JACQUES LACAN
 

LÓGICA DO FANTASMA
1966 – 1967

COLEÇÃO
O SEMINÁRIO
LIVRO 14

Estabelecimento
Isagoge e Notas
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva

Para uso interno do
RECORTE DE PSICANÁLISE


 

 
 
ISAGOGE


O texto que lhes apresento foi extraído de três versões apócrifas do Seminário de Jacques Lacan, uma delas em francês e duas em espanhol, sendo que uma destas, bastante abreviada.

A propósito do título do Seminário, quero adiantar-lhes algumas considerações, uma vez que nem todos parecem de acordo com sua tradução à nossa alíngua portuguesa:

a. No original, em francês, aparece “Logique du fantasme”.

b. No dicionário Francês-Português (S.Butin-Vinholes) o mot “fantasme” não consta.

c. Em um Larousse antigo de minha biblioteca (48ª ed., 1890) o mot também não consta; mas aí encontramos fantaisie (do grego phantasia, imaginação) e também fantôme (do grego phantasma, aparição, espectro).

d. No dicionário Petit Robert 1consta o verbete Fantasme ou Phantasme, ademais de fantaisie e fantôme.

d.1. De fantaisie quero chamar a atenção para o fato de que seu sentido “moderno” aparece em 1636 com o seguinte significado: “Obra da imaginação, na qual a criação artística não está geralmente submetida às regras formais". - Tenhamos em conta que a preocupação de Lacan é, ao contrário, de formalizar!

d.2. De fantôme destaca-se o aspecto sobrenatural, estando presente também o sentido de “personagem ou coisa do passado, lembrança que freqüenta (hante) a memória”. – E o fantasme? Está sempre presente ou requer construção?

d.3. Em fantasme ou phantasme encontramos que, do mesmo modo que fantôme, deriva do grego phantasma, e mais, que no final do século XII aparece como “ilusão”, no séc. XIV na acepção de fantôme e, já em 1836, aparece, no campo da medicina, com o sentido de “alucinação”. Agora, pasmem! Em 1891 (no ano seguinte à edição de meu velho Larousse) aparece um sentido “moderno” do termo, o qual será propagado (répandu) no séc. XX pela psicanálise como “Toda produção da imaginação pela qual o eu (moi) busca escapar à influência (emprise) da realidade.” – Ao optar pela grafia de Fantasme, tanto em escritos (“Kant com Sade”[1963], v.g.) como em seminários anteriores, fica claro, no meu modo de entender, que sua opção é pelo sentido moderno, pelo qual – a César o que é de César – em muito é responsável. (Para o Petit Robert 1, preceder um verbete com a abreviatura “Mod.” [moderno] significa que as acepções anteriores foram abandonadas).

e. Não optar por phantasme – mais próximo – significa então, fundamentalmente, não se enquadrar ao sentido de “ilusão” (imaginário), ao fantasmagórico e alucinatório outro mundo (psicótico), conforme nos conta Plutarco do fantasma que assalta Bruto depois que este assassina Júlio César: o trânsfugo está entregue a sombrias reflexões quando lhe aparece um fantasma horrível, estabelecendo-se o seguinte diálogo: “Homem ou Deus, quem és tu?” – perguntou Bruto. “Sou o teu mau gênio!” – responde o fantasma. Na noite precedente à batalha de Felipes, o fantasma aparece outra vez... e não diz nada! No dia seguinte, na planície que deu nome à batalha, Bruto traspassava-se com sua espada.

f. Assim que, não havendo em português um termo que corresponda diretamente ao francês fantasme, proponho que se diga “fantasma”, por conservar a mesma origem grega (phantasma) e manter a alusiva obrigação imperativa. – A propósito, Freud também fala em fantasma em mais de um lugar em sua obra, tanto no sentido de fantôme como no de fantaisie. Mas é quando ele fala de fantasia das origens que o termo mais se aproxima do fantasme de Lacan.

Quero fazer ainda um agradecimento à Profª. Eliana Braga Diniz Costa Lessa Pesa,  que acompanhou comigo a leitura do texto em francês.
 L.-O.T.S.

