23 de novembro de 1966
INTRODUÇÃO
Eu gostaria hoje de tentar avançar para o uso de
vocês algumas relações essenciais e fundamentais para
assegurar de início o que neste ano trataremos à respeito
de nosso tema, à respeito de nosso sujet[24].
Espero que ninguém fará aí objeção
da abstração pela única razão de que esse seria
um termo impróprio como vocês verão. Nada mais concreto
do que isto que vou avançar, mesmo que este termo não corresponda
à qualidade de espessor no qual a conotação é
muito maior.
Trata-se de tornar-lhes possível tal proposição
como aquela que até aqui eu não tenho avançado mais
que sob a aparência de uma sorte de aforismo que teria desempenhado
uma torção em nosso discurso, refiro-me ao axioma: não
há metalinguagem. Fórmula que tem o aspecto de ir contra
ao que é dado, senão na experiência, pelo menos nos
escritos daqueles que tratam de fundar a função da linguagem.
Senão em todos, pelo menos muitos casos mostram
na linguagem algumas diferenciações as quais se encontram
a partir de uma linguagem-objeto, e edificando sobre esta base um certo
número de diferenciações, o ato desta operação
parece implicar que para falar da linguagem se usa algo que não
está aí e que a envolveria de uma outra ordem disso que a
faz funcionar.
Creio que a solução destas contradições
aparentes que se manifestam no discurso, no que se diz, está em
encontrar em uma função que me parece essencial deslindar
ao menos pelo viés que tratarei de inaugurar hoje, de deslindar
especialmente para nosso propósito, pois que a lógica do
fantasma me parece que não saberia articular-se sem a referência
a isto do que se trata, a saber: “a escritura”; não é seguro,
portanto, dizer que se trata disto que vocês conhecem sob as anotações
ordinárias desta palavra, mas se eu a escolho é antes porque
deve haver alguma relação com o que nós iremos enunciar.
Um ponto preciso sobre o qual nós nos debruçaremos
hoje, sem cessar, é este: não é a mesma coisa depois
que nós tenhamos dito algo do escrever, ou mesmo depois de escrever
o que se disse.
Pois a segundo operação essencial à
função da escritura, precisamente sob o ângulo, sob
o viés por onde eu quero hoje mostrar-lhes a importância para
o que segundo nossas referências é o mais próprio ao
sujet
deste ano, e isto desde logo se apresenta com conseqüências
paradoxais.
Depois de tudo, por que não, para lhes despertar,
por que não voltar a partir do que eu já, através
de um viés, lhes apresentei sem que se possa dizer, eu me repito,
que é bem da natureza das coisas de que se tratam aqui, que elas
apareçam[25] sob algum viés, algum espinho que perfura a
superfície sobre a qual, pelo próprio fato de falar, somos
forçados a nos manter?
1 2 3 4
o menor número inteiro
que não está inscrito
no quadro |
Isto poderia ter sido escrito de modo diferente. Eu poderia,
sem escrevê-lo, perguntar-lhes, ou mesmo fazer um pequeno trejeito
com a boca do qual sairia isto que nas tiras desenhadas se chama uma bolha,
o menor número inteiro que não está inscrito no quadro.
é o número 5
Está claro que a partir do momento onde esta frase
se inscreve, o número 5 aí estando de fato inscrito (aí
está excluído), vocês não teriam senão
que procurar se esse não seria o número 6.
Este paradoxo não é portanto inútil
para introduzir a escritura por este viés por onde algum enigma
pode se lhes apresentar. Trata-se de um enigma, para falar propriamente,
de um enigma lógico, e esta não é a pior maneira de
lhes mostrar que há alguma relação estreita entre
o aparelho da escritura e o que se pode chamar a lógica. Isto merece
ser lembrado no momento em que a maior parte daqueles que estão
aqui teriam disto [da lógica] uma noção suficiente
(mesmo para aqueles que não tivessem nenhuma; isto poderia servir
de enganche para lembrar que se há algo que caracteriza os não
novos, novos no sentido de que estão longe, de qualquer maneira)
de poder se conter e se reabsorver nesta lógica clássica
e tradicional; estes não novos estão inteiramente ligados
aos jogos de escrita.
