JACQUES LACAN 
 
LÓGICA DO FANTASMA 
1966 – 1967 
 
COLEÇÃO 
O SEMINÁRIO 
LIVRO 14 
 
 
Estabelecimento 
Isagoge e Notas 
de 
Luiz-Olyntho Telles da Silva 
 
Para uso interno do 
RECORTE DE PSICANÁLISE
 
 
18 de janeiro de 1967
* 7 *
 
          Alienação é o ponto pivô inicialmente neste sentido: que este termo transforma o uso que se fez dele até esse momento. É o ponto pivô graças ao que pode e deve ser mantido por nós o valor do que se pode chamar sob o ângulo do sujeito: a instauração freudiana, o passo freudiano, o passo decisivo do pensamento de Freud, e mais ainda, a práxis que se mantém de seu patronato sob o nome de psicanálise, têm uma vez levado à nossa consideração de decisão.
          Nós falaremos de um pensamento que não é o “Eu”. Tal é, em uma primeira abordagem superficial, a maneira como se apresenta o inconsciente. A fórmula é certamente insuficiente, ela tem o preço que ela coloca no pivô do que Freud produz pra nós de decisivo, este termo do “Eu”. Certamente, não é para tanto nos contentar com esta fórmula vaga, ainda que poética que, de outra maneira, não é extraída de seu contexto poético senão com um pouco de abuso, isto não é dizer tudo, senão avançar que o Eu não é um outro.
          É por isto que é necessário dar a ele uma articulação lógica, mais precisa: vocês sabem, a função do Outro, tal como eu a escrevo com A maiúscula, é a função determinante. Não é somente impossível de articular justamente a lógica do pensamento tal como a experiência freudiana a estabelece: é impossível igualmente de compreender o que quer que seja representado na tradição filosófica tal como ela chegou até nós, até Freud, é impossível de situar justamente o que representou este passo na colocação do centro da reflexão da função do sujeito como tal se nós não fazemos entrar no jogo esta função do Outro tal como eu quero defini-la quando eu a marco com este A maiúsculo, se nós lembramos que eu chamo o Outro, assim marcado, este que toma a função de ser o lugar da fala.
          O que isto quer dizer, nós nunca voltaremos aí o suficiente, ainda que eu acredite tê-lo já um pouco martelado.
          Freud, quando ele nos fala deste pensamento que não é Eu, ao nível, por exemplo, do que ele chama os pensamentos do sonho (Traumgedanken) parece nos dizer que estes pensamentos continuam singularmente independentes de toda a lógica. Ele sublinha primeiramente, uma vez que seu sistema não se embaraça pela contradição, mais de uma tração ainda é aí articulada. Aqueles que dizem em uma primeira abordagem que, a negação como tal não saberia ali se representar, uma vez que a articulação causal da subordinação, o condicionamento parece escapar o quê destes pensamentos, de aparência sem cadeia, não pode ser reencontrado senão pelas vias da mais livre associação.
          Existe ali algo que eu não me lembro senão por excesso (pour beaucoup), está ainda ali a idéia tal qual recebida, é isto de que se trata na ordem do inconsciente.
          De fato, falar do laço solto (dénoué) que representariam os pensamentos que nós retomamos ao nível do inconsciente os quais são mesmo os de um sujeito: dizer que estes pensamentos não seguem as leis lógicas não é senão uma primeira abordagem a qual supõe alguma coisa que é, antes de mais nada, uma antinomia com o real preconcebido ou, antes de mais nada, uma concepção anterior daquilo que devem ser as relações de todo o pensamento com o real. O real, pensamos nós, é o justo e a boa ordem de toda a eficácia do pensamento que deveria se impor a ele. Na verdade isto sai demasiadamente do pressuposto de uma lógica pedagógica que se funda sobre um esquema de adaptação para não justificar ao mesmo tempo o que Freud fala aos espíritos não formados de outro modo, e também por toda reflexão que se apóia naquilo que é diferente, do que tem de relações de um sujeito qualquer com o real. Ele, sujeito, não se estabelece senão por tudo que existe já neste real e se exercendo como tal; o poder da linguagem nos obriga a levar mais longe nossa interrogação.
          O passo que Freud nos faz dar, não é por certo menos surpreendente. Para dizer a verdade, toma o valor que funda esta surpresa que é conveniente seja a nossa ao escutá-la, nisto que nós articulamos mais precisamente no que renova as relações do pensamento ao ser.
