido de seu irmão a idéia de oferece-la como prêmio. Depois, na sua impossibilidade, é Antígona, a filha por ela nomeada, que irá cuidar de Édipo. Para Jocasta, os filhos não passam de um complemento fálico. Já crescidos, na impossibilidade de um convívio fraterno tolerável, combinam que o mais novo deixe a pátria voluntariamente, como se fosse exilado. Outra vez o abandono. Etéocles, que fica no trono, parece saber da história e, uma vez no timão, já não o abandona. A metáfora do timão nos remete a versão trágica, agora sim, a versão trágica desta história conforme a conta Ésquilo em Os Sete contra Tebas. A atitude de Etéocles implica em uma condenação do abandono, porém mal sabe ele que ao assim fazê-lo, tal qual Édipo, também condena a si mesmo. E a fala de Jocasta termina com a seguinte invocação a Zeus, uma invocação da qual podemos deduzir toda sua amargura:

Se [tu, Zeus,] és um deus dotado de sabedoria
não deves permitir com tua onipotência
que apenas um mortal seja sempre infeliz!

(vs. 143-45)[1].

O texto tende a mostrar seu desejo de compartilhar aquilo que tem: sua infelicidade.  Este é o seu gozo.

As Fenícias está construído basicamente em torno de três cenas e dois cenários. A primeira foi esta que venho de relatar-lhes, constituída integralmente pela fala de Jocasta; no fundo da cena aparece o palácio real e na frente do palco aparece um altar de Apolo. A segunda se passa no terraço (há quem diga no telhado) do palácio, entre Antígona e seu Preceptor, um velho escravo, vocês sabem, sua babá. Antígona é uma mocinha que vive ainda nos aposentos reservados as donzelas, quer dizer, às virgens, e curiosa do que se passa no campo de batalha, especialmente com seu irmão, Polinices. Se de um lado as cenas parecem independentes, de outro, Eurípides dá a idéia de armar um thriller: arma a cena e descreve ações rápidas.

Neste momento o Preceptor dedica-se a descrever os sete comandantes. A descrição é rápida se comparada com o segundo episódio de Os Sete contra Tebas. A rapidez almejada por Eurípides não o impede de registrar, pela ausência, os nomes dos campeões tebanos decantados por Ésquilo com a missão de defender Tebas. Suponho no sublinhado pela falta a importância atribuída à nominação. Mais adiante, quando Etéocles discute com Creonte a estratégia da defesa, ele diz – na tradução de Mário da Gama Kury – que “nomear cada um deles tardaria / quando o exército atacante está aqui” (vs. 1033/34). Noutra tradução, a frase aparece assim: “Dar cada um dos nomes seria uma grande perda de tempo, agora que o inimigo se encontra diante das portas”. Se uma nominação equivocada é mau presságio, sua ausência é sinal certo de fracasso. Notável ainda é a tranqüilidade que a cena nos passa. Em Os Sete contra Tebas esta cena, constante do segundo episódio, é frenética: ela é contada por um mensageiro a quem se atribui instruções específicas de ir espiar os adversários. Aqui não! Ao contrário, não há nenhum mistério, nenhum enigma. Só quem não sabia do que estava acontecendo é a virgem inocente, a ingênua Antígona. Até sua babá, um velho escravo, o oposto do que se supõem seja um soldado, já sabia de tudo.

A terceira cena – novamente em frente ao palácio – começa com a ocupação do párodo pelo coro composto pelas virgens fenícias que dão o nome à peça.

Em Os Sete contra Tebas, o coro parece ser formado por tebanos. Aqui, não! Ao se apresentar como uma dádiva a Apolo oferecida pelos parentes fenícios, iguais às oferendas de ouro, elas se referem ao deus sob o epíteto de Loxias, o oblíquo. Como diria Heráclito, o senhor, de quem é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta, mas dá sinais (93). Como um analista experimentado, Apolo prefere o apólogo oblíquo próprio das construções paratáxicas. Quando o coro diz que a Fenícia participa da mesma sorte reservada a Tebas (vs. 334/35) podemos escutar aí uma metáfora do que acontece entre pais e filhos. A vida dos pais é um presságio a dos filhos. As gerações oferecem, contudo, possibilidades de mudanças subjetivas. Se Ares é um filho maldito que não se cansa jamais de vingar o ódio pelo rechaço, gerando filhos malditos como Deimos e Phobos (c/ Afrodite) e Ixion e Corônis (c/ Flegias), esta última, amada por Apolo, pode gerar Asclépio que veio a ser o pai da medicina, quem sabe, depois de ter ouvido algum aforismo do tipo “Médico, cura-te a ti mesmo”.