Coloquemos então uma questão: desde o tempo
que eu falo da função da linguagem, desde que, para articular
isto que há aí do sujeito, do inconsciente, eu construí,
foi preciso que eu o fizesse passo a passo e diante de uma audiência
que se fazia, a meu entender, puxar pelas orelhas, que eu construí
o grafo que foi feito para ordenar precisamente o que na função
da palavra é definido por este campo que necessita a estrutura da
linguagem e o que se chama as vias do discurso ou os desfiladeiros do significante.
Em algum lugar neste grafo está escrita a letra
A, à direita, sobre a linha inferior. Este A, em um sentido que
podemos identificar ao lugar do Outro [Autre], é o lugar
onde se produz tudo o que se pode enunciar, quer dizer: isto que eu chamei
de o tesouro do significante. E isto não se limita, em princípio,
à palavra do dicionário, pois correlativamente à construção
desse grafo comecei a falar da palavra espirituosa[26], tomando as coisas
por este viés indispensável para evitar toda confusão,
o traço “nonsensical”, “nonsense”[27], que há
na palavra espirituosa.
Para entender a dimensão que se trata de deslindar,
lhes mostrei o parentesco ao menos ao nível da recepção
timpanal, o parentesco que tem com o que foi, para nós, em um tempo
de prova, a mensagem pessoal, quer dizer: todo enunciado enquanto que ele
se recorta não-sensicalmente[28]. Eu fiz alusão disso na
última vez.
O conjunto dos enunciados também faz parte deste
universo do discurso que está situado no A. A questão
que se coloca e que é propriamente uma questão de estrutura,
é a que da sentido a isto: o inconsciente está estruturado
como uma linguagem. Isto é um pleonasmo em minha enunciação,
uma vez que eu identifico estrutura a esta linguagem comum na estrutura
que eu vou tratar de fazer funcionar diante de vocês.
Trata-se deste universo do discurso na medida em que ele
implica este jogo do significante, entanto que ele define estas duas dimensões
da metáfora pela qual a cadeia pode sempre não se incluir
mais que em uma outra cadeia pela via de uma operação de
substituição, entanto que por essência ela significa
que este deslizamento diz que nenhum significante pertence propriamente
a nenhuma significação.
Lembrar esta dependência do universo do discurso
que permite um mar de variações disso que constitui as significações,
esta ordem essencialmente movediça e transitória onde nada,
como eu disse em seu momento, assegurava senão a função
que eu chamei, sob uma forma metafórica, os points de capiton[29].
É isso, hoje, o universo do discurso, que se trata de interrogar
a partir deste único axioma o qual trata de saber o que no interior
deste universo do discurso ele pode especificar; axioma que avancei na
última vez: o significante, esse significante que temos definido
até aqui como representando um sujeito para outro significante,
esse significante, o que ele representa?
Isto está definido pelo axioma chamado de especificação:
nenhum
significante, ainda que reduzido à sua forma mínima,
a letra, saberia significar-se a si mesmo.
LÓGICA E ESCRITURA
Este axioma vem formalizar o uso matemático que
tende precisamente a isto: que quando nós temos em algum lugar,
e não somente em um exercício de álgebra, colocada
uma letra A, a retomamos em seguida como se na segunda vez em que
nos servimos dela ela fosse sempre a mesma. Não façam esta
objeção que eu não faço...
Saibam que nenhuma enunciação correta de
um uso qualquer da letra no que está mais próximo a nós,
por exemplo o uso de uma cadeia de Markov[30], necessitará de todo
aquele que ensina a etapa propedêutica de fazer sentir bem isso que
tem de escolho, de arbitrário, de absolutamente injustificável
neste emprego do A, totalmente aparente, por outro lado, para representar
o primeiro A como se fosse sempre o mesmo. É uma dificuldade
que está no princípio do uso matemático. Sobre esta
pretensa identidade nós não temos nada para fazer hoje aqui
posto que não é de matemática que se trata. Eu quero
lembrar-lhes que o fundamento, que o significante não é mais
que o ponto fundado para significar-se a si mesmo, está admitido
por aqueles que na ocasião não podem fazer um uso contrário
deste princípio, ao menos na aparência, mas seria fácil
de ver por que intermédio isto seria possível.
