JACQUES LACAN
 

LÓGICA DO FANTASMA
1966 – 1967

COLEÇÃO
O SEMINÁRIO
LIVRO 14

Estabelecimento
Isagoge e Notas
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva

Para uso interno do
RECORTE DE PSICANÁLISE


 

 
 
7 de dezembro de 1966
 
 

*  3  *



     Vocês puderam, na última vez que nós nos encontramos aqui, escutar o que lhes propôs J.-A. Miller.
     Eu não pude agregar observações. Penso que vocês puderam notar, nesta exposição marcada de um super conhecimento, o que foi inaugurado como lógica moderna pelo trabalho e pela obra de Bole. Isso não pode ser indiferente de fazer-lhes saber que J.-A. Miller, que esteve ausente em meu último curso, não estava seguro sobre sua escolha. Estas notações têm sua importância em razão da extraordinária convergência ou ainda da reaplicação do que pôde enunciar diante de vocês, de qualquer maneira, com conhecimento de causa, quer dizer, sabendo quais são os princípios e, se eu posso dizer, os axiomas ao redor dos quais giram agora meu desenvolvimento. É surpreendente que a ajuda de Boole, onde está ausente esta articulação maior, que nenhum significante poderia significar-se a si mesmo, que partindo da lógica de Boole, quer dizer, deste momento de virada no qual, de qualquer maneira, se apercebe ter querido uma formalização clássica, que esta formalização permite não só aportar-lhe extensões maiores e se revela ser a essência escondida sobre a qual esta lógica podia orientar-se e construir-se, acreditando em algo que não era verdadeiramente seu fundamento, acreditando continuar o que nós buscaremos cernir hoje para, de alguma maneira, separar [écarter] do campo no qual iremos proceder: a lógica do fantasma.
     A surpreendente facilidade com a qual os campos em branco da lógica de Boole – Miller voltou a encontrar a situação – o lugar onde o significante em sua função própria está aí elidido neste famoso –1, do qual ele destacou admiravelmente a exclusão na lógica de Boole, passando por esta elisão ele deixava o lugar onde eu articulara o que se situa aqui.
      Isto tem sua importância e lhes permite apanhar a coerência na qual se insere esta lógica em nome dos fatos do inconsciente e, se nós somos o que nós somos, quer dizer, racionalistas, isso que é preciso esperar, é bem evidente não que a lógica interior seja de alguma maneira invertida, senão que aí se faça reencontrar seus próprios fundamentos. Vocês viram marcado que neste ponto que necessita para nós a posta em jogo de certo símbolo, este algo que responde a este –1 de Boole, que não é seguro que seja o melhor ao uso. Porque o próprio de uma lógica formal é que ela opere, nós temos a resgatar novos operadores no que, à medida das orelhas às quais eu me dirigia, eu tinha já tentado articular de uma maneira manejável para o que havia a manejar, que na ocasião outra coisa não era que a praxis analítica.
     Este ano, partindo destes limites, sobre suas bordas, eu estou compelido a dar-lhes as formulações mais rigorosas para cernir o que nós vamos fazer e que merecem ser tomadas na articulação mais geral do que nos são dadas pelo instante, em matéria de lógica, a saber, aquilo que se centra na função dos conjuntos.
     Eu dispenso este sujet disso que J.-A. Miller aportou, menos como articulação ao que eu desenvolvi para vocês, do que como confirmação, asseguramento, enquadramento; não é interessante apontar-lhes senão designando-lhes em J. P. Sartre sob a designação de consciência tética de si o modo que ele tem de ocupar o lugar onde reside esta articulação lógica que é nossa tarefa, este ano: trata-se aí do que se chama um lugar-tenente. Isto do qual temos que nos ocupar, nós analistas, de uma maneira equivalente àquela dos outros lugares-tenentes quando temos que manejar isto que é efeito do inconsciente. É mesmo disto que podemos dizer que de algum modo o que eu posso enunciar se situa em relação a J. P. Sartre, posto que é ao redor deste ponto fundamental que gira o privilégio no qual ele tenta manter o sujeito. Esta espécie de lugar-tenente não pode de nenhum modo me interessar a não ser no registro de sua interpretação.
 