O discurso do coro, nesta abertura da terceira cena, parece ter o mesmo objetivo do de Jocasta, na primeira cena: dizer como as coisas são. Neste sentido pode-se tomá-lo como uma continuação.

Laio é parente de Agenor e esta relação é bem marcada pelo coro, bem como sua dependência da infortunada Io. Ora, Cadmo, o fundador de Tebas, aí chegou porque estava em busca de sua irmã Europa, a qual sofrera a mesma sorte de sua tataravó Io, qual seja a de ter sido eleita por Zeus e seduzida pelo mesmo Touro. Cadmo passa por ter trazido a escrita fônica da Fenícia para a Grécia, e a escrita – que começa pelo Aleph, uma cabeça de touro, representa o próprio touro, o mesmo El adorado pelos patriarcas hebraicos – é a escrita de um destino: a vida dos pais, como um presságio, se reflete na dos filhos.

As Fenícias coloca em causa o saber: saber, todos sabem, mas de que adianta? Tanto o discurso de Jocasta como o das virgens fenícias dão mostras de saber de antemão qual será o desfecho, contudo parece que não se podem queimar etapas. Há coisas que precisam acontecer.

Não é a revelia da justiça
que um filho entra nesta luta apenas
por sua herança, recorrendo às armas!

(vs. 349-51).

O revel Polinices sabe, conhece a justiça, mas quando a terra pede sangue ele não pode negar; o que se pode fazer é torcer pelo melhor, e é isto que o coro representa aqui: o voto dos antepassados no reconhecimento dos filhos. É possível que a mostra mais recente desta verdade esteja no solidário reconhecimento do governo espanhol, por ocasião desta tragédia que abalou o mundo, de todos os sinistrados como filhos.

A entrada em cena de Polinices é a entrada do jovem efebo, dominado pela húbris e sempre disposto a ultrapassar o metron. Seus motivos, ainda que verossímeis, não convencem a quem deveriam. Chega a ensaiar um discurso reflexivo (vs. 462 e ss.), quer confiar nas palavras, mas parece como se a paranóia prevalecesse. Como anunciara a Corifeu – O doloroso parto cria sempre laços estranhamente fortes (vs.458/9) – depois desta fala de Polinices, sua mãe, referindo-se a Apolo, diz:

Um deus está querendo aniquilar agora
impiedosamente a raça do rei Édipo.

 (vs. 496/7).

Mesmo depois de ter dito que foi o próprio pai a amaldiçoar os filhos, ela ainda insiste em por as culpas em Apolo. Verdade também que se ela reconhece na maldição de Édipo aos filhos a etiologia de seu próprio desconsolo (vs. 435), ela mesma se mostra inconseqüente ao proferir outra maldição:

Maldito seja o causador de tantos males,
Quer eles venham de uma guerra, ou da discórdia,
ou de teu pai, ou de uma punição divina,
ou do gênio maligno da casa de Édipo,
já que estes infortúnios caem sobre mim!

(vs. 453-57).

É neste clima que entra em cena Etéocles para discutir com Polinices sob a bandeira do armistício, um armistício desde logo inútil. Inútil no fim proposto, mas não no sentido de mostrar as posições éticas as quais, embora válidas, carecem de um elemento simbólico na relação com o outro cuja existência só é reconhecida na posição de inimigo. Como propõe Freud em seu estudo sobre o Presidente Schreber, trata-se de uma necessidade de contradição do predicado: eu [um homem] não o amo, eu o odeio [outro homem].


Nesta cena há também o desfile de todos os personagens, dos polyprósopon, dos muitos personagens se comparados aos cinco (mais o coro) de Os Sete contra Tebas. Aqui são onze mais o coro; parece como se as pessoas precisassem ser muitas para compensar os nomes que são poucos, mas a substituição é cara e não resolve.

Na discussão aparecem as condições do exílio. Herdeiros ambos do cetro de Tebas, combinam que cada um deles governaria por um ano. O primeiro seria Etéocles, por ser mais velho. Polinices diz assim:

                ... tomei eu mesmo a decisão
de me ausentar desta cidade por um ano,
deixando o trono a meu irmão nesse período
com a condição de retomá-lo e ocupá-lo
de acordo com o revezamento pactuado;
minha intenção[2] era evitar desta maneira
que se acendesse entre nós dois a inimizade

(vs. 634-40).