          Seguramente, este tema que se tornou ordem do ia através dos discursos dos filósofos contemporâneos, Heidegger em primeiro lugar, mas quando o barulho que se faz em torno do que ele articula, estaria bem a força mais ingênua para traduzir o que ele chama, como esta não sei qual revocação que deveria nesta volta em que estamos, vir do próprio ser ao pensamento para que ele seja renovado, que ele rompa com aquilo que do fio que ele seguiu desde alguns 3000 anos, levou-o a não sei qual impasse no qual ele não se apanharia mais ele mesmo em sua essência e onde nós poderíamos interrogar como o fez Heidegger: “Quê quer dizer pensamento?” Não esperar a renovação do sentido desta palavra “pensamento” senão de não sei qual acidente trans-etafísico que voltaria a uma báscula total de tudo o que o pensamento traçou.
          Não está aí o sentido do teste de Heidegger. Para aqueles que aí parariam poder-se-ia evocar a humorística ou derrisória metáfora, aquela da menina que sabe nada mais do que se oferecer, do que se espichar sobre um leito a torto e mocho esperando que a iniciativa parta daquele ao qual ela pensa assim se oferecer; isto não é uma aventura tão rara em um tempo de civilização medíocre. Cada um sabe que o personagem que se encontra ali confrontado não é para tanto estimulado a intervir como seria conveniente. O pensamento, não é uma imagem da mesma ordem,m que eles consentem em se lembrar que não é sempre sem esforço que se faz a verdadeira conjugação. Está bem, com efeito, alguma coisa que tem a contribuir a este problema do ser é o que nos traz o caminho que Freud traçou.
          A junção, as conseqüências que isto traz ao pensamento, deste passo decisivo, deste passo cortado que é aquele que nós chamamos por uma convenção historicamente fundada: o passo cartesiano, a saber que o que limita a instauração do ser como tal à aquela do “Eu sou” do cogito, dito de outra maneira, o “Eu sou” que implica o puro fundamento do sujeito do “Eu penso” como tal, porquanto ele dá esta aparência, porque não é nada mais do que uma aparência, de ser transparente a ele mesmo, de ser o que nós podemos chamar: uma “Eu sou pensada” [a aparência].
          Permitam-me, com este neologismo, traduzir ou sustentar o que é caricaturalmente chamado de “consciência de si”, termo que articula mal e insuficientemente perto do uso que é permitido pela composição germânica. Mas também ao nível de Descartes e do cogito, trata-se de novo de uma “sou pensada”, este “Eu penso” está no momento no qual ele não suporta mais do que articular o “Eu penso”.
          É da continuação da conseqüência disto enquanto que é do desenvolvimento decisivo de que se trata. Eu quero dizer que é um pensamento determinado por este passo primeiro que se inscreve a descoberta de Freud.
          Eu falei do Outro. Está claro que ao nível do cogito cartesiano há uma retomada à carga do Outro, das conseqüências deste passo. Se do cogito ergo sum não implica o que Descartes escreve com todas as letras nas suas “regulas” onde se lê tão bem as condições que foram determinadas como pensamento, se o cogito não se completa em um “Sum, ergo Deus est”, o que seguramente torna as coisas bem mais fáceis, não é sustentável, e entretanto se não é sustentável como articulação, que eu entendo filosófica, não resta menos que o benefício é adquirido, que o desenvolvimento que reduz a esta estreita margem do ser pensante enquanto que ele pensa poder se fundar neste único pensamento como “Eu sou”. Resta que algo é adquirido cujas conseqüências se lêem muito rapidamente alhures em uma série de contradições, pois é mesmo o lugar de marcar, por exemplo, que o pretendido fundamento da simples intuição que remeteria a distinguir radicalmente a coisa extensa da coisa pensante, a primeira como sendo fundada de uma exterioridade uma a outra de suas partes, do fundamento partes extra-partes como característica da extensa é em um curto espaço aniquilada pela descoberta Newtoniana da qual não se sublinha o suficiente que a característica que ela dá à coisa extensa é precisamente que cada um destes pontos nenhuma massa não ignora nela o que se passa naquele mesmo instante em todos os outros pontos.