 

 
 
16 de novembro de 1966
 

* 1 *


Vou lançar hoje alguns pontos os quais participarão antes de mais nada como promessa.

Lógica do fantasma. Assim intitulei este ano o que eu conto poder apresentar-lhes daquilo que se impõe no ponto em que estamos de um certo caminho. Caminho que implica, eu o recordarei hoje com força, esta espécie de retorno tão especial que nós vimos já o ano passado inscrito na estrutura e que está propriamente em tudo isto que descobre o pensamento freudiano fundamental. Este retorno se chama repetição.

Repetir não é reencontrar a mesma coisa. Como o articulamos a todo momento, contrariamente ao que se crê, isto não é forçosamente repetir indefinidamente. Voltaremos portanto a temas que eu já situei, de certo modo, há muito tempo.

É porque estamos no tempo deste retorno e de sua função que acreditei não poder tardar mais em livrar-lhes[1] disto que até aqui eu acreditara necessário como pontuação mínima deste trajeto, refiro-me a esse volume[2] que vocês têm agora ao seu alcance; esta relação ao escrito que, depois de tudo, de certa forma, eu me esforçava em retardar; é porque este ano será talvez possível aprofundar a função disso que eu acreditei dever franquear este passo. Para isto elegi alguns pontos de indicação que são em número de cinco:

1. Este item consistindo em recordar-lhes o ponto onde nós estamos concernente à articulação lógica do fantasma, o que será meu tema.

2. Recordação da relação desta estrutura do fantasma que lhes farei recordar: a estrutura como tal do significante.

3. Alguma coisa essencial e verdadeiramente fundamental que convém recordar fazendo referência este ano (se colocarmos em primeiro plano o que eu chamei a lógica) a uma observação essencial concernente ao universo do discurso.

4. Algumas indicações relativas a sua relação à escritura[3] como tal.

5. A recordação do que nos indica Freud, concernente ao que existe em relação do pensamento à linguagem e ao inconsciente.

Partiremos da escritura do que eu já formulei, a saber: a fórmula ($  a).

Eu recordo que o $ representa, tem lugar, nesta fórmula da qual ele retorna concernente à divisão do sujeito que se encontra no princípio de toda a descoberta freudiana e que consiste nisto: o sujeito é, por um lado, barrado por aquilo que propriamente o constitui enquanto função do inconsciente.

Esta fórmula, é algo que tenha um laço, uma conexão entre este sujeito assim constituído e algo do outro que se chama “a”?

O “a” é um objeto ao qual eu chamo a lógica do fantasma que consistirá em determinar o estatuto em uma relação que é, propriamente falando, uma relação lógica. Há uma coisa estranha sobre a qual vocês me permitirão não estender-me: eu quero dizer que o que sugere a relação à fantasia, à imaginação, é o termo fantasma, e eu me comprazia em marcar disso o contraste com o termo lógica com o qual eu entendo estruturá-lo. Trata-se sem dúvida de que o fantasma, tal como nós pretendemos instaurar-lhe o estatuto, não é tão radicalmente antinômico como se poderia pensar.

O termo “a” nos parecerá (melhor ainda à medida em que marcaremos o que permite caracterizá-lo como valor lógico) muito menos aparentado com o domínio do que é propriamente falando o imaginário. O imaginário se engancha aí, se acumula aí. O objeto a tem outro estatuto.

É de se esperar que os que me escutam este ano tenham ficado um pouco apreensivos com isto.

Este objeto a, para aqueles para quem ele é o centro de sua experiência, não é bastante familiar para ver sem medo que ele lhes seja tornado presente.

Que necessidade tem você, me perguntava um deles, de inventar este objeto a? Eu penso que por vir tomando as coisas desde muito tempo, porque sem este objeto a, do qual as incidências se fazem sentir largamente, me parece que o que se faz como análise da subjetividade da história contemporânea – esta história que nós já vivemos e que batizamos com o nome de totalitarismo – cada um que a tenha compreendido poderá dedicar-se a pôr aí a função de objeto.
 