A LÓGICA E O VERDADEIRO

     Lógica do fantasma. Seria preciso lembrar para hoje, e nós não podemos fazê-lo senão muito rapidamente, o modo pelo qual com um toque de dedo se faz vibrar em um instante para lembrar a vacilação, não apagada, do que se enoda à tradição que o termo universitário destacará. Não é inútil indicar quaisquer que sejam os outros sentidos que se possa dar a este termo de universidade, universitas literarum, há aí alguma alusão ao universo do discurso. Está claro que nesta hesitação (lembrem a valsa que o professor de filosofia, no ano que vocês por aí passaram, fazia ao redor da lógica das leis do pensamento ou de suas normas, da maneira na qual isso funciona e que nós iremos extrair cientificamente, ou o modo pelo qual é preciso que isto seja conduzido)[1]. Admitam que, ainda que seja para não interromper o debate, talvez a suspeita surja de que a função da universidade, no sentido que eu acabo de articular, possa ser de separar a decisão. Eu quero dizer que esta decisão é talvez mais interessada, eu falo de lógica nisto que se passa no Vietnã. Que é feito do pensamento, tanto assim que ele resta ainda assim suspenso nesse dilema entre essas leis que desde logo nos levam a nos interrogar se elas se aplicam no mundo, dizemos antes ao real; dito de outro modo: se ele não sonha. Eu não perco minha linha psicanalítica. Para nós, analistas, saber se o homem que pensa sonha, é uma questão que tem um dos sentidos mais concretos.
     Para mantê-los suspirantes, saibam que eu tenho a intensão de passar este ano tratando do despertar: normas do pensamento no lado oposto. Eis que nos interessa, também em sua dimensão não reduzida, este pequeno trabalho de punçagem pelo qual geralmente o professor, quando trata da lógica em sua aula de filosofia, terminará por fazer que essas leis e essas normas terminem por se apresentar na mesma linha de modo a permitir fiar um dedo sobre o outro, dito de outro modo, que permite manejar tudo isso às cegas.
     Para nós, analistas, esta dimensão não perdeu seu relevo que se intitula aquilo do verdadeiro; portanto, depois de tudo, ela não necessita, não implica nela mesma o suporte do pensamento e que, se ao interrogar qual é a verdade de que se trata, a propósito do que eu suscitei o fantasma de uma norma, seguramente, parece claro desde a origem que isso não é imanente ao pensamento.
     Se eu me permito, para fazê-los vibrar, escrever uma figura que não era difícil de avivar, aquela da verdade saindo do poço[2], “eu a verdade falo”[3], é para pontuar este relevo onde se trata para nós de manter isto ao qual se engancha nossa experiência e que é impossível excluir da articulação de Freud, porque Freud colocou aí encostado ao muro muito rapidamente e não se forçou por isto a intervir, ele não se colocara aí. A questão pelo modo pelo qual se presume o campo da interpretação, o modo pelo qual a técnica de Freud lhe oferece a ocasião: a associação livre que, dito de outro modo, nos leva ao coração desta organização formal onde se esboçam os primeiros passos de uma lógica matematizada a qual tem o nome de redes, treliças; e precisamos (embora minha função hoje não seja precisar) que o que chamamos