          Paradoxo evidente que deu aos contemporâneos, e mais especialmente aos cartesianos, muitos problemas em admiti-lo, uma reticência que não tem fim e onde se demonstra algo que para nós se completa certamente assim: que a coisa pensante se impõe a nós pela experiência freudiana, como sendo ela, esta coisa sempre apontada a uma facção indefectível, mas bem ao contrário como marcada caracterizada de ser despedaçada (morcelée), despedaçante, levar nela esta mesma marca que se desenvolve, se demonstra em todo o desenvolvimento da lógica moderna, a saber, que o que nós chamamos a máquina no seu funcionamento essencial é o que há de mais próximo de uma combinação de notação e que esta combinação de notação é, para nós, o fruto mais precioso, o mais indicativo do desenvolvimento do pensamento.
          Freud traz aqui sua contribuição para demonstrar o que resulta do funcionamento efetivo desta face do pensamento, quero dizer dessas relações que não têm nenhuma relação com o sujeito da demonstração matemática do qual nós vamos lembrar qual é a essência, mas com um sujeito que é aquele que Kant chamaria sujeito patológico, quer dizer, com o sujeito enquanto sujeito deste tipo de pensamento ele pode padecer.
          O sujeito sofre de pensamento enquanto, diz Freud, ele se recalca. O caráter despedaçado, despedaçando este pensamento recalcado é o que nos ensina a experiência de cada dia na psicanálise.
          É porque se trata de uma mitologia grosseira e desonesta que torna presente como fundo de nossa experiência eu não sei qual nostalgia de uma unidade primitiva, de uma pura e simples pulsação da satisfação, em uma relação (rapport) ao outro que é aqui o único que conta e que se imagina, que representamos como o outro de uma relação nutridora (nourricier), o passo seguinte, mais escandaloso ainda que o primeiro, se eu posso dizer, se torna necessariamente o que se passa, o que se articula na teoria psicanalítica moderna ao longo e ao largo, a confusão deste outro nutridor com o outro sexual.
          Não há verdadeiramente saúde do pensamento, não há preservação possível da verdade introduzida por Freud, do mesmo modo que a honestidade técnica que não deve se fundar sobre os cânones deste engodo grosseiro, deste abuso escandaloso representado por uma sorte de pedagogia ao avesso (a rebours), do qual o uso deliberado de uma captura por uma sorte de ilusão especialmente insustentável diante de qualquer pessoa que lance um olhar diretamente sobre o que é a experiência psicanalítica. Restabelecer o outro no estatuto único, que é aquele do lugar da fala, é o ponto de partida necessário onde cada coisa, na nossa experiência analítica, pode retomar o seu justo lugar.
          Definir o Outro como lugar da fala, significa dizer que não há nenhum outro que o lugar onde a asserção se coloca como verídica. Significa ao mesmo tempo que não há nenhuma outra espécie de existência. Mas como dizê-lo é ainda apelar a ele para situar esta verdade, é fazê-la ressurgir cada vez que eu falo. É porque, este dizer, que não há nenhuma espécie de existência, eu não posso dizer mas eu posso escrever, é porque eu escrevo S, significante do   como constituindo um dos pontos nodais desta rede ao redor da qual se articula toda a dialética do desejo em tanto que ela se cava no intervalo entre o enunciado e a enunciação.
          Não há nenhuma insuficiência, nenhuma redução a não sei qual gesto gratuito neste fato afirmado de que a escrita S, significante do  , S(  ), joga aqui para nosso pensamento um papel essencial de pivô, pois não há nenhum outro fundamento pra isto que chamamos verdade matemática, senão que o recurso ao Outro, na medida em que aqueles a quem eu falo são instados a aí se referir, eu escuto em quanto que grande Outro, para ver a´se inscrever os signos de nossas convenções iniciais quanto a isto que manipulo na matemática e que é exatamente o que o Sr. Bertrand Russel, especialista no assunto, chegará a ousar designar nestes termos: que nós não sabemos do que falamos, nem se isto que dizemos tem a menor verdade. Com efeito, por quê não?
          Simplesmente, o recurso ao Outro em quanto que em um certo campo correspondente a um uso limitado de certo signos, é incontestável que, tendo falado, eu posso escrever e manter o que eu disse.
          Se eu posso, a cada tempo do raciocínio matemático, fazer este movimento de vai e vem entre o que eu articulo através de meu discurso e o que eu aí inscrevo como sendo estabelecido, não há nenhuma progressão possível disto que se chama verdade matemática e está aí toda a essência disto que chamamos, em matemática, demonstração.