Mas não quero extraviar-me por aí.
Meu propósito é este, é saber qual
é a conseqüência deste universo do discurso, deste
princípio que diz que o significante não saberia significar-se
a si mesmo? Que especifica este axioma neste universo do discurso, discurso
entanto que está constituído por tudo o que se pode dizer?
Qual é a classe de especificação que este axioma determina?
Forma parte do universo do discurso? Se não forma parte, isto seguramente
é um problema para nós. O que especifica – eu o repito –
o enunciado axiomático, de que o significante não saberia
significar-se a si mesmo, teria por conseqüência especificar
algo que, como tal, não estaria no universo do discurso, enquanto
que precisamente nós acabamos de admitir em seu seio, enquanto acabamos
de dizer que engloba tudo o que se pode dizer. Nos encontramos então
com algo divertido que significaria isto: isto que não pode formar
parte do universo do discurso, não saberia dizer-se de nenhuma maneira
posto que falamos disto em que eu os introduzo, isto não é
evidentemente senão para dizer-lhes que é o inefável.
Temática da qual se sabe que por pura coerência, sem estar
por isto com a escola de Mr. Wittgenstein da qual é inútil
falar, sem chegar a isto, em uma tal fórmula na qual vocês
vejam bem que não lhes economizo o relevo nem o obstáculo
que ele constitui, posto que também nos será necessário
voltar ali, eu faço tudo para que as vias lhes sejam franqueadas
nisto do que trato que me sigam.
Tomemos em princípio o cuidado de por à
prova isto que especifica o axioma: que o significante não saberia
significar-se a si mesmo fica separado do universo do discurso.
O que é que vamos colocar então?
Isto do que se trata, o que especifica a relação
que enunciei (que o significante não saberia significar-se a si
mesmo), enquanto que ela forma parte do universo do discurso, podemos traduzi-la
pela fórmula:
S w S
onde tomamos da lógica este pequeno signo w,
no qual vocês reconhecerão a forma de meu punção
no qual se faz bascular um chapéu, e que serve para designar na
lógica dos conjuntos a exclusão, o “ou” exclusivo, o que
implica que o significante em sua apresentação repetida não
significa mais enquanto funciona uma primeira vez ou enquanto funciona
uma segunda vez, e que entre ambas há uma hiância radical.
O significante não saberia significar-se a si mesmo;
já dissemos que é isto o que determina este axioma como de
especificação no universo do discurso e vamos designá-lo
por um significante B, um significante essencial no qual vocês
notarão que ele pode se apropriar disso: que o axioma torna preciso
que não saberia, senão em uma certa relação,
engendrar-se nenhuma significação. B é precisamente
este significante do qual nada objeta que se especifique nisto, nada objeta
que ele marque esta esterilidade, o significante em si mesmo sendo justamente
caracterizado por isto, que não há nada obrigatório,
que está longe de ser o sujeito, que ele engendre uma significação.
Eu simbolizo esta característica por
É o que me permite dizer que a relação
do significante a si mesmo não engendra nenhuma significação.
Partamos disto que parece se impor: é que algo que eu enunciarei
forma parte do universo do discurso.
Eu me sirvo momentaneamente de meu pequeno punção
para dizer que B forma parte de A, no qual eu lhes indiquei
a complexidade decompondo este pequeno signo de todas as maneiras.
Trata-se de saber se não há alguma contradição
que resulte disto: a saber se o fato de que nós tenhamos escrito
que o significante não saberia significar-se a si mesmo. Podemos
escrever que este B não se significa a si mesmo, mas formando
parte do universo do discurso pode ser considerado como algo que sob o
modo que caracteriza isto que chamamos de uma especificação
pode escrever-se: B, forma parte de si mesmo.
É claro que a questão se coloca: B
forma parte de si mesmo? Dito de outro modo: o que arrasta a noção
de especificação, a saber, o que nós aprendemos a
distinguir em muitas variedades lógicas, quero dizer que há
aí muitos que sabem que o conjunto não é superposto
à classe. Tudo deve enraizar-se em uma lógica de especificação.