treliças ou ripados, é disso que se trata no que Freud também em seus primeiros esboços de uma nova psicologia e no modo como ele organiza o manejo da análise como tal, que ele constrói avant la lettre, se posso dizer, e como a objeção lhe é feita em um ponto preciso da Traumdeutung, ele responde à objeção seguramente com sua maneira de proceder em toda encruzilhada, vocês terão a ocasião de encontrar um significado que fará a ponte entre duas significações se com sua maneira de organizar as pontes vocês irão sempre de algum lugar à algum lugar.
     Não é por nada que eu tinha posto uma pequena etiqueta em uma interpretação do século XVIII, sobre os hieróglifos egípcios, a argila e a ponte; é disso que se trata em Freud nesta rede onde ele nos ensina a fundar a primeira interrogação. É com efeito uma pequena ponte: é como ponte que isso funciona. O que se objeta é que assim tudo explicará tudo.
     Dito de outro modo, o que se opõe à interpretação psicanalítica, fundamentalmente, não é nenhuma espécie de “crítica cientifica”, como se imagina na bagagem dos que entram na medicina, que têm ainda um pouco de filosofia, a saber, que o científico se funda sobre a experiência. Bem entendido que nós ainda não abrimos  Claude Bernard, mas conhecemos disso o título!
     É uma objeção que remonta à tradição medieval onde se sabia o que era a lógica, onde ela estava mais expandida que em nosso tempo. As coisas estão no ponto que havendo deslizado em uma interwiew que eu tinha uma certa prática de escolástica, eu pedi que se apagasse isso, senão o que é que as pessoas teriam acreditado!
     É da característica do falso tornar tudo verdadeiro.
     A característica do falso é que se deduz isto do mesmo passo, do mesmo pé, o falso e o verdadeiro não exclui o verdadeiro, seria bastante fácil reconhecê-lo para aperceber-se disto, é necessário haver feito um número mínimo de exercícios lógicos; é lamentável que isto não faça parte dos estudos de medicina. Os escolásticos expressavam isto pelo adágio: Ex falso sequitur quod libet. É claro que o modo pelo qual Freud responde nos leva rapidamente sobre o terreno da estrutura da rede, ele não o expressa seguramente em todos os detalhes, com as precisões modernas que nós poderíamos dar-lhe [à estrutura da rede].
     Seria interessante saber como ele pode aproveitar ou não o ensinamento de Brentano. A função da estrutura da rede como a maneira na qual as linhas de associação vêm a convergir em pontos, ilustram de onde se fazem as partidas eletivas, eis aqui o que está indicado por Freud. Sabe-se bastante, por toda a continuação de sua obra, a inquietude, o verdadeiro cuidado que ele tinha desta dimensão que é esta da verdade, porque do ponto de vista da realidade estamos acomodados, mesmo sabendo talvez que o traumatismo não é senão fantasma de um certo modo, é ainda mais sobre um fantasma como eu estou em vias de mostrar-lhes, é estrutural, mas isto não deixa Freud, que como eu também era capaz de inventar, isso não o deixa mais tranqüilo. Onde está o critério de verdade? Pergunta ele. Ele não teria escrito o homem dos lobos se não estivesse nesta pista, se não estivesse sobre esta exigência. É verdade ou não é?
 