 

O DESEJO E A REALIDADE

O S está em relação com a nesta fórmula ($  a) através do  (punção, signo), o qual indica o que se pode juntar e o que disso se pode isolar. O $ designa a divisão do sujeito, barrado daquilo que o constitui propriamente em função do inconsciente. O  designa uma dupla relação, onde o S pode ser > (maior que) e < (menor que) a, além de incluir () ou excluir () a, o que sugere, em um primeiro plano desta conjunção, a relação de inclusão que se traduz em termos de implicação, com a condição de que nós a façamos reversível e, como tal, que ela se articule na articulação lógica: Se e somente se.

Neste sentido, o punção sendo dividido pela barra vertical, o sujeito de relação de Se e de a.

Aqui nós paramos. Existe portanto um sujeito. Eis aqui o que logicamente estamos forçados a escrever do princípio de uma tal fórmula: o que se nos coloca é a divisão da existência de fato e da existência lógica.

A existência de fato nos leva ao existir de; ser ou não falado. Isto é, em geral, vivente; em geral porque isso não é de nenhuma maneira forçado. Eu o chamo o convidado de pedra porque não existe somente sobre a cena que Mozart anima[4], ele passeia entre nós todo o tempo.

A existência lógica é outra coisa, e como tal tem um outro estatuto. Há sujeito a partir do momento no qual nós fazemos lógica, quer dizer, a partir do momento no qual nós passamos a manejar significantes.

O que há nisto da existência de fato é saber que algo resulta do que há aí do sujeito ao nível dos seres que falam, é algo que, como toda existência de fato, necessita que seja estabelecida antes em uma certa articulação. Mas nada prova que esta articulação seja tomada de imediato em forma direta, que isto derive diretamente do fato de que há aí seres viventes ou outros que falam, que eles sejam portanto de um modo imediato determinados como sujeito. O se[5]  e o se somente[6]  estão aí para nos recordar.

As articulações pelas quais nós mesmos teremos que repassar, são elas mesmas assaz inabituais, motivo pelo qual creio dever indicar-lhes a linha geral de meu propósito nisto que me proponho a explicar para vocês.

O a resulta de uma operação de estrutura lógica, efetuada não in vivo, não sobre o próprio vivente, não, para sermos rigorosos, no sentido confuso que tem para nós o termo corpo, que não é necessariamente a libra de carne[7], ainda que isso possa sê-lo e, no final das contas, quando isso o é, isso não arranja as coisas assim tão mal. Mas enfim, constata-se que nesta entidade tão pouco apreendida do corpo há alguma coisa que se presta a esta operação de estrutura lógica que nos resta determinar. É o seio, o cíbalo, o olhar, a voz: estas peças destacáveis entretanto profundamente religadas ao corpo, eis aí de que se trata no objeto a. Para fazer as vezes do a, portanto, limitemo-nos, já que nos obrigaremos a certo rigor da lógica, a assinalar que é necessário estar pronto para fornecer-lhe o que for necessário. Isso pode nos bastar no momento, mas isso não resolve nada para o que devemos avançar. Para fazer o fantasma é preciso estar pronto para usá-lo.

Eu me permitirei articular aqui algumas teses sob as formas as mais provocantes uma vez que se trata também de destacar este domínio dos campos de captura que nos fazem voltar às ilusões mais fundamentais disto que nós chamamos a experiência psicológica e que o que vou avançar é precisamente o que fundará a consistência de tudo o que eu desenvolver este ano para vocês.

Desenvolver[8], eu já o disse, faz bastante tempo que está feito, quando no quarto ano de meu seminário eu tratei da relação de objeto concernente ao objeto a.