Polinices está dominado ainda pelo ódio. Sua intenção tem a marca da Verneinung freudiana. Com tanto ódio é difícil o retiro propiciado pelo exílio, pelo afastamento, venha a surtir algum efeito benéfico. Etéocles sabe que Polinices é assim belicoso pela própria natureza determinada pela nominação paterna (vs. 889). Seu nome resulta da composição de poly, muitos, e neikos, a discórdia querelante. Se é assim, “por que iria eu ser seu escravo?” (vs.705-6) -  pergunta Etéocles mesmo sabendo ir contra a justiça:

Se é inevitável ir contra a justiça,
Melhor é ser injusto sentado no trono;
Em tudo mais devemos ser benevolentes.

(vs. 710-13).   

Mário da Gama Kury registra que esta era a máxima preferida do imperador Júlio César. Embora o saber seja importante, tudo indica que nem sempre ele ocupa o lugar da verdade. Quem se preocupa em levar o saber ao lugar da verdade é a Psicanálise, mas aí, como matemiza Lacan, trata-se de l’insu, trata-se do insabido, de um saber que não se sabe saber.

Cinco séculos antes, quando se discute a partilha dos despojos da guerra de Tróia, já no nono ano do cerco a Ilion, Aquiles e Agamêmnon entram em conflito: Aquiles está para desembainhar o gládio quando intervém Atena, a mando de Hera que por ambos vela. Visível apenas para Aquiles, ela segura-lhe o cabelo loiro por trás. Espantado, ele gira o corpo e, ante o brilho dos terríveis olhos azuis, pergunta:

Filha de Zeus tonante, portador do escudo,
por que vens? Assistir à audácia de Agamêmnon?
Pois declaro o que penso e hei de ver cumprido:
Seu belicoso orgulho vai causar-lhe a morte.

(vs. 203-5) [3].

A resposta que se segue está aí há cerca de três mil anos e não parece que ela vá ocupar definitivamente o lugar da verdade. Diz Atena:

Vamos, pára essa briga! Deixa em paz a espada!
Insulta-o com palavras, sim, o quanto queiras.
Agora vou dizer-te o que se cumprirá:
um dia hão de pagar-te o triplo em dons esplêndidos
como preço da afronta. Acalma-te e obedece.

(vs. 210-14).

Embora mais tarde vá ser morto por Paris, naquele momento Aquiles escutou e atendeu, vendo valor nas palavras. Xingou e maldisse a Agamêmnon, mas guardou a espada. Polinices não pode atender à sabia recomendação. Talvez se pudesse argumentar que ele ainda não sabia, mas será difícil encontrar sustentação para tal. Devo acrescentar não conhecer registro de sua experiência bélica anterior, diferente de Aquiles, já passado pela prova de sangue e bem experimentado. Está dito que Polinices faz o que faz à revelia da justiça. Ele conhece a lei e a lei que sempre importou é a lei da linguagem. Jocasta, por sua vez, também conhece a insensatez da guerra e da agressão física, o que não a impede de cortar a própria garganta, logo a garganta - movedora da fala.

O coro das fenícias é uma oferenda aos deuses em troca de proteção. Elas invocam as deusas, Perséfone e Deméter em especial e, como efeito, surge Creonte para discutir com Etéocles a estratégia da defesa tebana.4 Outra vez aparece o conhecimento prévio do fracasso, do fracasso da fraterna pugna em particular. O quê seus olhos não querem ver, talvez os olhos cegos de Tirésias vejam. Como Calcas dissera a Agamêmnon, Tirésias diz para Creonte: há que sacrificar um filho! Para Creonte, que nunca foi trágico, é mais fácil recuar e propor ao filho uma fuga covarde. Como Ifigênia, porém, Meneceu não pode fugir de suas obrigações com a pátria e se imola nas altas torres, pelo bem de Tebas.

As fenícias cantam os terríveis feitos da Esfinge, filha de Êquidna, de tão desastrosos efeitos, e para louvar o heroísmo de Meneceu enquanto imploram a Atena que lhes dê armas como as que possibilitaram a Cadmo matar o terrível dragão.

O terrível da Esfinge era sua demanda de saber. O que é? O que é? Decifra-me ou te devoro. A exigência de sangue faz pensar na angústia provocada pela presença do enigma. Na impossibilidade de suportar o insabido, atua-se.

Embora As Fenícias não coloque as coisas nestes termos, sabemos que ao se enfrentar com a Esfinge, Édipo estava voltando de um exílio e deve ter sido lá, no reino de Corinto, que aprendeu isto que tebano nenhum sabia. A aprendizagem exige distanciamento. No caso de Édipo, seu distanciamento parece ter sido a meias: de um lado estava longe, noutro reino, por outro, estava ainda muito perto, ligado ainda à mãe pelo cordão, digo, pelo curto estreito de Megara. No entanto, mesmo com uma resposta incompleta, seu saber lhe permite ir adiante, mas seu engano não é sem conseqüências e por este engano pagarão ele e as próximas gerações.