Nos encontramos diante de algo do qual, ademais, o parentesco
deve aduzir razões suficientes ao que eu chamei na última
vez o paradoxo de Russel entanto que isto que enuncio aqui nos termos que
nos interessa: a função dos conjuntos, entanto que ela faz
algo que eu não tornei meu todavia, pois não estou aqui para
introduzi-lo senão para mantê-los em um campo que logicamente
está fora disso. É ocasião de tratar de pegar algo:
a saber o que funda a posta em jogo do aparelho dito teoria dos conjuntos
que, hoje, se apresenta como totalmente original, seguramente, a todo enunciado
matemático e a quem, para quem, a lógica não é
nenhuma outra coisa que isto que o simbolismo matemático pode pegar,
será também o princípio, e é isto que ponho
em questão: o fundamento da lógica, se é uma lógica
do fantasma, é pelo que ela é mais principiante[31] ao olhar
de toda a lógica que se funda nos desfiladeiros formalizadores onde
ela se revelou na época moderna tão fecunda.
Tratemos de ver o que quer dizer o paradoxo de Russel,
quando cobre algo que não é lei do que está aí
no quadro negro, simplesmente promove como totalmente encoberto este fato
de um tipo de significante que toma de todas as maneiras para uma classe,
estranho erro dizer por exemplo que a palavra obsoleta representa uma classe
onde estaria incluída ela mesma sob pretexto que esta palavra obsoleta
é obsoleta, é um pequeno escamoteio que tem interesse somente
de fundar como classe os significantes que não se significam a eles
mesmos, enquanto que precisamente nós colocamos como axioma que
em nenhum caso o significante não saberia significar-se a si mesmo
e que é de lá que é necessário partir, desembrulhar-se,
não seria isto mais que para perceber que é necessário
explicar de outra maneira que a palavra obsoleta pode ser qualificada de
obsoleta. É indispensável fazer entrar aí o que introduz
a divisão do sujeito.
Partamos porém da oposição que põe
um Russel a assinalar algo que seria contradição na fórmula
que se enunciaria assim de um subconjunto B do qual seria impossível
assegurar o estatuto a partir disto: que seria especificado em um outro
conjunto A por uma característica tal que um elemento de
A
não se conteria a si mesmo.
É fácil nesta condição mostrar
a contradição nisto: que nós não temos mais
que senão tomar um elemento Y como formando parte de B
para aperceber-nos das conseqüências que há desde então
a fazê-lo por sua vez como tal, parte como elemento de AA
e não sendo elemento de si mesmo.
(Y e B) (Y e
A – Y e y’)[32]
A contradição consistiria em por B
em lugar de Y cada vez que nós fazemos B elemento
de B, resulta disto que posto que ele forma parte de A, ali
não deve formar parte de si mesmo. Se por outro lado, B estando
posto, substituído no lugar deste Y se não forma parte
de si mesmo satisfazendo o parêntese da direita, forma parte portanto
de si mesmo em um desses y elemento de B: eis aqui a contradição
na qual nos coloca o paradoxo de Russel: trata-se de saber se em nosso
registro, podemos ficar aqui, deixá-lo passar ao aperceber-nos do
que significa a contradição posta em valor na teoria dos
conjuntos, isso que nos permitirá talvez poder dizer porque a teoria
dos conjuntos se especifica na lógica, a saber: que passo ela constitui
em relação àquilo que tratamos aqui de distinguir.
A contradição da qual se trata neste nível
onde se articula o paradoxo de Russel diz respeito, como o próprio
uso das palavras nos livra, a isto: que eu lhes digo.