Tudo está dito quanto a estrutura da relação do a ao Outro; tudo está especial e suficientemente fisgado na indicação de que é do imaginário da mãe que vai depender a estrutura subjetiva da criança. O que aqui se trata de indicar, é em que esta relação se articula em termos propriamente lógicos, quer dizer, trata-se de sublinhar radicalmente a função do significante. Mas é de notar que para quem resumia então o que podia indicar neste sentido a menor falta concernente ao pertencimento de cada um dos termos destas três funções que podiam então ser designadas como objeto, no sentido de objeto de amor, e do além disto. Nosso atual objeto a, a saber a referência à imaginação do sujeito, podia obscurecer a relação que se tratasse de situar. Não situado no campo do Outro, a função do a, no estatuto do perverso é a função do falo; a teoria sádica do coito, não é nada disto, senão que é ao nível da mãe que isto funciona.

Quem é que usa o fantasma? Este que usa o fantasma tem dois nomes que concernem a uma só e mesma substância, se vocês querem este termo reduzido a esta função de superfície tal como eu a articulei no ano passado, esta superfície primordial que nos faz falta para fazer funcionar nossa articulação lógica, vocês já conhecem dela algumas formas. São superfícies fechadas. Participam da bolha mesmo que não sejam esféricas; nós a chamamos a bolha e nós veremos o que motiva, isto ao que se ligará a existência das bolhas no real.

Esta superfície que eu chamo bolha tem propriamente dois nomes: o desejo e a realidade.

É completamente inútil cansar-se tentando articular a realidade do desejo, porque primordialmente o desejo e a realidade estão em uma relação de textura sem corte; eles não tem portanto necessidade de costura, não tem necessidade de ser recosidos.

Não há mais realidade do desejo que não seja justo dizer o avesso do direito, há um só e mesmo estofo que tem ainda um avesso e um direito; este estofo está tecido de tal sorte que se passa sem se aperceber – pois que ele é sem corte e sem costura – de uma a outra de suas faces, e é por isso que eu emprego diante de vocês uma estrutura como essa do plano projetivo imajada[9]  na mitra ou o cross-cap. Que se passe de uma face à outra sem se aperceber, isto diz bem que não há senão uma, eu entendo que não há senão uma face, e isto não se deixa por menos como nas superfícies que eu acabo de evocar cuja forma parcelária está na cinta de Moebius, a qual tem um direito e um avesso.

Isto necessita ser posto de um modo originário. Para lembrar como se funda esta distinção do direito e do avesso enquanto que já aí antes de todo o corte, está claro que quem (como os animálculos empregados pelos matemáticos) aí nesta superfície estiver implicado, não verá senão uma gota desta distinção entre o direito e o avesso.

As superfícies que eu apresentei para vocês, desde o plano projetivo até a garrafa de Klein até o que podemos chamar de propriedades extrínsecas, as superfícies não são as propriedades da superfície, é em uma terceira dimensão que isso toma sua função, a saber no buraco que está no meio do toro; um ser puramente tórico, não creiam que ele mesmo se aperceba desta função a qual, contudo, não é sem conseqüências pois foi a partir dela – já faz seis anos[10] - que  eu tentei articular, para os que me escutavam então, as relações do sujeito ao Outro na neurose. É, com efeito, desta terceira dimensão do outro que se trata. É por relação ao outro, enquanto que há aí esta outridade[11], que se pode tratar de distinguir entre um direito e um avesso, isto não é ainda distinguir realidade e desejo. O que é direito ou avesso primitivamente no lugar do Outro, no discurso do Outro, que se joga no cara ou coroa, isto não concerne em nada ao sujeito pela simples razão de que ele ainda não tem.

O sujeito começa com o corte. Se nós tomamos dessas superfícies a mais exemplar, porque é a mais simples de manejar, a saber o cross-cap, plano projetivo, um corte, mas não importa qual, eu o lembro para aqueles para quem estas imagens tem alguma presença.