 

A RELAÇÃODA VERDADE AO SIGNIFICANTE

     É verdade que ele suporta isso que se descobre ao interrogar a figura fundamental que se manifesta no repetido sonho do homem dos lobos? É verdade que ele não se reduz a saber se sim ou se não, e em que idade ele viveu algo que é reconstruído com a ajuda da figura do sonho? O essencial é saber como o sujeito, o homem dos lobos, pode verificar esta cena, sob seu ser e por seu sintoma, isto quer dizer (porque Freud não duvida da realidade da cena primária) como ele pode articular em termos propriamente de significante. Vocês não têm senão que lembrar da figura do V romano, enquanto que ela está ali em causa entre as pernas separadas de uma mulher ou nas asas de borboleta, para compreender que se trata do significante. Relação da verdade ao significante, a volta por onde a experiência analítica reencontra o processo mais moderno da lógica consiste justamente nisto: é que essa relação do significante à verdade pode curto-circuitar todo o pensamento que a suporta e, do mesmo modo que uma espécie de desígnio, se perfila no horizonte da lógica moderna que é o que reduz a lógica a um manejo correto do que é só escritura; igualmente para nós, a questão da verificação concernente a isso com o que temos que ver passa por este estreito fio do jogo do significante, enquanto que só para ele fica suspensa a questão da verdade. Não é fácil levar adiante um termo como este – da questão da verdade – sem fazer argumentar imediatamente todos os ecos onde vêm deslizar “as instituições”, as mais suspeitas, sem por outro lado produzir as objeções feitas de velhas experiências nas quais aqueles que se comprometem sobre este terreno sabem demasiado (gato escaldado tem medo de água fria) que vocês dizem que por isso que eu vos faço dizer “moi, la verité je vous parle”, que por aí eu abro sua reentrada ao tema do Ser, por exemplo. Observemos aqui ao menos para saber, por duas vezes, contentemo-nos com este nó bem expresso que eu acabo de fazer entre a verdade (eu não impliquei ninguém senão aquele a quem faço dizer estas palavras, “moi, la verité je parle”, nenhuma pessoa divina ou humana está interessada fora daquilo), a saber: este ponto de origem entre o significante e a verdade. Que relação entre isto e o ponto de onde eu parti recém; quer dizer que, para levá-los por este campo da lógica a mais formal, eu esqueci este onde se joga, como eu digo sempre, esta espécie de lógica. Está claro que Bertrand Russel se interessa mais que J. Maritain pelo que se passa no Vietnã, Isto por si só pode nos dar uma indicação.
     Evocando o Paysan de la Garonne sob seu último hábito[4], este autor que se ocupou da escolástica influência da filosofia de São Tomás[5], que não tem razão de não ser evocado aqui na medida em que a evocação da obra não tem incidência sobre a lógica; se eu evoco a J. Maritain e se implicitamente lhes convido a reportarem-se a este espírito de paradoxo que aí se demonstra é que se mantém neste autor, mesmo em seus últimos anos, esta sorte de rigor que permite aí ver conduzir até um impasse caricatural, em uma indicação[6] bastante exata de todo o relevo do desenvolvimento do pensamento moderno, a manutenção das esperanças mais impensáveis do que deveria se desenvolver em sua margem para que possa se manter o que ele chama a intuição do Ser. Ele fala a este respeito de Eros filosófico. Eu não tenho que repudiar diante de vocês o uso de um tal termo, mas sim seu uso nesta ocasião, a saber: em nome da filosofia do Ser, esperar o renascimento correlativo da ciência moderna, [esperar isto] de uma filosofia da natureza, partícipe de um Eros que não pode reconstruir senão a comédia italiana. Isto não impede a passagem de nada, para retomar essas distâncias, que sejam pontuadas das mais pertinentes notações concernentes ao que é da estrutura da ciência uma vez que nossa ciência não comporta nada de comum com a dimensão do conhecimento; eis aqui que, com efeito, é muito justo, mas não comporta uma promessa de que este renascimento do conhecimento antigo seja rejeitado, pois ele comporta uma outra perspectiva a qual eu retomarei depois deste parêntese, é disto que se trata de interrogar.
     Não há nenhuma necessidade para nós de recuar diante do uso destas tábuas de verdade por onde os lógicos introduzem, v.g., um certo número de funções fundamentais da lógica proposicional.

     A conjunção de duas proposições implica que, se nós colocamos os valores, a saber, que se duas proposições:

O valor P:  verdadeiro ou falso

O valor Q:  verdadeiro ou falso

O que chamamos conjunção é o que não será verdadeiro senão na condição de que os dois sejam verdadeiros? Em todos os outros casos sua conjunção será falsa. É suficiente que vocês abram não importa qual livro de lógica moderna para encontrar a implicação, a equivalência.
     Isto pode ser para nós suporte, mas não é suporte e apoio senão para o que iremos perguntar para saber: é licito o que nós manejamos pela palavra? O quê nós dizemos? E dizer que há a verdade? É licito escrever o que nós dizemos, já que o escrever será para nós o fundamento de nossa manipulação?
     Com efeito, a lógica moderna, eu acabo de dizer e de repetir, quer se instituir, eu não disse como uma convenção, mas como uma regra de escrita, e esta regra de escrita, bem entendido, se funda sobre o quê? Sobre o fato de que, no momento de constituir o alfabeto, nós colocamos um certo número de regras chamadas axiomas, concernentes à sua manipulação correta e que isto comporta uma palavra que a nós mesmos nos damos.
     Temos o direito de inscrever nos significantes o verdadeiro e o falso, do verdadeiro e do falso como de qualquer coisa manejável logicamente?
     Seguramente, qualquer que seja o caráter introdutivo, primicial destas tábuas de verdade que podem nos cair nas mãos, o esforço desta lógica será o de construir a lógica proposicional sem partir deste quadro, devendo-se por outro lado, depois de haver construído de outro modo as regras da deducionabilidade, aí voltar.
     Mas o que nos interessa é saber também o que isso queria dizer, de que nos serviu, eu digo aqui especialmente, na lógica estóica.
     Eu fiz alusão a - está claro que isto não foi articulado com uma tal força em nenhuma parte melhor que nos estóicos.
     Sobre o verdadeiro e o falso, os estóicos se interrogaram por esta via lógica, a saber: o que é preciso para que o verdadeiro e o falso tenham uma relação com a lógica no sentido próprio em que nós a colocamos aqui; a saber, que o fundamento da lógica não está tomado de outro lugar senão da articulação da linguagem na cadeia significante e isto porque sua lógica era uma lógica de proposição e não uma lógica de classe. Para que haja aí uma lógica de proposição, para que isso possa mesmo operar, como é preciso que as proposições se encadeiem à vista do verdadeiro e do falso, ou se ela tem algo a fazer, o verdadeiro deve engendrar o verdadeiro, é o que chamamos de relação de implicação em um sentido em que ela não faz nada intervir, a não ser dois tempos proporcionais: a prótase, para não dizer a hipótese, não se trata de crer, trata-se de colocar que o que é afirmado é afirmado como verdadeiro; a segunda proposição é a apódose. Nós definimos a implicação como algo onde não pode aí haver nada além de uma prótase verdadeira e de uma apódose verdadeira. Isto não pode resultar senão em algo que nós colocamos entre parênteses e que constitui uma ligação verdadeira, isto não quer dizer de todo que aí não possa haver mais que isso.
     Suponhamos a mesma prótase falsa e a apódose verdadeira. E então!? Os estóicos lhes dirão que isto é verdadeiro, porque precisamente do falso pode ser implicado tanto o verdadeiro como o falso; por conseqüência é o verdadeiro, não há nenhuma objeção lógica. Trata-se aqui do Ex falso sequitur quod libet.
     A implicação não quer dizer a causa, a implicação quer dizer esta ligação onde se escreve de uma certa maneira dois tempos proposicionais concernentes à tábua de verdade: a prótase e a apódose.