Porque se não o digo, nada impede esta fórmula,
mais precisamente a segunda ter como tal, escrito, e nada diz que seu uso
parará. Isto que eu digo aqui, não é de nenhuma maneira
jogo de palavras, pois a teoria dos conjuntos entanto tal não tem
absolutamente outro suporte, mais que o que eu escrevo como tal, que tudo
o que se pode dizer de uma diferença entre os elementos está
excluído do jogo escrito, manipular o jogo lateral que constitui
a teoria dos conjuntos, consiste em escrever como tal o que eu digo aí:
a saber que o primeiro conjunto pode estar fechado por sua vez pela simpática
pessoa que gravará meu discurso, do vaso que está sobre este
vidro, que isto constitui um conjunto, que porque eu digo que nenhuma outra
diferença existe, mais que aquela que está constituída
pelo fato que eu pude aplicar sobre estes objetos que venho de nomear e
dos quais vocês vêem suficientemente o heteróclito,
um traço unário sobre algum, e nenhuma outra coisa.
Eis aqui isto que faz que já que nós não
estejamos ao nível de uma tal especificação, posto
que eu ponho em jogo o universo do discurso, minha pergunta não
encontra o paradoxo de Russel, a saber: que não se deduz nenhum
obstáculo, nenhuma impossibilidade nisso que B do qual eu
comecei a supor que poderia formar parte do universo do discurso, seguramente
ainda que faça a especificação que o significante
não saberia significar-se a si mesmo, pode quiçá ter
consigo mesmo certa classe de relação que escapa ao paradoxo
de Russel, a saber, de nos mostrar algo que seria poder ser sua própria
dimensão. Nós vamos ver em que estatuto ele [o paradoxo]
forma parte do universo do discurso. Com efeito, eu tomei o cuidado de
recordar-lhes a existência do paradoxo de Russel, eu gostaria de
poder servir-me dele, para fazer-lhes sentir algo.
A REPETIÇÃO
Vou fazer-lhes sentir primeiro do modo mais simples e
em seguida de um modo um pouco mais rico.
A questão se coloca em saber se este B,
colocado como um significante que não engendra nenhuma significação,
forma parte do universo do discurso. Eis aqui dois exemplos.
O catálogo dos catálogos
Vou fazer-lhes sentir da maneira mais simples porque desde
há algum tempo eu estou pronto a todas as concessões. Querem
que eu diga coisas simples, pois bem, eu direi coisas simples. Vocês
estão já bastante formados para isto, graças aos meus
cuidados, para saber que esta não é uma via tão direta
para compreender, ainda que isto que lhes digo pareça simples, lhes
restará ainda uma desconfiança.
Um catálogo de catálogos, eis aqui desde
o princípio que se trata de significantes. Seremos surpreendidos
pelo fato de que não se contenham a si mesmos, posto que isto parece
ser uma exigência desde o princípio. Nada impediria que o
catálogo que não se contém a si mesmo não se
imprima a si mesmo. Nada o impediria, nem mesmo a contradição
de Russel.
Consideremos esta possibilidade: que para não se
contradizer, ele não se inscreve em si mesmo; não há
mais que quatro catálogos que não se contém a si mesmos:
A
B C D. Suponhamos que apareça um outro catálogo
que não se contenha a si mesmo: E. Que há de inconcebível
em pensar que há um primeiro catálogo que contenha A,
B,
C
e D, e um segundo catálogo que contenha
B,
C,
D
e E? Não nos surpreenderá que a cada um falte esta
letra que é propriamente aquela que o designaria a si mesmo senão
a partir do momento em que engendrem esta sucessão sobre o perímetro
de um círculo. Aí se perceberá que isto acontece porque
a cada catálogo lhe faltará um. Veja-se um número
maior e teremos que o círculo desses catálogos não
farão algo que é precisamente isto que responde ao catálogo
de todos os catálogos que não se contém a si mesmos;
simplesmente o que constituirá esta cadeia terá esta propriedade
de ser um significante a mais que se constitui como fecho da cadeia, um
significante incontável e que, justamente, por esse fato poderá
ser designado por um significante, pois não estando em nenhuma parte,
não há nenhum inconveniente nisso que um significante surja,
que o designe como o significante a mais, aquele que não se aferra
à cadeia. Eu tomo um outro exemplo: os catálogos não
são feitos, desde logo, para catalogar os catálogos. Os catálogos
dos objetos estão aí em algum título (a palavra título
tendo aí toda sua importância), seria fácil engajar-se
nesta via – a dialética do catálogo dos catálogos
– mas eu irei por uma via mais viva.