Nestes traços imaginários nos quais as paredes anteriores e posteriores se cruzam, se é assim que nós representamos a estrutura de que se trata, todo corte que franqueará esta linha imaginária instaura uma mudança total da superfície, a saber que toda esta superfície torna-se o que nós já aprendemos a destacar nesta superfície sob o nome de objeto a, a saber que toda inteira a superfície torna-se um disco aplanável com um direito e um avesso do qual se deve dizer que não se pode passar de um ao outro a não ser franqueando uma borda. Esta borda, é precisamente o que torna este franqueamento impassável[12], pelo menos é assim que nós podemos articular sua função in initio, a bolha por este primeiro corte, rico de implicações que não saltam aos olhos em seguida, por este corte torna-se um objeto a. Este objeto a mantém, porque esta relação tem desde a origem para que isto seja possível de ser explicado, uma relação fundamental com o Outro.

Com efeito, o sujeito em absoluto não apareceu ainda com o único corte por onde esta bolha que instaura o significante no real deixa cair de entrada este objeto estranho que é o objeto a.

É necessário e suficiente, na estrutura indicada, aperceber-se disto que está aí neste corte, para perceber também que ela tem a propriedade de se redobrar simplesmente, de se reencontrar.

Dito de outro modo: é a mesma coisa fazer um único corte ou fazer dois.

Pode-se considerar a hiância[13] do que há entre as duas voltas que não são senão uma, como o equivalente do primeiro corte. Mas se eu faço, no tecido do qual se trata de exercer este corte, um corte duplo, eu resgato, eu restituo o que foi percebido no primeiro corte, a saber, uma superfície cujo direito se continua no avesso. Eu restituo a não separação primitiva da realidade e do desejo.

Nós definiremos a realidade como sendo o que eu chamo sempre de o prêt à porter do fantasma, quer dizer o que está à sua disposição. Nós veremos então que a realidade, toda a realidade, não é outra coisa que a montagem do simbólico e do imaginário.

O desejo no centro deste aparato, deste quadro que nós chamamos realidade, é do mesmo modo, propriamente falando, o que cobre, como eu articulei, o que importa distinguir da realidade humana e que é, a bem dizer, o real que não é jamais senão entrevisto, entrevisto[14] como a máscara fácil que é a do fantasma, a saber a mesma coisa apreendida por Spinoza quando ele disse que o desejo é a essência do homem. Na verdade, esta palavra [homem] é um termo de transição impossível de conservar em um sistema ateológico, o que não é o caso de Spinoza; nesta fórmula spinoziana nós temos simplesmente que substituir isto que o desconhecimento levou a psicanálises às aberrações mais grosseiras, a saber: que o desejo é a essência da realidade.
 
 

O SUJEITO E A NEGAÇÃO

Mas esta relação ao Outro, sem a qual nada pode ser apercebido do jogo real desta relação, é o que eu me esforcei em desenhar para vocês recorrendo ao velho suporte dos círculos de Euler. Tomar a relação como fundamental, seguramente ela é insuficiente como representação, mas se nós a acompanhamos do que ela suporta em lógica, ela pode servir para fazer ressurgir a relação do sujeito ao a. Desenha-se como um primeiro círculo ao qual um outro círculo segue, recortando-o: o a é sua interseção.

É por aí que sempre nesta relação de um vel[15] originalmente estruturado, que é aquele onde eu me esforcei, já há três anos, em articular para vocês a alienação[16], que o sujeito não saberia se instituir senão como uma relação de falta neste a que é do Outro, salvo a querer se situar no Outro, salvo a não tê-lo, igualmente, a não ser amputado deste objeto a.

A relação do sujeito ao objeto a comporta o que a imagem de Euler toma como sentido quando ela é levada ao nível de simples representação das duas operações lógicas que se chamam reunião e interseção.
 

Reunião: a ligação do sujeito ao Outro []
Interseção: define o objeto a []


O conjunto desta operações lógicas são aquelas que eu coloquei como originárias, dizendo que o a é o resultado efetuado por operações lógicas que devem ser duas. O quê quer dizer isto?  Que é essencial na representação de uma falta, enquanto falta[17], que se institua a estrutura fundamental da bolha que nós de entrada chamamos: o estofo do desejo. Aqui, em um plano de relação imaginária, se instaura uma relação exatamente inversa daquela que liga o eu [moi] à imagem do Outro. O moi é duplamente ilusório: ilusório por ser submetido aos avatares da imagem, quer dizer também livrado à função de falso semblante. E também porque ele instaura uma ordem lógica, pervertida, da qual nós veremos na teoria psicanalítica a fórmula, entanto ela franqueia imprudentemente esta fronteira lógica que supõe que em um momento qualquer, que nós chamamos primordial, da estrutura, o que é rejeitado pode se chamar non-moi. É precisamente isso que nós constatamos: a ordem de que se trata implica sem que se o saiba, e ela não admite de modo nenhum uma tal complementaridade; é o que nos fará por em primeiro plano de nossa articulação a discussão da função da negação.