     A única coisa que não pode acontecer é a doutrina do assim chamado Filon: uma prótase verdadeira não saberia implicar uma apódose falsa. Este é o fundamento radical que permite manejar em uma certa relação com a verdade a cadeia significante como tal. Isto nos dá a possibilidade de uma tábua.
     Pois bem, a ligação de implicação está conotada de falsidade! O que é que isto quer dizer? Seguramente, eu já lhes disse, as condições de existência mais radicais de uma lógica.
     O problema de fato evidentemente é este que nós temos de enfrentar quando vamos falar disto que está escrito.
     Em outros termos, quando o sujeito da enunciação entra em jogo para colocá-lo em uma posição de valor, nós temos que observar o que acontece quando nós dizemos que “é o verdadeiro que é o falso”; isso não muda nada[7], apenas o falso simplesmente retoma um não sei quê de brilho, um enquadramento que o faz passar por um falso esplendor.
     Dizer do falso que é verdadeiro não tem o mesmo resultado, eu quero dizer que nós fundamentamos o falso, mas nós diremos antes que é falso que seja verdadeiro. O emprego do subjuntivo nos indica que aí algo se passa.
      Dizer que é verdade que é verdade, vai bem, nos deixa uma verdade assegurada ainda que tautológica, mas dizer que é falso que seja verdade não assegura sem dúvida a mesma ordem de verdade.
      Dizer que seja falso não é portanto dizer que seja verdade. Nós nos vemos pois com a dimensão da enunciação recolocada em suspenso de algo que não demandava funcionar senão de um modo completamente automático, ao nível da escritura, e isto porque é de fato tocante notar qual é o lado escorregadio deste ponto onde o dama surge exatamente desta duplicidade do sujeito. Eu não hesitarei em ilustrar com uma pequena história de minha carreira, esta reclamação de exigência que um dia surgindo da garganta de alguém dos mais seduzidos pelo que eu aportava como articulação de meu ensino, tocante jaculação lançada ao céus: Por que ele não diz a verdade sobre a verdade?
     Esta espécie de inquietude encontraria sua resposta de modo suficiente, como condição de repassar ao significante escrito, o verdadeiro sobre o verdadeiro. O verdadeiro sobre o verdadeiro, o significante não saberia significar-se a si mesmo, salvo a isto que não seja ele que o signifique, salvo o uso da metáfora, que substitui um significante outro a este V da verdade, e de fazê-la sair de novo, a saber: a criação de um significante falso.
     A propósito do discurso assaz rigoroso que procuro fazer hoje, isso pode ainda em vossos cérebros engendrar estas confusões ligadas à produção do significado na metáfora.
     Não é surpreendente que me volte às orelhas, da mesma fonte onde se produz uma invocação concernente ao que eu ensino de Freud, isto que esta boca elegantemente articulou como “diluição conceitual”!
     Há uma espécie de abuso onde se mostra a relação estreita que tem com a estrutura do sujeito o objeto parcial. O fato de admitir que é possível comentar um texto de Freud diluindo seus conceitos, evoca o que não poderia[8] satisfazer à função do objeto parcial, que o objeto parcial deve poder ser dividido. O pote de mostarda, definido como estando necessariamente vazio de mostarda, não poderia[9] ser enchido novamente de modo satisfatório com uma diluição, com merda mole.
     É essencial ver a coerência que têm estes objetos primordiais com todo manejo correto de uma dialética subjetiva.