          É precisamente da mesma ordem disto que estamos tratando; o recurso ao Outro é absolutamente determinante em todos os efeitos do pensamento. O “Eu sou” do “Eu penso” cartesiano, não apenas não o evita, mas se funda aí antes mesmo que ele seja forçado, este Outro, a colocá-lo em um nível de essência divina. Nada mais que para obter do interlocutor a continuação, o “logo Eu sou”, este Outro diretamente chamado, é a ele, é à referência a este lugar da Fala que Descartes se remete para um discurso que pede o consentimento para fazer o que eu estou em vias de fazzer diante de vocês, pôr-me a duvidar, vocês não dirão que “Eu sou”, o argumento é ontológico desde esta etapa, se não há o aspecto cortante do argumento de Santo Anselmo, se ele é mais sóbrio, ele não é, desde logo, sem comportar as conseqüências, estas às quais chegaremos agora e que são as que resultam de dever escrever por um significante que este Outro não é outra coisa.
          Santo Anselmo, eu lhes havia pedido que durante estas férias se reportassem a um determinado capítulo para que a coisa não ficasse no ar; eu lhes lembrarei de que ordem é este famoso argumento que é injustamente depreciado e que é bem apropriado para por em todo o seu relevo a função deste Outro. O argumento não leva senão a isto: a essência mais perfeita implicaria na existência (capítulo II de Fides quarens intellectum); articula o argumento disto que ele chama o insensato. 
          O insensato, dizem as Escrituras, diz em seu coração que não há Deus.O argumento consiste em dizer: insensato, tudo depende do que vós chamais Deus(86). Como está claro que vós chamais Deus ao ser mais perfeito, vós não sabeis o que dizeis, pois, diz Santo Anselmo, bem sei eu, Santo Anselmo, que não basta que a idéia do ser mais perfeito exista como idéia para que este ser exista, mas se vós considerais que estais no direito de ter esta idéia de que este ser não existe, a que se parecerá se por acaso ele existe? Pois vós demonstrais então que formando uma idéia do ser mais perfeito vós formais uma idéia inadequada pois que ela está separada disto: que este ser pode existir e que como existente ele é mais perfeito que a idéia que não implica a existência.
          É uma demonstração da impotência do pensamento, naquele que o articula, através de um certo viés crítico concernente à própria inoperância do pensamento. É demonstrar para ele que articulando algo sobre o pensamento, ele mesmo não sabe o que diz. Porque o que há para rever está alhures, ao nível do estatuto deste ser onde eu não posso fazer outra coisa que me estabelecer, a cada vez que algo se articula que é o campo da fala.
          Este Outro, ninguém aí o crê. Em nossa época, dos mais devotos aos mais libertinos, se é que este termo tenha ainda um sentido, todo o mundo é ateu!
          Filosoficamente, tudo é [tão] insustentável que se fundaria [mesmo] sobre uma forma de existência qualquer deste Outro. É porque tudo se reduz, na pauta do “Eu sou” que segue o “Eu penso”, a isso: que este “eu penso” faz sentido, porém exatamente do mesmo modo que não importa qual non sens faz sentido, tudo isso que vocês articulam com esta única condição - eu já lhes ensinei - de que seja mantida uma certa forma gramatical. Eu tenho necessidade de voltar sobre os green colorless... Tudo o que tem uma simples forma gramatical faz sentido, isto não quer dizer nada mais do que à partir daí não se pode ir mais longe; dito de outro modo: a estrita consideração da pauta lógica que comporta toda operação de linguagem se afirma nisto que é o efeito fundamental e certo disto que se chama alienação e que não quer dizer de modo nenhum que nós nos remetemos ao Outro, mas, ao contrário, que nós nos apercebemos da caducidade de tudo o que se refere ao recurso ao Outro do qual não pode subsistir senão o que funda o curso da demonstração matemática, o raciocínio por recorrência, e que nós podemos demonstrar que se qualquer coisa que seja verdade para “N” será também para “N-1”, e basta que nós saibamos que é verdade para “N-1” para poder afirmar que a mesma coisa é verdadeira para toda a série dos números inteiros, e depois, se eles não comportam nenhuma outra conseqüência da natureza de uma verdade que é a que eu já destaquei da apreciação de B. Russel, para nós, nós devemos colocar pois algo vem nos revelar a verdade que se esconde atrás desta conseqüência. Nós não temos de modo nenhum lugar para recuar diante disto que é essencial: que o estatuto do pensamento, enquanto que aí se realiza a alienação como caída do outro, é composto disto: que neste campo em branco, no alto à esquerda, que corresponde ao estatuto do Je que é o do Eu tal como ele se articula com um “Eu não penso”. Por meio do que o que o completa e que eu designo pelo S e que articulei na última vez como sendo complemento.