O livro
Nós voltamos com o livro aparentemente no universo
do discurso. Mas na medida em que o livro tem algum referente, e onde ele
também pode ser um livro que tem que cobrir uma certa superfície
que registra algum título, o livro compreenderá alguma bibliografia,
o que quer dizer alguma coisa que se apresenta apropriadamente para imaginarmos
isto: do que resulta portanto que um catálogo viva ou não
viva no universo do discurso. Se eu faço o catálogo de todos
os livros que contém uma bibliografia, naturalmente não é
de bibliografias que eu faço o catálogo. Contudo, ao catalogar
estes livros, enquanto que nas bibliografias eles se reenviam uns aos outros,
posso muito bem cobrir o conjunto de todas as bibliografias. É aqui
que pode situar-se o fantasma que é propriamente o fantasma poético
por excelência, aquele que causava obsessão em Mallarmé:
o livro absoluto; é neste nível onde as coisas se renovam
ao nível do uso não do puro significante, senão do
significante purificado. Portanto, o que eu digo e o que eu escrevo é
que o significante está aqui então articulado como distinto
de todo significado, que eu vejo então esboçar-se a possibilidade
deste livro absoluto, no qual o próprio seria que englobasse toda
a cadeia significante propriamente nisto que ela pode não significar
mais nada. Nisso há algo que se averigua como fundado na existência
ao nível do universo do discurso, do qual porém nós
iremos suspender esta existência da lógica própria
que pode constituir aquela do fantasma, pois também é a única
que pode nos dizer de que maneira esta região suspende no universo
do discurso, seguramente, não está excluído que ele
entre aí senão em outro lugar, é certo que aí
se especifica, não por esta purificação da qual eu
falava há pouco, pois a purificação não é[33]
possível no que é essencial ao universo do discurso, a saber:
a significação. Eu lhes falarei quatro horas mais deste livro
absoluto, de modo que não fique menos disto que tudo que lhes digo
tem sentido. O que caracteriza a estrutura deste B enquanto que
nós sabemos situá-lo no universo do discurso, dentro ou fora,
é o que lhes anunciei recém, fazendo este A B C D E
que simplesmente fecha a cadeia, resulta que cada grupo de quatro pode
deixar fora de si o significante estranho que significa para representar
o grupo pelo fato de que não está aí apresentado a
cadeia total será constituída, o conjunto de todos estes
significantes fazendo surgir esta unidade a mais, o incontável como
tal, que é essencial a toda série de estruturas e que é
aquela sobre a qual fundei desde 1960 toda minha operatória da identificação,
a saber o que voltarão a encontrar na estrutura do toro. Para buclar[34]
sobre o toro um certo número de voltas, para fazer operar uma série
de voltas completas sobre um corte e para fazer-nos o número que
lhes agrade mais, basta – é satisfatório mas obscuro – fazer
duas para ver aparecer esta terceira volta necessária para que a
linha morda o rabo; isto será esta terceira volta, assegurada pela
buclaje do buraco central pelo qual é impossível não
passar para que ele se recorte. Eu digo suficiente, de tudo aquilo que
eu disse, para que vocês me entendam, contudo é muito pouco
para que eu lhes mostre que há ao menos duas cadeias na origem pelas
quais isso pode se efetuar e que o resultado não é o mesmo
para o surgimento desta uma [volta] a mais.
Esta indicação sugestiva não tem
nada que esgote a riqueza do que nos fornece o menor estudo topológico.
Trata-se hoje de indicar que o específico deste modo da escritura
é justamente distinguir-se do discurso pelo fato de que pode fechar-se
e fechar-se sobre si mesmo; é daí que surge esta possibilidade
de um um que tem totalmente outro estatuto, diferente daquele
do um que unifica e engloba, porém deste um que já
do simples fechamento e sem que seja necessário entrar no estatuto
do um a mais, posto que ele não se sustém mais que
pela escritura, e que está apesar de tudo aberto em sua possibilidade
no universo do discurso, posto que é suficiente como eu o fiz remarcar,
que eu escreva, porém que é necessário que nesta escritura
tenha lugar, isto que eu digo da exclusão, deste um,
este é suficiente para engendrar este outro plano que é aquele
onde se desenvolve propriamente falando toda a função da
lógica, a coisa sendo-nos suficientemente indicada pela estimulação
que a lógica tem recebido de submeter-se ao jogo próprio
da escritura, próximo disto que lhe falta sempre para se recordar,
que isto não repousa senão sobre a função de
uma falta, daquela mesma que está escrita e que constitui o estatuto
da função da escritura.