Cada um sabe que poderá encontrar nesta compilação colocada à vossa disposição o que eu articulei em um seminário em Ste. Anne: a secundariedade[18], a verneinung, escandida por Hippolite, ela está aí articulada de modo assaz preciso para que de agora em diante não possa ser admitido que ela sobreviria de entrada ao nível desta primeira cisão que nós chamamos prazer e desprazer.

Isto porque, nesta falta instaurada pela estrutura da bolha que constitui o estofo do sujeito,  não é de modo nenhum questão de nos limitarmos aos termos daqui em diante desusados pela confusão que implica em termos de negatividade.

O significante não é somente o que traz o que não está aí, o exemplo do Fort-Da – na medida em que representa a presença ou a ausência materna – não está ai a articulação exaustiva da entrada em jogo do significante. O que não está aí, o significante não o designa, o engendra; o que não está aí, na origem, é o próprio sujeito. Dito de outro modo: na origem não há Dasein senão no objeto a, quer dizer, é sob a forma alienada que permanece marcada até seu termo toda enuncia-ção concernente a Dasein.

É necessário lembrar que não há sujeito senão através de um significante frente a outro significante?

Como não há sujeito senão representado por um significante frente a outro significante, a Urverdrängung – o recalcamento originário – é justamente o que um significante representa para outro significante e isto não dá em nada, isto não constitui absolutamente nada: isto se acomoda muito bem a uma ausência absoluta de Dasein. Durante pelo menos dezesseis séculos os hieróglifos egípcios ficaram tão solitários como incompreendidos nas areias do deserto, e está claro – tem sempre que estar claro para todo mundo – que o que quer dizer é que cada um dos significantes gravados na pedra no mínimo representava um sujeito para outros significantes. Se isto não fosse assim, ninguém teria tomado isto por uma escrita. 

Não é de modo nenhum  necessário que uma escritura queira dizer algo para quem quer que seja, para que ela seja uma escritura e que como tal manifeste que cada significante representa um sujeito para aquele que o segue.

Se nós chamamos a isto Urverdrang, isto quer dizer que nos parece conforme à experiência pensar que o que acontece, a saber que um sujeito emerge, o sujeito barrado, como alguma coisa que vem de um lugar onde ele está supostamente inscrito para um outro lugar onde irá inscrever-se novamente, a saber, do mesmo modo em que eu estruturei em outra ocasião a função da metáfora na medida em que ela é o modelo em quanto ao retorno do reprimido.

É portanto a respeito deste significante primeiro do qual nós vamos tratar. O sujeito barrado [$] que ele abole, vem surgir em um lugar onde nós poderemos hoje dar uma fórmula que ainda não foi dada. O sujeito barrado como tal é o que representa para um significante este significante de onde surgiu um sentido, e eu entendo por sentido[19] exatamente isto que os fiz entender ao princípio de um ano sob a fórmula:

Colourless green seas slep furiously

Que se pode traduzir assim:

As idéias asperamente enegrecidas se adormecem com furor[20]

Falta saber que elas se dirigem todas a este significante da falta do sujeito que se torna um certo primeiro significante desde que o sujeito articula seu discurso, a saber, isto do qual os psicanalistas estão bastante bem apercebidos (ainda que eles não soubessem dizer nada que valha à pena) a saber o objeto a que a este nível substitui a função que Frègue distingue do signo sob o nome de Bedeutung[21].