          Leiam o Sr. Wittgenstein.
          Não creiam que porque toda uma escola que se chama lógico positivista nos enche os ouvidos com uma série de considerações antifilosóficas das mais insípidas e das mais medíocres o passo do Sr. Wittgenstein não seja nada.
          Esta tentativa de articular isto que resulta de uma consideração lógica tal como possa acontecer na existência do sujeito, vale a pena ser seguida em todos os seus detalhes e eu lhes recomendo a leitura.
          Para nós, freudianos, ao contrário do que esta gramática da linguagem representa, é a mesma coisa que faz Freud quando quer articular a pulsão, ele não pode fazer outra coisa senão passar pela estrutura gramatical que ela só lhe dá seu campo completo e ordenado ao que de fato quando Freud a partir da pulsão vem a dominar, quero dizer, a constituir os dois únicos exemplos funcionais de pulsão, a saber a pulsão escopofílica e a pulsão sadomasoquista. Não é senão em um mundo de linguagem onde pode tomar sua função dominante (o “Eu quero ver” deixando aberto saber de onde e porque sou olhado). Não é senão em um mundo de linguagem, como eu disse da última vez, para lhes apontar apenas uma passagem, que “uma criança é batida” tenha seu valor de pivô. Não é senão em um mundo de linguagem que o sujeito da ação vai originar a questão que o suporta, a saber, para quem ele se agita?
          Sem dúvida ninguém, ninguém pode dizer nada sobre estas estruturas. Nossa experiência, contudo, nos afirma que são elas que dominam e não o que roda em não sabemos qual corredor da assembléia analítica, a saber: uma pulsão genital, que qualquer um será incapaz de defini-la como tal, mas que são elas que dão sua lei à função do desejo.
          Mas isto não pode ser dito a não ser repetindo as articulações gramaticais onde elas se constituem, quer dizer exibindo nas frases que as fundam, o que poderá ser deduzido dos diversos modos que o sujeito teria de ai se alojar(87). Nada pode ser dito disto, senão o que nós entendemos de fato, a saber: o sujeito em sua queixa, na medida em que ele aí não se encontra, o desejo que ele funda para ele, tem o valor ambíguo de ser um desejo que ele não assume, mas que ele quer apesar dele mesmo; é para voltar sobre este ponto é que nós articulamos tudo isto diante de vocês, e está bem assim, porque ousamos dizer que é preciso examinar de onde este discurso pôde partir.
          Ele pôde partir disto: há um ponto da experiência de onde nós podemos ver o que há de verdade nisto que eu chamarei obscurecimento, estrangulamento, impasse da situação subjetiva, sob esta incidência estranha cuja mola última está em fundar o estatuto da linguagem.
          Está no nível onde o pensamento existe como este não “Eu” que pensa, este pensamento tal como está aí suportado por esta pequena naveta embaixo do esquema que porta o I, este pensamento que tem o estatuto do pensamento do inconsciente implica isto: ele não pode dizer, e está aí o estatuto que lhe é próprio, nem “logo Eu sou” nem mesmo o “logo Eu não sou” que assim o completa e é seu estatuto virtual ao nível do outro, pois é aí que este outro é, somente aí que ele mantém sua instância, é aí onde o “Eu” como tal não vem se inscrever efetivamente a não ser como um “Eu não sou” que é suportado pelo fato de que ele se suporta enquanto dispõe de outros que ele tem para constituir um sonho. Pois o sonho, nos diz Freud, é essencialmente egoísta; no que o sonho nos apresenta, nós temos a reconhecer a instância do Ich sob uma máscara, mas também que é na medida em que ele não se articula aí como Ich, que ele aí se mascara, que ele aí está presente. É porque o lugar em todos os pensamentos do sonho está marcado em sua parte direita (cf. esquema) por esta área branca onde se designa que o Ich como tal nos é indicado em cada um dos pensamentos do sonho para reencontrar isto que vai constituir o que Freud chama de Traum inhalt, quer dizer, o conjunto dos significantes dos quais o sonho está constituído pelos diversos mecanismos que são os do inconsciente: condensação, deslocamento. Se o Ich está aí presente em todos, é nisto que ele está no todo, quer dizer que ele está aí absolutamente dispersado.