A fala do mensageiro, utilizando o recurso da teichoskopia, narra a batalha desde o suicídio de Meneceu até a fulminação de Capaneu por um raio de Zeus, já no alto das Torres. Tebas está a vencer quando Etéocles manda parar tudo e chama Polinices para uma batalha singular, relata o mensageiro já a contragosto.

Tomando conhecimento da luta, Jocasta dirige-se com Antígona para o campo de batalha. As favas já estão contadas:

                       ... mas se eles se mataram
cairei morta junto a seus corpos sangrentos!

(vs. 1768-9)

Enquanto isto, entra Creonte com o cadáver do filho nos braços, entoando lamentos, lamentos estes logo superados pelos lamentos que vem a entoar por sua irmã Jocasta. Ao pedir ao mensageiro que lhe conte como foi a morte de seus sobrinhos, ele diz, an passant,

Ah! Infeliz Jocasta! Que fim deplorável
trouxeram a teu casamento e tua vida os enigmas da Esfinge!
(vs.1852-4)

Creonte é um personagem patético! Qualquer explicação o satisfaz. De certo modo ele personifica a satisfação pelo conhecimento superficial. Mesmo sendo de uma linhagem nobre, não reconhece a nobreza da escrita, quer dizer, não reconhece a importância comercial de sua ascendência.

Jocasta praticou um ato indescritível,
vencida por um desespero desmedido:
tirou a espada curta de um dos dois cadáveres,
cravou-a toda em seu pescoço e desabou
inanimada entre os dois filhos já sem vida,
cingindo ambos ternamente com seus braços.
(vs. 2003-8).

Em Sófocles, o suicídio de Jocasta ocorre logo após dar-se conta do conhecimento do incesto. Aqui, ao contrário, temos uma personagem que passeia pelo palácio o tempo todo, flanante, com seu conhecimento up-to-date. A morte do marido, o incesto, a desavença dos filhos e tudo mais é aceito; intolerável é a perda dos filhos. Sem o complemento fálico já não é mais nada e a vida não tem mais sentido!

Depois disto vem um êxodo que muito já não interessa aos críticos. Dizem até que nem foi escrito por Eurípides! Quanto a mim, tenho de dizer-lhes que não sei. Deixo para outros esta questão sobre a autenticidade. Interpreto esta queda como um modo de chamar a importância para o suicídio, este ato sempre trágico.

Ao tomar em consideração que esta é provavelmente a última das peças sobre o tema a ser escrita, tenho de pensar que Eurípides vislumbrou no ato de Jocasta um outro valor que o simples reconhecimento do incesto. Tudo indica que deste incesto ela sempre soube. O que Eurípides precisou mostrar, com o deslocamento do momento do suicídio, foi o valor da irreparável perda.

A condenação de Antígona, enunciada pelo patético Creonte já não se cumpre do modo anunciado por Sófocles em Antígona.4 Quando, em uma de suas últimas falas, antes de acompanhar Édipo – que até então estava como prisioneiro em seus aposentos, para não dizer aposentado – em seu exílio, ela diz:

... foi extinta a casa de Édipo
no dia em ele soube decifrar
o enigma até então indecifrável.

(vs. 2076-78).

Com isto ela está dizendo saber de seu destino. Se ela sabe que sabe, isto já é outra história.

No discurso de Édipo, este de quem se esteve a falar todo o tempo e que é o último a entrar em cena, quando ele revê (rêve?) sua história, ele nos conta porque continua cego: continua confundindo o universal com o particular. E a verdade é que não é fácil fazer esta discriminação.

Raiando à redenção, Édipo enuncia suas últimas palavras:

Mas não devo chorar agora inutilmente
a minha sorte lastimável; um mortal
tem de acatar com paciência as leis dos deuses!

(vs. 2404-406).

Seus ancestrais, reconhecendo nestas palavras a enunciação da castração simbólica, cantam então em coro através das virgens:

Vitória excelsa! Sê companheira
de nossa vida e sempre a enobreças!


E cai o pano.



Notas:
1.  EURÍPIDES, Ifigênia em Aulis; As fenícias; As bacantes. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993.
 2. O grifo é meu.
 3. ILÍADA DE HOMERO, Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo, Mandarim, 2001, p. 43
4.  SÓFOCLES, Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre, L&PM, 1999.