O objeto a é a primeira Bedeutung, o primeiro referente, a primeira realidade, a Bedeutung que fica, porque ela é no final da contas o que resta do pensamento no fim de todos os discursos, a saber o que o poeta pode escrever sem saber o que diz. Quando ele se dirige à sua mãe inteligência para que a deixe correr, qual é esta negligência que deixa secar seu leite? A saber, um olhar apreendido, aquele que se transmite no nascimento da clínica, o mesmo que um de meus alunos recentemente no congresso da Universidade John Hopkins chamou a “vois”[22] no mito literário.

A saber, também o que fica de tanto pensamento gasto sob a forma de uma confusão pseudo-científica e que também se pode chamar por seu nome – eu o fiz há muito tempo concernindo à literatura analítica e que se chama – a merda, da confissão, por outro lado, dos autores. Eu quero dizer à propósito de toda uma pequena falha de raciocínio próximo, concernente à função do objeto a, que entre os que se possa articular não há nenhum suporte ao complexo de castração a não ser o que chamamos de objeto anal; o que não é aqui um detalhe de pura e simples apreciação, senão a necessidade de uma articulação da qual o enunciado por si só deve reter, já que, depois de tudo, ele não se formula noções qualificadas, uma vez que esse será este ano nosso método concernente à lógica do fantasma, mostrando na teoria analítica onde ela vem tropeçar.

Entenda-se  bem que esta falta é arrazoada, quer dizer razoável, não é obrigatória, e o objeto a em questão pode assim se mostrar, pode mostrar-se totalmente nu.

Isto é o que nós teremos ocasião de mostrar.

Eu quero, do mesmo modo, marcar o que impede que se admita certas interpretações que foram dadas da metáfora, da qual eu acabo de dar-lhes o exemplo menos ambíguo, com qualquer que seja que se faça uma espécie de relação [rapport] proporcional.

Quando eu escrevi que a substituição, que o fato de enxertar um significante substituindo a um outro significante sobre a cadeia significante, está na fonte, na origem de todas as significações, conforme ao que eu articulei hoje: o surgimento deste sujeito barrado como tal – eu lhes dei a fórmula – exige de nós a tarefa de dar-lhe um estatuto lógico. Para mostrar-lhes de imediato, porém, a urgência desta tarefa, observem que a confusão foi feita desta relação a quatro: o S’, o S, e o s do significado com suas relações de proporção que um dos meus ouvintes, autor da teoria da argumentação, promovendo uma retórica abandonada, articula a metáfora, vendo aí a função da analogia e que é da relação do significante a um outro, um terceiro o reproduz fazendo surgir um significado ideal que ele funda, a função da metáfora, ao que respondi a tempo: é de uma tal metáfora que pode surgir a fórmula que foi dada, a saber:

O outro registro, substantificando o inconsciente, seria constituído por esta relação estranha de um significante a um outro significante do qual, agregamos, a linguagem tomaria seu lastro.

Esta fórmula, dita da linguagem reduzida, eu acredito que vocês já sabem agora, repousa sobre um erro que é o de introduzir nesta relação a quatro a estrutura de uma proporcionalidade. Nós vemos mal o que pode sair disto pois que a relação  S / S  torna-se difícil de interpretar.

O inconsciente é estruturado como uma linguagem e isto deve ser tomado mais do que nunca ao pé da letra.

Já que se confirma que eu não completo os cinco pontos hoje, eu quero escandir o que é a chave de toda estrutura e o que deixa a empresa que foi encontrada assim, articulada, no início de uma pequena compilação concernente à relação de minha audiência no Congresso de Bonneval: é errôneo estruturar sobre um mito de linguagem reduzida qualquer dedução do inconsciente, pela seguinte razão: é da natureza de todo e qualquer significante não poder em nenhum caso significar-se a si mesmo.

A hora já está adiantada para que lhes imponha, às pressas, a escrita deste ponto inaugural de toda a teoria dos conjuntos, o qual implica que esta teoria não pode funcionar senão a partir de um axioma dito de especificação, a saber: que não há interesse em fazer funcionar um conjunto se existe um outro conjunto que possa ser definido pela definição de certos X no primeiro como satisfazendo livremente a uma certa proporção. “Livremente” quer dizer: independente de toda quantificação.