          O quê isto quer dizer? Qual é o estatuto que resta aos pensamentos que constituem este inconsciente, se não for o que nos diz Freud? Trata-se dos signos por onde cada uma das coisas, no sentido em que eu disse na última vez, coisas de reencontro, agindo umas em relação às outras, esta função de reenvio que nos faz, na operação analítica, perder um tempo em sua fusão, como em um mundo desordenado(88)
          Qual será a operação realizada por Freud, particularmente nesta parte da Traumdeutung que se chama “o trabalho do sonho”? O que ele articula no início deste capítulo, da forma mais clara, com todas as letras, ainda que me digam as pessoas que me lêem nestes tempos pela primeira vez e que se espantam, depois de tantos anos que eu articulo que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a Traum inhalt, o conteúdo do sonho, é dado todo ele como em uma escritura feita de imagens, o que designa os hieróglifos cujos signos estão somente na língua dos pensamentos do sonho, e tudo o que segue sobre a comparação com um rébus, sobre o fato de que não se compreende um rébus a não ser lendo-o e articulando-o; a não ser assim, é absurdo ver uma imagem, nos diz ele, composta de uma casa sobre a qual há um navio, ou de uma pessoa correndo com uma vírgula no lugar de sua cabeça! Tudo isto não tem sentido a não ser em uma língua, e depois de haver dito que o mundo dos pensamentos do sonho é de natureza ilógica eu vos peço que se reportem ao texto de Freud, não simplesmente para que possam testemunhar o que está patente e grosseiramente ilustrado a cada página, a saber, que não fala jamais de linguagem senão para ver que o que ele articula são todas as maneiras que há neste mundo das coisas; mas o quê é que isto quer dizer? Isto quer dizer as bedeutung[en], disto a que isso se relaciona, este sentido de rébus. Isto a que isso se relaciona, quer dizer, as imagens que o constituem, o que é que Freud faz senão nos mostrar como de certo modo justamente alterando estas imagens podemos designar o índice graças ao qual na sua seqüência nós reencontraremos todas as funções gramaticais, de início eliminadas, e para mostrar como se exprime a relação de uma subordinada a uma principal – leiam este capítulo enorme da Traumdeutung(89) - como uma relação fechada pode se exprimir. Como, do mesmo modo, faz sua entrada a forma da Traum inhalt, vocês aí encontrarão muito precisamente coisas cujo parentesco com os destaques que eu lhes fiz, liberados aqui lhes parecerão evidentes como a função do ou bem ou bem, que serve diz ele para se exprimir, porque nós não podemos fazer de outro modo e olhando de perto vocês encontrarão aí o que eu lhes disse, o ou bem ou bem, suspendido entre duas negações. Vocês têm justamente o mesmo valor que na negação desta conjunção. Estes expedientes lhes parecerão mais adiante nos resultados que lhes apresenta Freud, mas Freud lhes diz suficientemente para lhes incitar a ir na mesma via, quer dizer que quando vocês pegam o sonho Secerno, ou o sonho onde é preciso fechar ou bem um olho, ou bem os dois olhos(90), vocês se apercebem o que isso significa: isso significa que não se pode tem ao mesmo tempo um olho aberto ou dois olhos abertos, não é a mesma coisa.
          A legitimidade da lógica do fantasma é isto para que todo o capítulo de Freud nos prepara, uma lógica destes pensamentos, a saber isto que quer dizer que ela exige, que ela se suporta do lugar do Outro que não pode precisamente aqui se articular senão de um “logo Eu não sou”.
 

          Eis-nos aqui, assim, suspensos ao nível desta função, “tu não és, logo eu não sou”. Isto não titila suas orelhas de certo modo? O quê significa? É preciso impelir o sentido mais longe para que dê sua verdade: “tu não és senão o que Eu sou”. Cada um sabe e pode reconhecer que se o sentido do Eros é mesmo dado nesta fórmula, o amor, do mesmo modo em sua emoção, em seu elã ingênuo, como em muitos de seus discursos, não se recomenda como função do pensamento. Eu quero dizer que se de uma fórmula como esta “tu não és, logo eu não sou” sai o monstro cujos efeitos nós conhecemos tão bem na vida de cada dia, isto quer dizer que esta verdade, a do “tu não és, logo eu não sou”, é no amor rejeitada. As manifestações do amor no real é a característica que eu enuncio de toda Verwerfung, a saber, os efeitos mais incomodos e mais deprimentes; há uma ilustração a mais, as leis do amor não estão designadas em nenhuma parte como facilmente traçadas.