Eu digo coisas simples, ainda que com o risco de fazer-lhes
parecer enganoso este discurso. Vocês teriam se enganado em não
ver que isto se inclui em um registro de perguntas que dão desde
então à função da escritura algo que não
saberia senão repercutir até o mais profundo de toda concepção
possível da estrutura pois que a escritura da qual falo não
se suporta mais que deste retorno sobre si mesma e de um corte.
Somos aqui levados a isto: que as atitudes precisamente
as mais fundamentais, ligadas ao progresso da análise matemática,
nos levaram a isolar disso aí a função de borda. Enquanto
nós falamos de borda, não há nada que nos possa fazer
substantificar esta função na medida em que vocês deduzem
indevidamente que esta função da escritura é delimitar
este movimento como sendo aquele de nossos pensamentos, o do universo do
discurso. Longe disso, se é algo que se estrutura como borda, isso
que a limita a si mesma está em situação de entrar
por seu turno na função bordejante.
Aí está o que nós temos a fazer –
ou então é a outra via sobre a qual espero terminar – é
a lembrança do que desde sempre é conhecido nesta função
do traço unário.
Terminarei evocando o verso 26 de um livro para fazer
entender do que se trata na função significante: o Livro
de Daniel.
As calças de um zuavo[35] designa em uma palavra
o que se chama: anopak, a menos que isso seja o que partilham os personagens
em questão.
No livro de Daniel vocês têm a teoria do sujeito
surgindo no limite do universo do discurso (raiz da função
de repetição em Freud), é a história do festim
dramático no qual não encontramos mais o menor traço
nos anais. “Mane, Mane, Tekel, Farés”[36]. Mane quer
dizer “contar”, como salienta Daniel. Ele diz duas vezes para mostrar a
repetição mais simples. É suficiente contar até
dois pelo que há aí, que a raiz da repetição
se exerce contrariamente ao que na teoria dos conjuntos, não se
o diz. Não se diz que a repetição busca repetir, é
precisamente isto que escapa pela função da marca, já
que a marca é original na função da repetição.
É por isso que a repetição se exerce pela repetição
da marca; mas para que a marca provoque a repetição procurada,
é preciso que sobre o que é procurado, a marca, esta marca
se apague ao nível do que ela marcou, que está aí
porque na repetição o que é procurado, que por sua
natureza se oculta, deixa perder isto: que a marca não saberia se
redobrar senão borrando, repetindo a marca primeira, quer dizer,
deixando-a deslizar fora da entrada. Mane – alguma coisa falta ao
ponto. Tekel – o profeta Daniel o interpreta aos príncipes
que querem, com efeito, passar alguma falta, esta falta radical que emana
da própria função de contar enquanto tal; este um
a mais que se pode e que não se pode contar é o que constitui
esta falta da qual convém que nós lhe demos sua função
lógica, aquela que faz precisamente estalar o que há no universo
do discurso, da bolha, insuficiência do que se encerra na imagem
de todo imaginário, eis a via pela qual tem efeito a entrada do
que se situa no ponto radical.
A letra da qual se trata, a letra enquanto que falta,
posto que hoje refaço uma irrupção sobre esta tradição
judia sobre a qual eu tenho tantas coisas a dizer, onde eu estive até
poder me reapanhar; de tudo isto algo me resta.
“Começa o livro... por esta bet...[37] esta letra
que nós empregamos, a A de Aleph não é hoje aquela
de onde tornou a sair toda a criação de alguma maneira religada
sobre ela mesma, é porque uma de suas letras está ausente
que as outras funcionam, mas é sem dúvida na sua falta que
reside toda a fecundidade da operação.
23 de novembro de 1966
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