Acontece que eu começarei minha próxima lição justamente por estas fórmulas. Dado um conjunto qualquer, definindo aí a proporção que eu indiquei como aí especificante de X, supondo que X não seja membro de si mesmo, o que nos interessa é que ele se impõem desde que se quer introduzir o mito de uma linguagem reduzida, que há uma linguagem que não o é [reduzida], quer dizer, que constitui por exemplo o conjunto dos significantes, sendo que o próprio do conjunto dos significantes – eu lhes mostrarei em detalhe – comporta isto de necessário: há alguma coisa que não pertence a este conjunto. Se nós admitimos somente que o significante não saberia significar-se, não é possível reduzir a linguagem simplesmente. As respostas a isto são: que a linguagem não saberia constituir um conjunto fechado, dito de outro modo: não há universo do discurso, ou neste universo do discurso não há nada que contenha tudo.

As verdades que eu acabo de enunciar são simplesmente aquelas que apareceram de um modo confuso no período ingênuo da instauração da teoria dos conjuntos – o paradoxo de Russel, mais que um paradoxo é uma imagem: o catálogo dos catálogos que não se contém, ou então eles se contém a si mesmos e faltam à sua missão; isto não é de maneira nenhuma um paradoxo: tem-se declarado que ao fazer um tal catálogo, não se pode ir[23] até o fim, e com razão!

O que eu lhe anunciei: que no universo do discurso não há nada que contenha tudo, eis aqui o que nos incita a ser especialmente prudentes quanto ao mínimo do que se chama todo e parte, e exigir na origem que nós distingamos o um da totalidade a qual justamente eu acabo de refutar dizendo que ao nível do discurso não há universo, o que deixa ainda em suspenso distinguir este um do um contável, que de sua natureza se desvela e se desliza a ser um, a se repetir e tornar a fechar-se ele mesmo, instaurando a  falta da qual se trata quando se trata de instituir o sujeito.16 de novembro de 1966 

 

1.  Note-se o jogo entre entregar, fazer livrança e livro.
2.  A referência é ao alentado Écrits, cuja primeira edição é deste mesmo ano.
3.  O termo usado aqui é Écriture, possivelmente no sentido de modo, processo da escrita, de representação da palavra por signos.
4.  Referência à ópera Don Juan.
5.  Reflexivo.
6.  Condicional.
7.  Referência a O Mercador de Veneza, de Shakespeare.
8.  No texto francês aparece dérouler, cujo significado primeiro é o de “desenrolar”.
9.  O texto francês usa imagé, de imager, “carregar de imagens, de metáforas”, para o que não temos uma palavra específica na nossa língua; por isto pensei em “imajar”.
10.  Menção ao Seminário 8, A Transferência (inédito à época da primeira tradução do presente Seminário), especialmente ao do dia 4 de março de 1961.
11.  Neologismo que pretende corresponder a autreté de Lacan.
12.  Neologismo criado para traduzir o neologismo impassable utilizado por Lacan.
13.  Palavra construída a partir de “hiante”.
14.  Lacan parece utilizar a expressão entre aperçu que  corresponderia melhor a um “entreapercebido”.
15 . Lacan utiliza a conjunção  ou... ou... em latim.
16.  A referência é ao Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1963-64].
17.  O texto francês utiliza aqui a expressão en tant qu’il court.
18.  O texto francês usa secondarité; como o português não tem um termo correspondente, utilizei “secundariedade” cuja estrutura me parece legítima.
19.  Lacan diz que o sentido é sempre metafórico (Cf. Seminário 5, aula de 6 de novembro de 1957, inédito na ocasião de minha primeira tradução).
20.  Des idées vertement fuligineuses s’assoupissent avec fureur.
21.  Bedeutung: denotação, denotatum, referente.
22.  Forma imperativa do verbo “voir” [ver].
23.  No original consta pousser [crescer].