          Na época de Descartes, estas leis não eram ignoradas por ninguém; nós estamos na época de Angelus Silesius que ousava dizer a Deus: “Se eu não estivesse aí, tu, Deus, enquanto Deus existente, tu também não estarias aí”. Nesta época, nós podemos falar do problema da nossa. Nós podemos recolocar aí isto que nos faz impasse.
          Que Freud, nos diz ele, tenha levado mais longe o problema de sua lógica, se vocês tivessem ficado ainda com a menor dúvida concernente a natureza desta subversão que faz da Bedeutung, enquanto que nós a pegamos no momento de sua alteração, de sua torção, de sua amputação, de sua ablação, a força que pode nos permitir a aí reconhecer a função restabelecida da lógica. Se vocês tivessem ainda a menor dúvida, vocês veriam estas dúvidas se esvanecerem e ver como Freud em seu sonho reintegra o que aí aparece como juizo. Se estes juizos são internos ao vivido deste sonho, mais ainda eles se apresentam como aparência de juizo ao despertar.
          Quando, nos diz ele a propósito do sonho, algo na narrativa do sonhador é indicado como um momento de flutuação, de interrupção, uma lacuna como outrora eu dizia no tempo em que tinha lacunas: luncen(91), uma ruptura na narrativa que eu, sonhador, posso lhes dar, ela deve se restabelecida, nos diz Freud, como fazendo parte do texto do sonho.
          O quê é que isto designa? Para mim bastará lembrar-lhes de algum dos exemplos que Freud nos dá. Um dos seus sonhadores diz: eu jantava com a Senhora K. no restaurante do Volksgarten, aí está a passagem onde não tenho nada a dizer - ele não sabe mais e isso prende. Agora, eu me encontro em um salão de um bordel no qual eu vejo duas... três mulheres, uma de saia [de baixo], a outra de calcinhas.
          A Senhora K. é a filha de seu patrão anterior. O que é característico é a circunstância onde ele teve que lhe falar, que ele designa nestes termos: agente se reconhecia em uma sorte de igualdade, em sua qualificação de sexo, como se quisesse dizer: eu sou um homem e tu uma mulher; eis aí porque eu escolhi a Sra. K. para constituir a entrada do sonho, do mesmo modo, sem dúvida, que para determinar sua síncope, pois o que se seguirá no sonho demonstra ser mui precisamente o que vem perturbar esta bela relação plena de certezas entre o homem e a mulher. Assim, as três pessoas ligadas por ele à lembrança deste restaurante e que representam também as que ele encontra no salão do bordel, são, respectivamente, sua irmã, a irmão de seu cunhado e uma amiga dela, ou dele, tanto faz, em todo caso, três mulheres com as quais não se pode dizer que suas relações sejam marcadas por uma abordagem sexual franca e direta.
          O que Freud nos demonstra como sendo correlativo desta síncope do Traum inhalt, da carência dos significantes, é, desde que seja abordado por qualquer modo, na linguagem, não simplesmente na ilusão de se olhar os olhos nos olhos, o que colocaria em causa a relações do sexo como tal.
          O sentido lógico, original, da castração, na medida em que a análise descobriu sua dimensão, repousa nisto: que ao nível das Bedeutung[en] das significações, a linguagem, na medida em que é ela que estrutura o sujeito como tal, matematicamente, faz defeito; quer dizer, reduz o que há de relação (rapport) entre os sexos a isto que nós designamos como podemos, a este algo que a linguagem reduz a polaridade sexual, a saber: ter ou não ter a conotação fálica, é o que representa somente o efeito da análise.
          Nenhuma abordagem da castração como tal é possível por um sujeito humano senão em uma renovação em um outro estágio separado por toda a altura do retângulo desenhado, desta função que eu chamei alienação, a saber, onde intervém como tal a função do Outro entanto nós devemos marcá-lo como barrado.
