SOBRE A ÉTICA DA PSICANÁLISE
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Quando falamos de ética é
quase inevitável pensar na moral, e discorrer sobre este tema frente
a pessoas interessadas no assunto parece-me sempre muito difícil! Isto
me fez lembrar de um comentário feito por Mark Twain quando foi apresentar
um ensaio Sobre a decadência
na arte de mentir para o círculo
de História e Antiguidades de Hartford: seu atrevimento era comparável
ao de uma solteirona desastrada que tentasse dar conselhos na arte de amamentar
às fecundas matronas de Israel. Acho que o risco que se corre é
sempre mais ou menos este.
A preocupação com a ética é antiga e historicamente
o tema tem sido dominado pela religião preocupada com a relação
do sujeito com o outro. Os profetas nunca se cansaram de asseverar que Deus
nada exige de seu povo senão uma conduta de vida justa e virtuosa.
E mesmo a exigência de crença nele parece ficar em segundo lugar,
em comparação com a seriedade desses requisitos éticos.
O que se buscava era a abstenção de toda satisfação
pulsional, condenada ainda como impura também por nossa moralidade
atual, apesar da aparente liberdade sexual dominante em nossos dias.
Sempre se esperou da ética resultados importantes. Freud a interpreta
como “uma tentativa terapêutica, como um esforço para alcançar,
através de uma ordem do supereu, algo até agora não conseguido
por meio de quaisquer outras atividades culturais”. O problema, para Freud,
é que “a ética baseada na religião introduz suas promessas
de uma vida melhor depois da morte”. Atribuo a isto a pouca simpatia de Freud
pelo tema! E ele acredita, conforme afirma em O mal-estar na cultura (1930[1929]) que “enquanto a virtude não
for recompensada aqui na Terra, a ética pregará em vão”.
A preocupação aparece através de um dos grandes mandamentos,
já no terceiro livro do Pentateuco: Amarás ao próximo como a ti mesmo.
São Mateus e São Marcos retomam este mandamento, cada um à
sua maneira, e quando São Lucas trabalha esta questão, utilizando-se
de um recurso dialógico, ele introduz um legista para perguntar a
Jesus: quem é o meu próximo? E Jesus responde com a parábola do
bom samaritano, onde a resposta parece indicar que o próximo é
o bom. Tenhamos presente, contudo, que na sua enunciação a
parábola diz que os maus são o plural; os indiferentes - o
sacerdote e o levita - singularmente dois: e o bom... um. Não se poderia
entender como o enunciado de uma proporção? Talvez trançá-los?
Quer dizer, todos estão de acordo quanto a ser difícil reconhecer
o mau como sendo o próximo, embora todos saibam que ele ronda, e que
é preciso delimitar os direitos da sociedade contra o indivíduo
e vice-versa.
A distinção da ética com relação a moral
foi proposta por Jacques Lacan. Quando se ocupa desta questão, ele
a retoma desde um jogo de palavras feito por Aristóteles entre
/
, para dizer - através
do segundo êthos (este de pronúncia mais fechada) - que a
ética de Aristóteles é uma ética de formação
do caráter. Vejamos: usualmente se traduz o primeiro éthos, grafado com 'epsilon' e espírito brando,
por ‘uso, costume, hábito’ e o segundo, grafado com 'eta', por ‘morada,
estância, residência’ e mesmo por ‘estrebaria e curral’ quando
se trata de animais. O Prof. Donaldo Schüler trata esta questão
de um modo muito interessante quando diz em Heráclito e seu (dis)curso que o êthos é a pele do homem, o que
lhe permite habitar tanto a pele do cordeiro como a do lobo.
Este me parece ser o aspecto importante da ética: toda ação
do homem tem sempre uma implicação, embora - como Pausânias
deixa claro no Banquete de Platão - enquanto se realiza, uma ação
não é de si mesma nem boa nem má. Eu diria que depende
de como se realiza; afinal quem não sabe das mentiras que se justificam.
Na Ética a Nicômaco Aristóteles começa dizendo que toda
a ação tende para algum bem. Pois está certo! E aí
encontramos um ponto de apoio para especificar rigorosamente a ética
da psicanálise, dito de outro modo, de diferenciar o bem que se busca
com a prática da psicanálise. Digo prática na medida
em que sua etimologia conota uma conversação mantida quando
se freqüenta alguém. É isto, a psicanálise é
uma prática do blá-blá-blá e a benção,
a benedictio aí presente, implica em não dizer
onde está o bem do outro e isto não por recusa nem por nenhuma
negatividade imaginariamente implicada a alguma técnica e sim pela
convicção da absoluta ignorância do analista em relação
ao bem do outro. O que o analista pode e deve fazer é ajudar o analisante,
através da escuta de sua produção significante, a fazer
a descoberta de sua própria morada, da pele que lhe é própria.
Esta conquista exige um tempo, mas enfim, como dizem as últimas linhas
de As duas faces da moeda, um dos Maqâmât de al-Hariri (na versão
de Rückert): “Ao que não podemos chegar voando, temos de chegar
manquejando (...). O livro diz-nos que não é pecado claudicar.”
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