A ESCRITURA E AS NEGAÇÕES

     Para retomar estes primeiros passos concernentes à implicação, é necessário ver surgir esta união entre a verdade e o escrito, a saber: o que pode ser escrito e o que não pode. Que quer dizer este “não pode” em cujo limite a definição fica completamente arbitrária? O único limite colocado na lógica moderna ao funcionamento de um alfabeto em um certo sistema, o único limite sendo o da palavra dada, axiomática e inicial. Que quer dizer “não pode”? Há um sentido na palavra dada, inicial, interditivo[10]. Mas o que é que se pode escrever disto? O problema da negação está colocado ao nível da escritura enquanto que ela regula como funcionamento lógico. Aqui nos aparece imediatamente, estamos certos disto, a necessidade que fez surgir desde o começo este uso da negação nas imagens intuitivas, marcadas pelo primeiro desenho disso que não deseja ser borda, as imagens de um limite, aquela onde a lógica primeira, a introduzida por Aristóteles, a lógica do predicado, que marca o campo onde uma classe se caracteriza por um predicado dado e, fora desse campo, por esta união com ele. Não é articulado ao nível de Aristóteles que isto comporta a unidade do universo do discurso, como eu digo a propósito do inconsciente, de fazer voltar a sentir o absurdo de ressaltar que há o preto e o que não é. É o fundamento da lógica do predicado.
     Não é hoje, mas nas sessões seguintes, que eu tratarei de distinguir para vocês, de maneira completa, quais são ao nível lógico, propriamente falando, o que se impõe da própria escritura para discernir a negação. É por meio de pequenas letras que eu lhes mostrarei que há quatro escalas diferentes de negação, sendo que a negação clássica, aquela que invoca e parece se fundamentar unicamente sobre o princípio da contradição, não é senão uma dentre elas. Esta distinção técnica, quero dizer, esta que se pode formular estritamente na lógica formal, é essencial para nos permitir por em questão o que Freud diz, e que depois que ele disse, nós o repetimos: o inconsciente não conhece a contradição. É triste que certas proposições sejam lançadas sob esta forma de flechas iluminando estas formas, nos coloque na pista dos desenvolvimentos os mais radicais e que isto permaneça neste estado, suspenso ao ponto de que uma dama qualificada por um título que ela tinha oficialmente, o de Princesa, o repetisse acreditando que com isto dizia alguma coisa: este é o perigo!
     A lógica não se suporta senão onde possamos manejá-la pelo uso da escrita, pois, para dizer a verdade, ninguém pode assegurar que, porque alguém fala, por isto diz alguma coisa. É isso que a torna suspeita, é por isso que é necessário recorrer ao aparelho da escritura. Quer dizer, a palavra fica vazia se não se a remete, como a toda asserção lógica, ao aparelho da escritura.
     Nós devemos nos aperceber do modo sob o qual surge, noutro lugar que na articulação escrita, esta negação. Onde poderemos apanhá-la? Ou seremos forçados a escrevê-la somente com os aparelhos que eu já produzi diante de vocês?
     Tomemos esta implicação: a proposição P implica a proposição Q (P  Q). Tratemos de ver o que se pode articular, partindo de Q, a saber: o que nós podemos articular da proposição P, se nós a colocamos após a proposição Q, nós devemos escrever a negação antes, ou ao lado, ou acima, em qualquer lugar ligado a Q. P implica Q indica que se não P, não Q (Q). Pois bem, por aí mesmo surge uma forma de negação que não tem nada a ver com a negação complementar da lógica de classes e que chamaremos o “não-sem” [pas–sans] – isto não anda sem aquilo -, para sublinhar o paradoxo que pode haver aí em reunir duas proposições por uma implicação, atendendo a que o verdadeiro não engendra o falso.
      Temos tomado um exemplo, e um dos mais simples, da necessidade do surgimento no escrito de alguma coisa na qual se faria mal crer que é o mesmo que funcionava todo o tempo a título de complemento, a saber: que dele mesmo se colocava o universo do discurso como 1. As duas coisas vão tão pouco juntas que basta decretá-las para desarticulá-las uma da outra, e fazer com que uma e outra funcionem distintamente.
     Isto se propõe como interrogação inicial para isso que pode ser escrito, a saber: o ponto onde se ilumina a duplicidade do sujeito da enunciação ao sujeito do enunciado, esta duplicidade onde esse sujeito se mantém, nós teremos desde logo a função da negação desde que ela rejeite toda ordem do discurso que o discurso articula; isso do qual ela fala, isso eu destacarei.
     Isso que Freud avança, e que é desconhecido quando ele articula o primeiro não da experiência enquanto que ela é estruturada pelo princípio do prazer, como ordenando-se, diz ele, de um eu [moi] e de um não-eu; este não deve ser distinguido da negação complementar. Somos tão pouco lógicos que não nos apercebemos que, nesse momento, não se saberia tratar isto como uma maneira tanto mais falível, ainda mais que no texto de Freud os dois estudos estão distinguidos, o eu e o não-eu, lust-unlust, da não complementaridade da ordem do discurso.