          É à medida que a análise, por seu trabalho, vem inverter esta relação que faz de tudo o que era da ordem do estatuto do sujeito, em seu “Eu não sou”, um campo vazio, sujeito não identificável, à medida em que este campo aí vai se encher (no canto do esquema, à esquerda) vai aparecer o -e(92) do fracasso da articulação da Bedeutung sexual, Gespräch título da conferência que pronunciei em alemão sobre a significação do falo. É à partir daí que deve ser colocada a questão a respeito do quê é que distancia estas duas operações igualmente alienantes, a da alienação pura e simples, lógica, daquela da releitura da mesma necessidade alienante na Bedeutung dos pensamentos inconscientes.
          Toda distância entre uma e outra destas operações (cf. o esquema) que consiste em seu campo de partida, no qual um é aquele reconstruído a partir do qual eu designo o fundamento de toda operação lógica, a saber, a escolha oferecida do “ou Eu não penso, ou Eu não sou” como sendo o sentido verídico do cogito cartesiano. Aquele remata em um “Eu não penso” e no fundamento de tudo o que do sujeito humano faz um sujeito submetido especialmente às duas pulsões que tenho designado como escopofilia e sadomasoquismo, qualquer outra coisa que tenha relação à sexualidade se manifesta à partir dos pensamentos  do inconsciente, é o sentido da descoberta de Freud, mas também pelo que se designa a radical inadequação do pensamento à realidade do sexo.
          A questão não está em franquear o que há de impensável, e de saudável, pois está aí todo o nervo disto porque Freud mantinha de maneira tão essencial a teoria sexual da libido. É preciso ler, sob a pena xamanista de Jung, seu estupor, sua indignação ao recolher da boca de Freud algo que lhe parece constituir eu não sei qual ponto de partida anticientífico, quando Freud diz: “Sobretudo vós, Jung, não esqueça, é preciso manter aí esta teoria”. Mas por quê? “Para impedir – diz Freud – o mal de lama do ocultismo”, sabendo muito bem tudo o que importa o fato de não ter tocado este limite precisamente designado, porque ele constitui, sem dúvida, a essência da linguagem no fato de que a linguagem não domina este fundamento do sexo entanto ele é talvez mais profundamente ligado à essência da morte, não domina o que diz respeito à realidade sexual. Tal é o ensinamento de sobriedade que nos dá Freud.
          Mas então, por quê há aí duas vias, dois acessos? Trata-se, sem dúvida, de que há aí algo que merece um nome na operação da qual falamos, esta que faz passar do nível do pensamento inconsciente a este estatuto lógico teórico, inversamente este que nos faz passar a este estatuto do sujeito, entenda-se sujeito de uma ciência escopofílica do masoquista, o estatuto do sujeito analisado, portanto, pois para ele tem sentido a função da castração.
          Isto que nós chamaremos operação verdade, porque como a verdade ela mesma, ela se realiza onde ela quer, quando ela fala, isto que tem sido ligado à descoberta, à irrupção do inconsciente, ao retorno do recalcado, isto nos permite conceber porque nós podemos encontrar a instância da castração no objeto nodal, o objeto “core”, no objeto ao redor do qual gira o estatuto do sujeito gramatical, talvez designado e traduzido a partir deste ponto obtido que faz que a linguagem seja por seu próprio estatuto, temática, se posso assim dizer, à realidade sexual. Isto não é outra coisa que o lugar de operação ao redor do qual nós poderemos definir, em seu estatuto lógico, a função do objeto “a”.
 

Notas:

86.  A referência de Lacan, aqui, é ao cap. II do Proslógio, que na Coleção Os Pensadores (São Paulo, Nova Cultural, 1988), aparece com a tradução de “Que Deus existe verdadeiramente”. O insensato aparece aí traduzido como “o insipiente”.
87.  O texto em francês diz aqui “s’y loger” com o qual, noutro momento, Lacan faz um jogo de palavras com lógica.
88.  O texto francês utiliza aqui a expressão “inordonné”, não registrada pelo Petit Robert.
89.  Referência ao capítulo VI, “O trabalho dos sonhos”.
90.  Ambos os sonhos estão relatados em seqüência nas páginas 337-8 do Vol. IV da Ed. Std. Brás. das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1972.
91.  Neologismo intraduzível, este que aparece na versão francesa. A tradução da Escola Freudiana da Argentina coloca aqui, entre parêntese, “Lücke”, que em alemão também pode ser traduzido por lacuna.
92.  A versão da Escola Freudiana da Argentina registra aqui o signo –j.