     Se eu e não-eu querem dizer: tomar o mundo em um universo do discurso, aquilo que é o que se evoca ao considerar que o narcismo primário pode intervir na ciência analítica, isto quereria dizer que o sujeito infantil, no ponto onde Freud o designa, desde logo no primeiro funcionamento do princípio de prazer, é capaz de fazer lógica. Enquanto que isto do que se trata é da identificação do eu [moi] no que o agrada, no lust. O que quer dizer que o eu do sujeito aqui se aliena de maneira imaginária, o que quer dizer que é precisamente no lado de fora que isto que agrada está isolado como eu, este primeiro não que é fundador quanto à estrutura narcísica, de modo que na continuação de Freud ela não se desenvolve senão nesta espécie de negação do amor.
     Não se dirá que eu não digo a verdade sobre a verdade, senão a verdade sobre o que diz Freud.
     Que todo amor esteja fundado neste narcismo primeiro, eis aqui uma das perguntas onde Freud nos pede saber o que pertence a esta pretensa função universal na medida em que ela vem dar a mão à famosa intuição do Ser.
     O des do desconhecimento que se distingue do complemento na medida em que no universo do discurso ele designa e pode designar a contrapartida. Nós o chamaremos a “contra” para não dizer o contrário. É distinto para o próprio Freud. Isto ao qual eu faço alusão na implicação para revelá-lo nas revelações opacas em suas voltas, na própria implicação, o “não-sem”, a implicação tal como a define a tradição estóica. Há um certo paradoxo no fato de que ela seja constituída de tal modo que não importa qual proposição P e Q constitui uma implicação e que se está claro dizer que “Mme. Untel tem os cabelos amarelos”, [então] os triângulos equiláteros têm uma proporção por sua altura. Mas o que implica a proposição da volta, a saber que a condição torna necessária inverter a segunda proposição em direção à primeira, é o “não-sem”.
     Isto não acontece sem “Mme. Untel pode ter os cabelos amarelos”, isso não tem para nós a ligação necessária com isto: o triângulo equilátero deve ter algumas propriedades. Resta o fato de que ela tenha os cabelos amarelos, isso não acontece sem que algo pareça verdadeiro. Este não sem o posiciona, o surgimento do que nós chamamos a causa, se se pode dar uma existência a este ser fantasmático, é a função deste “não-sem” e o lugar que ele ocupa que nos permitirá desalojá-lo.
     Para terminar sobre o que será o objeto de nosso próximo encontro: o não. Podemos fazê-lo surgir enquanto forma complementária do mundo, o desconhecimento, se este termo de “não-sem”, quando ele venha se aplicar aos termos mais radicais sobre os quais eu faço voltar para vocês a questão do inconsciente, pode vir-nos à idéia de que quando falamos de não-ser, trate-se de algo que estaria no contorno da bolha do ser? Trata-se de que o não-ser seja todo o espaço exterior? É possível sugerir que isso que nós queremos dizer, este ser que eu preferiria intitular: “o lugar onde eu não sou”?
     Quanto ao “não pensar”, quem irá dizer que aí está alguma coisa que não se possa pegar neste entorno de que trata a lógica do predicado? A compreensão disto como se ele constituísse o menos antinômico no registro da extensão, que está claro que todo o passo que se fez na lógica está feito sob o ângulo da extensão. Que a negação possa continuar a estar em questionamento primordial posto em uso, concernente a isto do qual se trata, se ela deve ficar ligada à extensão, que quer dizer este “não pensar”? Ao ponto do que nós podemos escrever em nossa lógica? Questão ao redor da qual, a do “eu não sou” e do “eu não penso”, eu desenvolverei nosso próximo encontro.
 

*

1.    Esta frase consta assim nos dois textos de referência.
2.    Em francês aparece puits [poço] que designa também a uma pessoa que sabe guardar segredos.
3.    Moi, la verité je parle. – A sintaxe francesa implica que quem fala a verdade seja o je.
4.    Lacan se utiliza do título do último livro de Jacques Maritain como metáfora do nome do autor. O habillement habilmente   empregado por Lacan tem no francês um espectro tão grande ou maior que o “hábito” no português.
5.    Lacan fala aqui em St. Thomas o qual, desde o Seminário 23, O sintoma, retrospectivamente, pode ser pensado como um jeu de mot com Sainthome.
6.    No texto francês aparece repère que, em sentido figurado, é tudo o que permite reconhecer, reencontrar uma coisa em um conjunto; e não se pode deixar de notar aí a presença de um père, de um pai.
7.    No texto francês aparece ça ne bouge pas.
8.    No texto francês aparece saurait (saberia).
9.    Idem nota anterior.
10.  No texto francês aparece a palavra interdictif, não registrada pelo Petit Robert.